quinta-feira, 23 de junho de 2022

Flusser : Filosofia da Caixa Preta (4 - O Gesto de Fotografar)

Filosofia da Caixa Preta




VILÉM FLUSSER




Ensaios para uma futura filosofia da fotografia




4 - O Gesto de Fotografar

Quem observar os movimentos de um fotógrafo munido de aparelho (ou de um aparelho munido de fotógrafo) estará observando movimento de caça. O antiquíssimo gesto do caçador paleolítico que persegue a caça na tundra [1]. Com a diferença de que o fotógrafo não se movimenta em pradaria aberta, mas na floresta densa da cultura. Seu gesto é, pois, estruturado por essa taiga [2] artificial, e toda fenomenologia do gesto fotográfico deve levar em consideração os obstáculos contra os quais o gesto se choca: reconstituir a condição do gesto.


1 Tundra: pantanal siberiano (N. Ed.)

2 Taiga: floresta siberiana (N. Ed.)


A selva consiste de objetos culturais, portanto de objetos que contém intenções determinadas. Tais objetos intencionalmente produzidos vedam ao fotógrafo a visão da caça. E cada fotógrafo é vedado à sua maneira. Os caminhos tortuosos do fotógrafo visam driblar as intenções escondidas nos objetos. Ao fotografar, avança contra as intenções da sua cultura. Por isto, fotografar é gesto diferente, conforme ocorra em selva de cidade ocidental ou cidade subdesenvolvida, em sala de estar ou campo cultivado. Decifrar fotografias implicaria, entre outras coisas, o deciframento das condições culturais dribladas.

A tarefa é difícil. Isto porque as condições culturais não transparecem, diretamente, na imagem fotográfica, mas através a triagem das categorias do aparelho. A fotografia não permite ver a condição cultural, mas apenas as categorias do aparelho, por intermédio das quais aquela condição foi “tomada”. Em fenomenologia fotográfica, Kant é inevitável.

As categorias fotográficas se inscrevem no lado output do aparelho. São categorias de um espaço-tempo fotográfico, que não é nem newtoniano nem einsteiniano. Trata-se de espaço-tempo nitidamente dividido em regiões, que são, todas elas, pontos de vista sobre a caça. Espaço-tempo cujo centro é o “objeto fotografável”, cercado de regiões de pontos de vista. Por exemplo: há região espacial para visões muito próximas, outra para visões intermediárias, outra ainda para visões amplas e distanciadas. Há regiões espaciais para perspectiva de pássaro, outras para perspectiva de sapo, outras para perspectiva de criança. Há regiões espaciais para visões diretas com olhos arcaicamente abertos, e regiões para visões laterais com olhos ironicamente semifechados. Há regiões temporais para um olhar-relâmpago, outras para um olhar sorrateiro, outras para um olhar contemplativo. Tais regiões formam rede, por cujas malhas, a condição cultural vai aparecendo para ser registrada.

Ao fotografar, o fotógrafo salta de região para região por cima de barreiras. Muda de um tipo de espaço e um tipo de tempo para outros tipos. As categorias de tempo e espaço são sincronizadas de forma a poderem ser permutadas. O gesto fotográfico é um jogo de permutação com as categorias do aparelho. A fotografia revela os lances desse jogo, lances que são, precisamente, o método fotográfico para driblar as condições da cultura. O fotógrafo se emancipa da condição cultural graças ao seu jogo com as categorias. As categorias estão inscritas no programa do aparelho e podem ser manipuladas. O fotógrafo pode manipular o lado output do aparelho, de forma que, por exemplo, este capte a caça como relâmpago lateral vindo de baixo. 

O fotógrafo “escolhe”, dentre as categorias disponíveis, as que lhe parecem mais convenientes. Neste sentido, o aparelho funciona em função da intenção do fotógrafo. Mas sua “escolha” é limitada pelo número de categorias inscritas no aparelho: escolha programada. O fotógrafo não pode inventar novas categorias, a não ser que deixe de fotografar e passe a funcionar na fábrica que programa aparelhos. Neste sentido, a própria escolha do fotógrafo funciona em função do programa do aparelho.

A mesma involução engrenada das intenções do fotógrafo e do aparelho pode ser constatada na escolha da caça. O fotógrafo registra tudo: um rosto humano, uma pulga, um traço de partícula atômica na câmara Wilson, o interior do seu próprio estômago, uma nebulosa espiral, seu próprio gesto de fotografar no espelho. De maneira que o fotógrafo crê que está escolhendo livremente. Na realidade, porém, o fotógrafo somente pode fotografar o fotografável, isto é, o que está inscrito no aparelho. E para que algo seja fotografável, deve ser transcodificado em cena. O fotógrafo não pode fotografar processos. De maneira que o aparelho programa o fotógrafo para transcodificar tudo em cena, para magicizar tudo. Em tal sentido, o fotógrafo funciona, ao escolher sua caça, em função do aparelho. Aparelho-fera.

Aparentemente, ao escolher sua caça e as categorias apropriadas a ela, o fotógrafo pode recorrer a critérios alheios ao aparelho. Por exemplo: ao recorrer a critérios estéticos, políticos, epistemológicos, sua intenção será a de produzir imagens belas, ou politicamente engajadas, ou que tragam conhecimentos. Na realidade, tais critérios estão, eles também programados no aparelho. Da seguinte maneira: para fotografar, o fotógrafo precisa, antes de mais nada, conceber sua intenção estética, política, etc., porque necessita saber o que está fazendo ao manipular o lado output do aparelho. A manipulação do aparelho é gesto técnico, isto é, gesto que articula conceitos. O aparelho obriga o fotógrafo a transcodificar sua intenção em conceitos, antes de poder transcodificá-la em imagens. Em fotografia, não pode haver ingenuidade. Nem mesmo turistas ou crianças fotografam ingenuamente. Agem conceitualmente, porque tecnicamente. Toda intenção estética, política ou epistemológica deve, necessariamente, passar pelo crivo da conceituação, antes de resultar em imagem. O aparelho foi programado para isto. Fotografias são imagens de conceitos, são conceitos transcodificados em cenas.

As possibilidades fotográficas são praticamente inesgotáveis. Tudo o que é fotografável pode ser fotografado. A imaginação do aparelho é praticamente infinita. A imaginação do fotógrafo, por maior que seja, está inscrita nessa enorme imaginação do aparelho. Aqui está, precisamente, o desafio. Há regiões na imaginação do aparelho que são relativamente bem exploradas. Em tais regiões, é sempre possível fazer novas fotografias: porém, embora novas, são redundantes. Outras regiões são quase inexploradas. O fotógrafo nelas navega, regiões nunca dantes navegadas, para produzir imagens jamais vistas. Imagens “informativas”. O fotógrafo caça, a fim de descobrir visões até então jamais percebidas. E quer descobri-las no interior do aparelho.

Na realidade, o fotógrafo procura estabelecer situações jamais existentes antes. Quando caça na taiga, não significa que esteja procurando por novas situações lá fora na taiga: mas sua busca são pretextos para novas situações no interior do aparelho. Situações que estão programadas sem terem ainda sido realizadas. Pouco vale a pergunta metafísica: as situações, antes de serem fotografadas, se encontram lá fora, no mundo, ou cá dentro, no aparelho? O gesto fotográfico desmente todo realismo e idealismo. As novas situações se tornarão reais quando aparecerem na fotografia. Antes, não passam de virtualidades. O fotógrafo-e-o-aparelho é que as realiza. Inversão do vetor da significação: não o significado, mas o significante é a realidade. Não o que se passa lá fora, nem o que está inscrito no aparelho; a fotografia é a realidade. Tal inversão do vetor da significação caracteriza o mundo pós-industrial, todo funcionamento.

O gesto fotográfico é série de saltos, o fotógrafo salta por cima das barreiras que separam as várias regiões do espaço-tempo. É gesto quântico, procura saltitante. Toda vez que o fotógrafo esbarra contra barreiras, se detém, para depois decidir em que região do tempo e do espaço vai saltar a partir deste ponto. Tal parada e subsequente decisão se manifestam por manipulação determinada do aparelho. Esse tipo de procura tem nome: dúvida. Mas não se trata de dúvida científica, nem existencial, nem religiosa. É dúvida de tipo novo, que mói a hesitação e as decisões em grão de areia. Sendo tal dúvida uma característica de toda existência pós-industrial, merece ser examinada mais de perto. Toda vez que o fotógrafo esbarra contra um limite de determinada categoria fotográfica, hesita, porque está descobrindo que há outros pontos de vista disponíveis no programa. Está descobrindo a equivalência de todos os pontos de vista programados, em relação à cena a ser produzida. É a descoberta do fato de que toda situação está cercada de numerosos pontos de vista equivalentes. E que todos esses pontos de vista são acessíveis. Com efeito: o fotógrafo hesita, porque está descobrindo que seu gesto de caçar é movimento de escolha entre pontos de vista equivalentes, e o que vale não é determinado ponto de vista, mas um número máximo de pontos de vista. Escolha quantitativa, não-qualitativa.

O tipo novo de dúvida pode ser chamado de fenomenológico, porque cerca o fenômeno (a cena a ser realizada) a partir de um máximo de aspectos. Mas a mathesis (a estrutura fundante) dessa dúvida fenomenológica é, no caso da fotografia, o programa do aparelho. Duas coisas devem ser, portanto, retidas: 1. a práxis fotográfica é contrária a toda ideologia; ideologia é agarrar-se a um único ponto de vista, tido por referencial, recusando todos o demais; o fotógrafo age pós ideologicamente; 2. A práxis fotográfica é programada; o fotógrafo somente pode agir dentro das categorias programadas no aparelho. Esta ação pós-ideológica e programada, que se funda sobre dúvida fenomelógica despreconceituada, caracteriza a existência de todo funcionário e tecnocrata.

Finalmente, no gesto fotográfico, uma decisão última é tomada: apertar o gatilho (assim como o presidente americano finalmente aperta o botão vermelho). De fato, o gesto do fotógrafo é menos catastrófico que o do presidente. Mas é decisivo. Na realidade, estas decisões não são senão as últimas de uma série de decisões parciais. O último grão de uma série de grãos, que, no caso do presidente pode ser a gota d’água. Uma decisão quantitativa. No caso do fotógrafo, resulta apenas na fotografia. Isto explica porque nenhuma fotografia individual pode efetivamente ficar isolada: apenas séries de fotografias podem revelar a intenção do fotógrafo. Porque nenhuma decisão é realmente decisiva, nem sequer a do presidente ou do secretário-geral do partido. Todas as decisões fazem parte de séries “claras” e “distintas”. Em outros termos: são decisões programadas.

Tais considerações permitem resumir as características do gesto de fotografar: é gesto caçador no qual aparelho e fotógrafo se confundem, para formar unidade funcional inseparável. O propósito desse gesto unificado é produzir fotografias, isto é, superfícies nas quais se realizam simbolicamente cenas. Estas significam conceitos programados na memória do fotógrafo e do aparelho. A realização se dá graças a um jogo de permutação entre os conceitos, e graças a uma automática transcodificação de tais conceitos permutados em imagens. A estrutura do gesto é quântica: série de hesitações e decisões claras e distintas. Tais hesitações e decisões são saltos de pontos de vista para pontos de vista. O motivo do fotógrafo, em tudo isto, é realizar cenas jamais vistas, “informativas”. Seu interesse está concentrado no aparelho. Esta descrição não se aplica, em suas linhas gerais, apenas ao fotógrafo, mas a qualquer funcionário, desde o empregado de banco ao presidente americano.

O resultado do gesto fotográfico são fotografias, esse tipo de superfícies que nos cerca atualmente por todos os lados. De maneira que a consideração do gesto fotográfico pode ser a avenida de acesso a tais superfícies onipresentes.



continua pág 22...

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SOBRE O AUTOR 
na edição brasileira de 1985


Nascido em Praga em 1920, Vilém Flusser iniciou seus estudos de Filosofia na Universidade Carolíngia de Praga, em 1933. Emigrou para Londres em 1940 e para São Paulo em 1941. Seus primeiros ensaios sobre Linguística e Filosofia foram publicados 1957 no “Suplemento Literário” d’O Estado de São Paulo, do qual passou a ser colaborador constante. Em 1962 tornou-se membro do Instituto Brasileiro de Filosofia e professor de Filosofia da Comunicação na Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Tornou-se co-editor da Revista Brasileira de Filosofia em 1964 tendo sido nomeado delegado especial do Ministério das Relações Exteriores para cooperação cultural com os Estados Unidos e a Europa, em 1966. Entre 1965 e 1970, organizou seminários e conferências no Departamento de Humanidades do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) sobre a Filosofia da Linguagem e abriu espaço em jornal par escrever crônicas diárias sobre filosofia do cotidiano (“Posto Zero”, da Folha de São Paulo). Em 1972, mudou-se para a Itália e, em 1976, para a França, onde reside atualmente, publicando principalmente na Alemanha e França. Publicou os livros: Língua e Realidade (São Paulo, Herder, 1963); A História do Diabo (São Paulo, Martins, 1965); Da Religiosidade (São Paulo, Comissão Estadual de Cultura, 1967); La Force du Quotidien (Paris, Mame, 1972); Le Monde Codifié (Paris, Institut de l’Enviroment, 1972); Naturalmente (São Paulo, Duas Cidades, 1979); Pós – História (São Paulo, Duas Cidades, 1982); Für eine Philosophie der Fotografie (Göttingen, European Photography, 1983); Ins Universum der technischen Bilder (Göttingen, European Photography, 1985).




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Flusser, Vilém, 1920 – 
Filosofia da caixa preta – São Paulo : Hucitec, 1985. - 92 p. 

EDITORA HUCITEC
São Paulo, 1985
Direitos autorais 1983 de Vilém Flusser. Título do original alemão: Für eine Philosophie der Fotografie. Tradução do autor. Direitos de publicação em língua portuguesa reservados pela Editora de Humanismo, Ciência e Tecnologia “Hucitec” Ltda., Rua Comendador Eduardo Saccab, 344 – 04602 – São Paulo, Brasil. Tel.: (011) 61-6319. 
Projeto gráfico: Estúdio Hucitec. 
Capa: Fred Jordan. 
Flusser : Filosofia da Caixa Preta (4 - O Gesto de Fotografar)
Flusser : Filosofia da Caixa Preta (5 - A Fotografia)

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pequena nota de rodapé...

Ontológico é um adjetivo que define tudo que diz respeito à ontologia, ou seja, que investiga a natureza da realidade e da existência.



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