terça-feira, 7 de junho de 2022

Úrsula - X - A mata (2)

Maria Firmina dos Reis


Úrsula



X - A mata 
.


continuando... 


O terror, a desconfiança, a inquietação, pintavam-se no rosto pálido e aflito, no olhar fixo e pasmado dessa pobre moça.
— Meu Deus! – dizia ela consigo – Quem será este homem, e o que quer ele de mim?
Diversos eram os pensamentos do caçador.
Uma chama ativa lhe abrasava a alma, talvez a primeira que assim o requeimava, e bem ardente devia ser ela; porque ele sentia no peito ondear- -lhe, e ferver em cachões o violento fogo de uma cratera. Ainda assim, mal lhe traía no rosto o que lhe ia lá na alma.
Ele deu um passo para a donzela, e ela de pronto ergueu-se, trêmula de angústia e de terror, e bradou com ânsia:
— Oh! Quem quer que sejais, senhor, que me quereis? Segui o vosso caminho, e deixai-me sossegada e tranquila.
— Meu Deus! Senhora! – exclamou ele – Não vos compreendo. Em que vos posso incomodar?!...
— Acabai, senhor, – continuou ela – esta penosa entrevista. A vossa presença não só me incomoda, como me causa susto.
— Deveras? – interrompeu o desconhecido – deveras! Úrsula, porque vos causa susto a minha presença, que mal vos hei feito? Acaso me conheceis?
— Senhor, – tornou ela com voz súplice – não me vedes a saída desta mata, necessito voltar para junto de minha mãe.
— De vossa mãe! – inquiriu o caçador com emoção – E não foi em nome dela que acabo de suplicar-vos que não me fugísseis? Úrsula, talvez me perdoásseis essa desagradável impressão, que à primeira vista tive a infelicidade de causar-vos, se soubésseis quem sou, e o quanto hei sido amigo de vossa mãe. De vossa mãe – repetiu ele com voz um pouco alterada. – Luísa! Luísa! Quanto os anos a terão desfeito! Não sereis também minha amiga, quando me conhecerdes?
— Eu! – exclamou a moça com ingenuidade. – Eu, senhor! E por quê? Minha infeliz mãe vergou sob a influência de uma sorte adversa, gemeu até hoje as dores de uma penosa enfermidade, chorou com amargura uma viuvez prematura, e a orfandade de sua filha, e nunca um amigo generoso, ou uma alma sensível, nunca, senhor, enxugou-lhe a lágrima ardente, que lhe queimava as faces.
Nunca Luísa B. teve amigos. Zombais, ou faltais à verdade.
— Úrsula, – tornou ele – que prevenção é essa? Úrsula, vós me odiais.
— Não, mas não vos creio. E demais, para que me demorais? Sede breve, dizei o vosso intento, que quero partir.
E seus olhos, descaindo para o chão, encontraram a ave morta, que lhe caíra aos pés, e os seus vestidos nodoados daquele sangue inocente. Estremeceu involuntariamente, e contrariada pela obstinação daquele homem de tão sinistro aspecto, disse-lhe com certo tom de desespero:
— Sim, tínheis razão quando dissestes que eu vos odiava. Sois obstinado em incomodar-me; sabei pois que me é insuportável a vossa presença. Vedes esta avezinha? Para que a matastes? Não era ela tão inocente e bela? A dor do seu coração feriu o meu, e o seu sangue tingiu-me os vestidos. Esse ato de inútil crueldade faz-me aborrecer-vos.
— Senhora! – retrucou ele. – Que infelicidade! Incorrer no vosso desagrado! mas...
— Mas, senhor, – interrompeu ela impacientando-se – que pretendeis?
— São loucas as minhas pretensões, senhora, sim, loucas; porque se me animasse a confiar-vo-las, o vosso desprezo ia talvez esmagar-me. Permiti que me conserve em silêncio, que nada tem ele de ofensivo para vós.
— Pois bem, – disse ela – guardai-o muito embora; mas deixe-me em nome do céu.
— Deixar-vos?!... Oh! Não, mil vezes não! E cedendo a um excesso de apaixonada loucura, ou de amoroso delírio, curvou-se ante Úrsula, pálida de aflitiva angústia e de antipático horror.
— Úrsula! Úrsula – continuou com acento arrebatado. – Oh! não me desdenheis, não me acabrunheis e desespereis com o vosso rancor. Se me amardes, no meu amor encontrareis a felicidade; porque agora sou vosso escravo. Nunca o tereis mais humilde, mais dócil, acreditai-me. Nunca amei, e julguei mesmo, – louco que eu era! – julguei no meu orgulho estúpido que nunca amaria mulher alguma. Destruístes a minha ilusão. Vi-vos, e um amor apaixonado, como um filtro venenoso, se me derramou na alma. Nunca supliquei, e agora eis-me súplice, humilhado na vossa presença: na presença de uma menina!
— Úrsula, – continuou – oh! Pelo céu, acreditai-me. Amo-vos. Apenas há um momento que vos conheço e parece que há um século que vos idolatro. É ardente e violento o afeto que nutro no peito. Menos puro fora ele, que, imenso como acabo de confessá-lo, saciá-lo-ia sem dificuldade. Meus escravos não estarão longe, muitos deles seguiram-me à caça: chamá-lo-ia, e vós seríeis conduzida em seus braços, apesar dos vossos gritos, e do vosso desespero, até minha casa, onde seríeis minha, sem terdes o nome de esposa.
Não é isto verdade?
Mas não. O amor que ora desenvolvestes em meu coração é tão ardente, quanto respeitoso. Nasceu agora, mas tanto já influiu sobre mim, que é humilhado que vos peço que o não desdenheis.
Se pudésseis sentir, compreender somente, o que ora se passa em mim... Mas sois inflexível! Úrsula, quando voltardes aos vossos lares, quando, descansada em vosso quarto, recordardes esta cena da mata, não zombeis do homem que vos fala; por que este amor, que me escalda o coração, há de durar enquanto eu existir.
Úrsula, tímida e angustiada, ouvira todo este discurso sem interrompê-lo; mas o coração lhe estava gelado de aflição.
— Senhor, – disse ela com voz trêmula e titubeante, – acabastes?
— Aguardo por uma palavra vossa – tornou o desconhecido, fitando nela um olhar inexprimível.
— Uma palavra?! Aguardais uma palavra minha? Pois bem! Abusastes por demais da minha fraqueza. Estou só, o lugar é ermo, tudo vos protege, e vos anima. Se fôsseis mais cavalheiro, seríeis comedido em expressões, que sempre foram tidas por ofensivas quando ditas por estranhos, e nunca chegaríeis a uma impertinência tão desagradável.
E com dignidade e serenada acrescentou:
— Senhor, eu devo voltar para minha casa.
O caçador tomou-lhe das mãos, e disse-lhe:
— Ao menos dizei que não me odiais!
— Sim, – tornou a moça, procurando desprender-se-lhe das mãos – sim, não vos odeio; mas deixai-me em paz.
— Em nome de vossa mãe, Úrsula, imploro-vos...
— O que, senhor?
— Uma só palavra, que me anime.
— Oh! Não, nunca – replicou ela com enérgica viveza. E depois interrogando-o com o olhar, tratou de empregar pela primeira vez a dissimulação, e ajuntou:
— Afirmastes ser amigo de minha mãe, não o acreditei; falais-me de um amor, que a meu pesar em vós despertei, e quereis que o corresponda, tenho-me até agora negado semelhante compromisso; mas tudo isso pode modificar-se, se eu puder conhecer-vos, se for permitido agora saber quem sois. O vosso nome?
— O meu nome! – exclamou tristemente o caçador deixando cair as mãos da moça. – Se o conhecêsseis!... Não, Úrsula, eu quero ser amado, ainda mesmo desconhecido.
E um assomo de dor, e uma onda de frenética raiva, baralharam-se na alma do desconhecido, e marulhadas, e ferventes, vieram refletir-lhe no rosto. E as feições tomaram expressão difícil de descrever: os lábios agitaram-se convulsos, os olhos faiscaram fulvo brilho, que se extinguiu em breve. Um doloroso abatimento, que denunciava talvez a recordação penosa e amarga de algum acontecimento anterior, lhe empalideceu o rosto. Ele suspirou, e de novo objetou:
— O meu nome, Úrsula, mais tarde o sabereis!
Agora ide-vos!
Rogai ao céu, – acrescentou – meiga e inocente donzela, rogai ao céu para que vos possa esquecer; porque se o meu amor prosseguir assim, extremoso, indomável, apaixonado, haveis de ser minha; porque ninguém me desdenha impunemente. Ouvis? – disse em tom de ameaça, e depois em meia súplica ajuntou – Oh! Por Deus, não troqueis a ventura pela dor, e quem sabe pelo!...
Esta ameaça horrível, dita com voz alterada, e em tais horas, eriçaram os cabelos da moça, que ficou pálida e queda de horror.
— Ide – concluiu ele.
E ela toda agitada e confusa deixou a mata, prometendo a si mesma não voltar jamais àquele lugar.
E o caçador seguindo-a com os olhos e com o coração, quando a moça desapareceu numa volta do caminho, com olhos arrasados de lágrimas, disse:
— Mulher! Anjo ou demônio! Tu, a filha de minha irmã! Úrsula, para que te vi eu? Mulher, para que te amei?!... Muito ódio tive ao homem que foi teu pai: ele caiu às minhas mãos, e o meu ódio não ficou satisfeito. Odiei-lhe as cinzas; sim odiei-as até hoje; mas triunfaste do meu coração; confesso-me vencido, amo-te! Humilhei-me ante uma criança, que desdenhou-me e parece detestar-me! Hás de amar-me.
Humilhado pedi-te o teu afeto. Maldição! Paulo B. estás vingado!
Tua filha oprime-me com o seu indiferentismo, e esmaga-me com o seu desprezo, como se me conhecera!
Mulher altiva, hás de pertencer-me ou então o inferno, a desesperação, a morte serão o resultado da intensa paixão que ateaste em meu peito.



continua pág 86...

_________________________


Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.

Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.

O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.

Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 

Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

____________________

Úrsula - X - A mata (2)

Nenhum comentário:

Postar um comentário