segunda-feira, 27 de junho de 2022

Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (k)

Paulo Freire 




“educação como prática da liberdade”: 
alfabetizar é conscientizar 







AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



4. A teoria da ação antidialógica


A TEORIA DA AÇÃO DIALÓGICA E SUAS
CARACTERÍSTICAS: A CO-LABORAÇÃO,
A UNIÃO, A ORGANIZAÇÃO E A SÍNTESE
CULTURAL

CO-LABORAÇÃO



Não significa isto que a teoria da ação dialógica conduza ao nada. Como também não significa deixar de ter o dialógico uma consciência clara do que quer, dos objetivos com os quais se comprometeu.

A liderança revolucionária, comprometida com as massas oprimidas, tem um compromisso com a liberdade. E, precisamente porque o seu compromisso é com as massas oprimidas para que se libertem, não pode pretender conquistá-las, mas conseguir sua adesão para a libertação.

Adesão conquistada não é adesão, porque é “aderência” do conquistado ao conquistador através da prescrição das opções deste àquele.

A adesão verdadeira é a coincidência livre de opções. Não pode verificar-se a não ser na intercomunicação dos homens, mediatizados pela realidade.

Daí que, ao contrário do que ocorre com a conquista, na teoria antidialógica da ação, que mitifica a realidade para manter a dominação, na co-laboração, exigida pela teoria dialógica da ação, os sujeitos dialógicos se voltam sobre a realidade mediatizadora que, problematizada, as desafia. A resposta aos desafios da realidade problematizada é já a aço dos sujeitos dialógicos sobre ela, para transformá-la.

Problematizar, porém, não é sloganizar, é exercer uma análise crítica sobre a realidade problema.

Enquanto na teoria antidialógica as massas são objetos sobre que incide a ação da conquista, na teoria da ação dialógica são sujeitos também a quem cabe conquistar o mundo. Se, no primeiro caso, cada vez mais se alienam, no segundo, transformam o mundo para a liberdade dos homens.

Enquanto na teoria da ação antidialógica a elite dominadora mitifica o mundo para melhor dominar, a teoria dialógica exige o desvelamento do mundo. Se, na mitificação do mundo e dos homens há um sujeito que mitifica e objetos que são mitificados, já não se dá o mesmo no desvelamento do mundo, que é a sua desmitificação.

Aqui, propriamente, ninguém desvela o mundo ao outro e, ainda quando um sujeito inicia o esforço de desvelamento aos outros, é preciso que estes se tornem sujeitos do ato de desvelar.

O desvelamento do mundo e de si mesmas, na práxis autêntica, possibilita às massas populares a sua adesão.

Esta adesão coincide com a confiança que as massas populares começam a ter em si mesmas e na liderança revolucionária, quando percebem a sua dedicação, a sua autenticidade na defesa da libertação dos homens.

A confiança das massas na liderança implica na confiança que esta tenha nelas.

Esta confiança nas massas populares oprimidas, porém, não pode ser uma ingênua confiança.

A liderança há de confiar nas potencialidades das massas a quem não pode tratar como objetos de sua ação. Há de confiar em que elas são capazes de se empenhar na busca de sua libertação, mas há de desconfiar, sempre desconfiar, da ambiguidade dos homens oprimidos.

Desconfiar dos homens oprimidos, não é, propriamente, desconfiar deles enquanto homens, mas desconfiar do opressor “hospedado" neles.

Desta maneira, quando Guevara [1] chama a atenção ao revolucionário para a “necessidade de desconfiar sempre – desconfiar do camponês que adere, do guia que indica os caminhos, desconfiar até de sua sombra”, não está rompendo a condição fundamental da teoria da ação dialógica. Está sendo, apenas, realista.


[1] Che Guevara, Relatos de la Guerra Revolucionária, Editora Nueva, 1965.


É que a confiança, ainda que básica ao diálogo, não é um a priori deste, mas uma resultante do encontro em que os homens se tornam sujeitos da denúncia do mundo, para a sua transformação.

Daí que, enquanto os oprimidos sejam mais o opressor “dentro” deles que eles mesmos, seu medo natural à liberdade pode levá-los à denúncia, não da realidade opressora, mas da liderança revolucionária.

Por isto mesmo, esta liderança, não podendo ser ingênua, tem de estar atenta quanto a estas possibilidades.

No relato já citado que faz Guevara da luta em Sierra Maestra, relato em que a humildade é uma nota constante, se comprovam estas possibilidades, não apenas em deserções da luta, mas na traição mesma à causa.

Algumas vezes, no seu relato, ao reconhecer a necessidade da punição ao que desertou para manter a coesão e a disciplina do grupo, reconhece também certas razões explicativas da deserção. Uma delas, diremos nós, talvez a mais importante, é a ambiguidade do ser do desertor.

É impressionante, do ponto de vista que defendemos, um trecho do relato em que Guevara se refere à sua presença, não apenas como guerrilheiro, mas como médico, numa comunidade camponesa de Sierra Maestra. “Ali (diz ele) começou a fazer-se carne em nós a consciência da necessidade de uma mudança definitiva na vida do povo. A ideia da Reforma Agrária se fez nítida e a comunhão com o povo deixou de ser teoria para converter-se em parte definitiva de nosso ser. A guerrilha e o campesinato, continua, se iam fundindo numa só massa, sem que ninguém possa dizer em que momento se fez intimamente verídico o proclamado e fomos parte do campesinato. Só sei (diz ainda Guevara), no que a mim respeita, que aquelas consultas aos camponeses da Sierra converteram a decisão espontânea e algo lírica em uma força de distinto valor e mais serena.

Nunca suspeitaram (conclui com humildade) aqueles sofridos e leais povoadores da Sierra Maestra, o papel que desempenharam como forjadores de nossa ideologia revolucionária”. [2]


[2] Che Guevara, op. cit., p. 81. (Os grifos são nossos.)


Observe-se como Guevara enfatiza a comunhão com momento decisivo para a transformação do que era uma “decisão espontânea e algo lírica, em uma força de distinto valor e mais serena”. E explícita que, a partir daquela comunhão, os camponeses, ainda que não o percebessem, se fizeram “forjadores” de sua “ideologia revolucionária”.

Foi assim, no seu diálogo com as massas camponesas, que sua práxis revolucionária tomou um sentido definitivo. Mas, o que não expressou Guevara, talvez por sua humildade, é que foram exatamente esta humildade e a sua capacidade de amar, que possibilitaram a sua “comunhão” com o povo. E esta comunhão, indubitavelmente dialógica, se fez co-laboração.

Veja- se como um líder como Guevara, que não subiu a Sierra com Fidel e seus companheiros à maneira de um jovem frustrado em busca de aventuras, reconhece que a sua “comunhão com o povo deixou de ser teoria para converter-se em parte definitiva de seu ser” (no texto: nosso ser).

Até no seu estilo inconfundível de narrar os momentos da sua e da experiência dos seus companheiros, de falar de seus encontros com os camponeses “leais e humildes”, numa linguagem às vezes quase evangélica, este homem excepcional revelava uma profunda capacidade de amar e comunicar-se. Daí a força de seu testemunho tão ardente quanto o deste outro amoroso – “o sacerdote guerrilheiro” – Camilo Torres.

Sem aquela comunhão, que gera a verdadeira co-laboração, o povo teria sido objeto do fazer revolucionário dos homens da Sierra. E, como objeto, a adesão a que ele também se refere, não poderia dar-se. No máximo, haveria “aderência” e, com esta, não se faz revolução, mas dominação.

O que exige a teoria da aço dialógica é que, qualquer que seja o momento da ação revolucionária, ela não pode prescindir desta comunhão com as massas populares.

comunhão provoca a co-laboração que leva liderança a massas àquela “fusão” a que se refere o grande líder recentemente desaparecido. Fusão que só existe se a aço revolucionária é realmente humana, [3] por isto, simpática, amorosa, comunicante, humilde, para ser libertadora.

[3] A propósito da defesa do homem frente a "sua morte", "depois da morte de Deus”, no pensamento atual, ver Mikael Dufrenne, Pour L’homme . Paris, Editions Du Seuil, Paris, 1968.

A revolução é biófila, é criadora de vida, ainda que, para criá-la, seja obrigada a deter vidas que proíbem a vida.

Não há vida sem morte, como não há morte sem vida, mas há também uma “morte em vida”. E a “morte em vida” é exatamente a vida proibida de ser vida.

Acreditamos não ser necessário sequer usar dados estatísticos para mostrar quanto, no Brasil e na América Latina em geral, são “mortos em vida”, são “sombras” de gente, homens, mulheres, meninos, desesperançados e submetidos [4] a uma permanente “guerra invisível” em que o pouco de vida que lhes resta vai sendo devorada pela tuberculose, pela esquistossomose, pela diarreia infantil, por mil enfermidades da miséria, muitas das quais a alienação chama de “doenças tropicais”...

[4] “A maioria deles, diz Gerassi, referindo-se aos camponeses, se vende ou vendem membros de sua família, para trabalharem como escravos, a fim de escapar à, morte. Um Jornal de Belo Horizonte descobriu nada menos de 50.000 vitimas (vendidas a Cr$ 1.500,00) e o repórter, continua Gerassi, para comprová-la, comprou um homem a sua mulher por 30 dólares. ‘Vi muita gente morrer de fome’, explicou o escravo, ‘e por isto não me importo de ser vendido’. Quando um traficante de homens foi preso em São Paulo, em 1959, confessou seus contatos com fazendeiro s de São Paulo, donos de cafezais e construtores de edifícios, interessados em sua mercadoria – exceto, porém, as adolescentes, que eram vendidas a bordéis.” – John Gerassi, A Invasão da América Latina . Rio de Janeiro, Civilizaço Brasileira, 1965, p. 120.

Em face de situações com estas, diz o padre Chenu, “... muitos, tanto entre os padres conciliares como entre laicos informados, temem que, na consideração das necessidades e misérias do mundo, nos atenhamos a uma abjuração comovedora para paliar a miséria e a injustiça era suas manifestações e seus sintomas, sem que se chegue a análise das causas, até. à denúncia do regime que segrega esta injustiça e engendra esta miséria”. [5]

[5] O. P. Chenu, Temoignage Chrétien, abril de 1964. Citado por André Maine,
Cristianos y Marxistas después del Concilio. Buenos Aires, Editorial Arandu, 1965, p. 167.

O que defende a teoria dialógica da ação é que a denúncia do “regime que segrega esta injustiça e engendra esta miséria” seja feita com suas vítimas a fim de buscar a libertação dos homens em co-laboração com eles.




continua página 098...

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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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© Paulo Freire, 1970
Capa
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(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
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Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetização – Métodos 2. Alfabetização – Teoria I. Título II. Série
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido



"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores." 


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