segunda-feira, 8 de maio de 2023

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (15a) - Kátia, a camareira

O Idiota



Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


15.


Kátia, a camareira, entrou muito aflita.

- A senhora não imagina, Nastássia Filíppovna! Mais de dez homens! Quase arrombaram a porta! E bebados como nunca vi. E pretendem ser recebidos. Dizem que se trata de Rogójin e que a senhora sabe.

- Está bem, Kátia. Introduza-os para aqui, imediatamente.

- A senhora não imagina como eles estão, Nastássia Filíppovna... em que estado
lastimável. Credo!...

- Que entrem todos, Kátia, sem exceção. Não tenha medo. Do contrário entram mesmo que você se oponha. Que rebuliço estão fazendo! Até parece esta tarde. Acaso aqui os meus amigos se sentirão ofendidos - voltou-se para os seus convidados - por eu receber um bando desta ordem? Lastimo, e desde já peço perdão. Mas não há outro jeito e estou ansiosa que consintam em ser testemunhas desta cena final. Espero e confio que isso não os moleste...

Os convidados continuaram atônitos, entreolhando-se e ciciando. Era perfeitamente claro que aquilo tudo fora calculado e arranjado de antemão, e que Nastássia Filíppovna agira em um momento de paroxismo, impossível lhe sendo agora remediar tal conjuntura. A curiosidade os atiçava; motivos para pânico não existiam, visto haver somente duas mulheres entre os convivas: Dária Aleksiéievna, uma dama desembaraçada que conhecia o lado pior da vida, não tendo portanto do que se escandalizar, e a formosa mas impassível estrangeira.

E essa taciturna estrangeira mal entendia o que se estava passando; era alemã, recém-chegada à Rússia, não sabia uma única palavra eslava e era tão obtusa quanto bonita. Tratavam-na como uma novidade, sendo moda convidá-la para recepções; comparecia suntuosamente vestida, penteada como para uma exibição teatral; faziam-na sentar na sala de visitas como uma decoração encantadora, da mesmíssima forma com que pessoas há que pedem às vezes a amigos, como empréstimo para uma festa de cerimônia, uma tela, uma estátua, uma porcelana ou um mármore de enfeitar lareira.

Quanto aos homens, por sua vez, Ptítsin, por exemplo, era amigo de Rogójin; Ferdichtchénko estava no seu elemento; Gánia, conquanto ainda não refeito, se sentia dominado pelo irresistível impulso de suportar a ignomínia até ao fim; o velho mestre-escola, que apenas poderia ter uma noção difusa do que iria acontecer, esse, de fato, estava quase em lágrimas e literalmente acobardado, tremendo de susto ante a agitação fora do comum que reinava na sala e no vestíbulo; tudo isso porque adorava Nastássia Filíppovna como se fosse sua neta; em uma circunstância destas preferia morrer a sair dali.

Pelo que dizia respeito a Tótskii devera ele, naturalmente, ter tomado antes suas providências para não se comprometer em aventuras semelhantes; mas o caso o interessava demasiado, mesmo a tão desmedido preço moral. Sem contar que Nastássia Filíppovna deixara escapar ainda agora duas ou três palavras favoráveis a ele, e isso já seria motivo por si só para não se ir embora sem que o caso se clareasse. Resolveu permanecer e ficar calado, limitando-se apenas a observar, conforme exigia a sua dignidade.

O General Epantchín, ofendido abertamente com a ridícula devolução do seu presente, só podia se sentir mais agravado ainda com a entrada de Rogójin e as excentricidades anteriores. Um homem da sua posição já se rebaixara bastante, com efeito, sentando-se ao lado de Ptítsin e de Ferdichtchénko. E mesmo que a paixão pudesse haver contribuído para isso, não podia ele já agora deixar de tomar atitude, retirando-se, movido por um sentimento de dever que emanava concludentemente da sua classe, da sua importância e do respeito que devia a si mesmo. Ora, todas estas razões corroboravam para a impossibilidade da presença de Rogójin em uma sala onde Sua Excelência estivesse.

- Ah! general... - interrompeu-o logo Nastássia Filíppovna quando ele ia lançar o
seu protesto.

- Eu me havia esquecido. Ainda bem que a lembrança me acudiu a tempo. Se isto é uma ofensa que o atinge, meu caro general, não sou eu quem insistirá em conservá-lo nesta casa. E isso por mais que eu estivesse, como deveras estou, ansiosa por merecer a honra de tê-lo ao meu lado em uma conjuntura tão especial como é a desta hora. Seja como for, agradeço-lhe muito, levando em conta a sua amizade de sempre e a sua atenção lisonjeira para comigo. Assim, pois, se estiver com receio...

- Permita-me, Nastássia Filippovna! - exclamou o general, em um rasgo de sentimento cavalheiresco. - A quem está a senhora dizendo isso? É tão só por devotamento para com a senhora, que resolvo permanecer ao seu lado, agora. E se houver algum perigo... Além do que, por que não confessar que estou profundamente apreensivo? Isto é, quero referir-me a que vão estragar seus tapetes e talvez quebrar coisas... E a senhora não devia se expor pessoalmente, a meu ver, Nastássia Filíppovna.

- Rogójin! Lá vem ele! - anunciou Ferdichtchénko. Enquanto isso o general segredava à Tótskii apressadamente:

- Qual é a sua impressão? Não lhe parece também que ela perdeu o juízo? Não falo alegoricamente, falo no sentido literal. Hein?

- Já muita vez lhe contei que ela sempre teve predisposição para isso - sussurrou Tótskii, disfarçando.

- E creio, além do mais, que ela está com febre...

Rogójin se fazia acompanhar mais ou menos pelo mesmo séquito daquela tarde. Havia só mais dois acréscimos no grupo. Um velho descarado, outrora editor de um jornal de má reputação, difamador e de quem corria a história de que, por causa de bebida, tinha posto no penhor a dentadura, montada sobre ouro; e um subtenente, rival, por ofício e por título, do homem do boxe. Era completamente desconhecido de todos os do bando de Rogójin, mas fora apanhado na rua, no lado do sol da Avenida Névskii, onde costumava fazer parar os pedestres, pedindo auxílio, em uma linguagem de Marlínskii, falsamente alegando que, em seus tempos de rico, o mínimo que dava de esmola eram quinze rublos de cada vez. E os dois rivais imediatamente haviam tomado mútua atitude hostil. O indivíduo dos punhos considerara-se afrontado com esse acréscimo ao grupo. Calado por natureza, simplesmente grunhia como um urso, de quando em quando, e com profundo desprezo olhava para os estratagemas do rival que, tendo sido homem do mundo e diplomata, tentava obter boas graças, insinuando-se.

O subtenente prometera, a julgar pelas aparências, maior “execução técnica” e desteridade, “no trabalho”, do que propriamente força, pois era menor do que o homem das munhecas. Delicadamente, e sem entrar em competição declarada, embora se vangloriando insistentemente, aludia reiteradamente à superioridade do boxing inglês. O que ele tinha mais era ar de um campeão da cultura ocidental. O dono das munhecas apenas sorria com desprezo e insolência, não se dignando contradizer abertamente o rival, muito embora, de quando em vez, lhe mostrasse. silenciosamente movendo-o por acidente, quase nas fuças, um argumento profundamente nacional - um desproposital, musculoso e proeminente punho coberto de abundantes pelos ruivos.

E assim ficava perfeitamente esclarecido para cada um que, se esse argumento genuinamente nacional tivesse de ser empregado às direitas por qualquer motivo, reduziria tudo a massa informe.

Graças aos esforços de Rogójin, que estivera durante todo o dia fazendo preparativos para a visita a Nastássia Filíppovna, ninguém do grupo estava bêbado demais. Ele mesmo, por enquanto, estava até bem sóbrio, embora bastante estupidificado com o número de sensações por que passara nesse caótico dia em nada comparável a quaisquer outros de toda a sua vida anterior. Apenas uma coisa teimava em ficar aderida ao seu espírito e ao seu coração e de que se dava conta a todo instante e a todo minuto. Por causa dessa coisa passara todo o tempo, das cinco horas da tarde às onze da noite, em contínua agonia e ansiedade, brigando com Kinder & Biskúp. judeus e agiotas, que também se mexiam como loucos por causa dele. Tinham eles, apesar dos pesares, conseguido levantar os cem mil rublos sobre os quais Nastássia Filíppovna, por zombaria fizera uma rápida e vaga menção. Mas o dinheiro fora arranjado à razão de juros tais, que mesmo Biskúp não se aventurou a contar a Kinder senão ao ouvido, em um sussurro de espanto.

Da mesma maneira que de tarde, Rogójin caminhava à frente; os demais o seguiam um pouco sem jeito, embora perfeitamente cônscios de seus papéis. O que mais temiam - Deus sabe por quê - era Nastássia Filíppovna. Muitos estavam mesmo convencidos de que seriam sem a menor cerimônia “postos escadas abaixo, a pontapés”, e entre estes estava o dândi e dom-joão Zaliójev. Outros, porém - e o mais importante era o homem dos punhos - acariciavam em seus corações profundos, embora tácito, desprezo e mesmo cólera por Nastássia Filíppovna, e haviam entrado na casa dela, a fim de pô-la em tempestade. Mas só a magnificência das duas primeiras salas, com coisas em que sequer tinham jamais ouvido falar, quanto mais visto, o mobiliário escolhido, os quadros, a Vênus de tamanho natural, tudo despertara neles um indômito sentimento de respeito e até de medo. Isso não os impediu, porém, de gradualmente se aglomerarem com insolente curiosidade na sala de visitas, atrás de Rogójin. Mas quando o homem dos punhos, o seu rival e mais alguns outros deram com o General Epantchín entre os convidados ficaram instantaneamente tão sucumbidos, que imediatamente procuraram retroceder para a sala anterior.

Liêbediev se achava entre os mais despachados e resolutos e caminhava quase rente de Rogójin, tendo alcançado a verdadeira significação de uma fortuna de um milhão e quatrocentos mil rublos, cem mil dos quais já embolsados. Convém observar, não obstante tudo isso, que todos eles, sem exceção, inclusive o espertalhão de Liébediev, estavam um pouco incertos quanto aos limites reais de suas forças, não sabendo mesmo se seriam capazes de fazer quanto quisessem ou resolvessem. Liébeíliev tivera o desplante de jurar pouco antes que agiriam; mas agora se sentia inquietantemente impelido a lembrar vários artigos do código penal, muito taxativos e categóricos.

Sobre o próprio Rogójin, Nastássia Filíppovna produziu uma impressão muito diferente da produzida em seus asseclas. Logo que a cortina da porta foi erguida e ele a viu, tudo o mais cessou de existir para ele, como já acontecera naquela manhã; e até mesmo de modo mais absoluto do que então. Ficou pálido e por um minuto se deteve, atônito. Deve-se conjeturar que o seu coração estava batendo violentamente, enquanto pasmava para ela timidamente, sem poder. no seu desespero, desprender dela os olhos. De súbito, como se tivesse perdido a razão, vacilando, prosseguiu até chegar perto da mesa. Antes de lá chegar tropeçou na cadeira de Ptítsin e pisou com suas enormes botas imundas na cauda compacta do magnífico e caro vestido azul da estúpida beldade alemã. Nem se desculpou. nem percebeu. Depôs sobre a mesa um estranho objeto que carregava com as duas mãos ao atravessar a sala de visitas. Era um grande pacote de seis polegadas de largura e oito de comprimento, embrulhado em um número da Gazeta da Bolsa, atado com duas voltas de barbante, como os embrulhos de pães de açúcar. Ficou parado, sem proferir uma palavra, e deixou cair os braços à espera da sua sentença. Estava vestido exatamente como antes, exceto quanto a um largo lenço de pescoço, de seda vermelha e verde, onde espetara um grande diamante em forma de besouro e mais um anel com outro diamante em um dedo sujo da sua grossa mão direita. A três passos da mesa parou Liébedíev, os outros, como já disse, foram entrando gradualmente na sala de visitas. Kátia e Pácha, criadas de Nastássia Filíppovna, muito aflitas e nervosas. puseram-se a olhar pela nesga da cortina repuxada.

- Que é isto? - perguntou Nastássia Filíppovna, medindo Rogójin com uma viva atenção e olhando depois de soslaio para o embrulho.

- Cem mil rublos! - balbuciou Rogójin.

- Oh! Então manteve a sua palavra? Que homem! Sente-se, faça o favor, aqui nesta cadeira; tenho uma coisa a lhe dizer, ainda. Que gente é essa? A mesma? Bem, faça-os entrar e sentar. Sirvam-se deste sofá aqui e daquele outro acolá. Ali estão duas poltronas vagas. Que é que eles têm? Não estão querendo?

É que alguns estavam completamente envergonhados e, recuando, procuravam lugar na outra sala. Outros ficaram, sentando onde lhes foi indicado, a certa distância da mesa, os restantes ficando pelos cantos. Se um ou outro quis ir embora, a maioria, porém, recuperou a audácia com incrível rapidez.

Rogójin, que obedecera sentando onde lhe fora indicado, achou melhor se levantar de vez, decerto para poder distinguir e examinar os convidados. Viu Gánia, sorriu maldosamente e lhe sussurrou “Olá!” Fitou o general e Tótskii apaticamente sem interesse nem inferioridade Mas quando deu com o príncipe ao lado de Nastássia Filíppovna, admirou-se tanto que levou muito tempo para poder despregar os olhos perplexos sem compreender aquela presença. Cuidou até que fosse delírio seu, consequência não só das violentas emoções desse dia inteiro como do cansaço da noite anterior. havendo mais de quarenta e oito horas que não dormia.

Mais eis que Nastássia Filíppovna se dirigiu aos convidados em uma espécie de desafio febril e vivaz:

- Amigos, estão vendo este embrulho aqui em cima da mesa? São cem mil rublos! Cem mil rublos embrulhados nesse pacote imundo. Hoje de tarde este homem gritou como um possesso que haveria de me trazer cem mil rublos esta noite! E estive esperando todo este tempo. Decidiu arrematar-me em leilão. Começou com um lance de dezoito mil, depois passou de um salto, inopinadamente, para quarenta mil e depois até àqueles cem mil que ali estão. Manteve sua palavra. Oh! Como ele está lívido!... Deu-se isso em casa de Gánia, na tarde de hoje. Tendo eu ido em visita à mãe dele no meu futuro lar, a irmã vociferou nas minhas faces: “Por que não expulsam daqui essa criatura. E cuspiu na cara do irmão. É uma rapariga de caráter!

- Nastássia Filíppovna! - advertiu-a o General Epantchín que estava começando a compreender a situação.


continua página 145...
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