sábado, 19 de outubro de 2024

Moby Dick: 21 - Embarcando

Moby Dick

Herman Melville


21 - EMBARCANDO

     Eram quase seis horas de uma madrugada nublada, cinzenta e imperfeita, quando nos aproximamos do cais. 

 “Há alguns marinheiros correndo ali, se vejo bem”, eu disse para Queequeg, “não podem ser sombras; acho que o Pequod deve sair ao nascer do sol; venha!”

 “Esperai!”, gritou uma voz, cujo dono se aproximou de nós pelas costas, colocou a mão nos nossos ombros, e então, abrindo espaço entre nós, inclinou-se um pouco para frente, no lusco-fusco incerto, para melhor observar-nos, Queequeg e eu. Era Elijah.

 “Ides embarcar?”

 “Tire as mãos daí!”, eu disse.

 “Óia”, disse Queequeg, sacudindo-se, “vai embora!”

 “Não ides embarcar, então?”

 “Vamos, sim”, eu disse, “mas o que você tem a ver com isso? Sabia que o considero um tanto impertinente, seu Elijah?”

 “Não, não, não; não sabia”, disse Elijah lentamente, olhando admirado para mim e para Queequeg, com os mais estranhos trejeitos.

 “Elijah”, eu disse, “faça o favor de sair da frente! Vamos para o oceano Índico e Pacífico, e acharíamos melhor não nos atrasarmos.”

 “Vão mesmo? Voltam antes do café-da-manhã?”

 “Ele é louco, Queequeg”, eu disse. “Venha!”

 “Olá!”, gritou Elijah, parado, saudando-nos quando demos alguns passos.

 “Não se incomode com ele”, eu disse, “Queequeg, venha!”

      Mas ele se aproximou de novo, e, dando um tapa no meu ombro, disse – “Não viste há pouco algo que pareciam ser homens andando na direção daquele navio?”.
      Impressionado por essa pergunta tão prosaica, respondi dizendo “Sim, acho que vi quatro ou cinco homens; mas não tenho certeza, porque estava muito escuro”.

 “Muito escuro, muito escuro”, disse Elijah. “Tenham um bom dia.”

      Mais uma vez nos afastamos; e mais uma vez ele vinha sorrateiro atrás de nós; e de novo dando um tapa no meu ombro, disse “Tente encontrá-los agora, ‘tá?”.

 “Encontrar quem?”

 “Tenham um bom dia! Tenham um bom dia!”, respondeu, pondo-se em marcha. “Ah! eu queria preveni-los contra – mas não importa, não importa –, é tudo a mesma coisa, tudo em família; – que gelo logo de manhã, hein? Adeus. Não os verei tão cedo; a não ser que seja no dia do Juízo Final.” Com essas palavras sem sentido, finalmente ele partiu, deixando-me não pouco impressionado com seu descaramento frenético.

      Por fim, subindo a bordo do Pequod encontramos tudo num silêncio profundo, não havia alma que se mexesse. A entrada da cabine estava trancada por dentro; as escotilhas estavam fechadas com rolos de cordame. Indo para o castelo de proa, encontramos a peça corrediça do escotilhão aberta. Ao ver uma luz, descemos, mas encontramos apenas um velho armador, envolto num grosseiro casaco de lã puída. Estava estendido entre duas arcas, o rosto para baixo, escondido entre os braços dobrados. O sono mais profundo pesava sobre ele.

 “Aqueles marinheiros que vimos, Queequeg, para onde será que foram?”, perguntei, olhando com suspeita para o marinheiro que dormia. Mas parecia que Queequeg não tinha visto nenhum dos marinheiros no cais; eu teria achado que foi uma ilusão de óptica se não fosse pela pergunta de outro modo inexplicável de Elijah. Mas parei de me preocupar com aquilo; e, olhando de novo para o adormecido, disse brincando a Queequeg que talvez fosse melhor levantarmos aquele corpo e dizer-lhe que ficasse sentado. Ele apalpou a nádega do marinheiro que dormia, como para ver se era suficientemente macia; e, sem dizer mais nada, sentou-se em cima dela.

“Santo Deus! Queequeg, não sente aí”, eu disse.

 “Ah! muito bom cade’ra”, disse Queequeg, “assim no meu país; num machuca cara ele.”

 “Cara!”, eu disse, “você acha que isso é a cara dele? Que bondade a sua; mas ele está com dificuldade para respirar, está arfando; saia daí, Queequeg, você é pesado, está esmagando o coitado. Saia, Queequeg! Veja, logo mais ele vai empurrá-lo. Admira-me que não tenha acordado.”

      Queequeg se colocou atrás da cabeça do marinheiro adormecido e acendeu seu cachimbo tomahawk. Sentei-me a seus pés. Passávamos o cachimbo por cima do marinheiro adormecido. Enquanto isso, respondendo em sua língua sôfrega às minhas perguntas, Queequeg me deu a entender que em seu país, por causa da falta de sofás e cadeiras de todos os tipos, o rei, os chefes e as pessoas importantes tinham o costume de engordar alguns cidadãos subalternos para lhes servirem de assento; e para mobiliar uma casa com conforto bastava comprar oito ou dez sujeitos preguiçosos e instalá-los nos pilares e alcovas. Além do mais, era muito conveniente nas excursões; muito melhor do que cadeiras de jardim dobráveis que se transformam em bengalas; no momento oportuno, o chefe chamava o assistente, pedindo-lhe que se tornasse um assento embaixo de uma árvore frondosa, não raro em lugares pantanosos e úmidos.
      Enquanto contava essas coisas, cada vez que Queequeg recebia o cachimbo tomahawk de mim, ele brandia o fornilho na cabeça do adormecido.

 “Por que está fazendo isto, Queequeg?”

 “Muito fáciu matá’; muito fáciu!”

      Estava contando reminiscências selvagens sobre seu cachimbo tomahawk, que parecia ter dois usos, a saber, estourar a cabeça dos inimigos e acalmar o espírito, quando nossa atenção foi despertada pelo armador adormecido. A fumaça que enchia o pequeno cômodo começou a afetá-lo. Respirava como se tivesse algo a lhe cobrir o rosto; então pareceu sentir um incômodo no nariz; depois virou de lado uma ou duas vezes; sentou-se e esfregou os olhos.

 “Olá!”, soltou por fim, “quem são vocês, fumantes?”

 “Homens de bordo”, respondi, “quando partimos?”

 “Ah! vocês também vão? Partimos hoje. O capitão embarcou ontem à noite.”

 “Que capitão? – Ahab?

 “Quem mais havia de ser?”

      Ia lhe perguntar mais sobre Ahab, quando ouvimos um barulho no convés.

 “Ora! Starbuck já está na ativa”, disse o armador. “É um imediato muito ativo; um bom homem e muito piedoso; mas vamos nos mexer. Tenho que ir.” Dizendo isso, saiu para o convés e nós o seguimos.

      O sol já tinha nascido. Em pouco tempo a tripulação subiu a bordo, de dois em dois ou de três em três; os armadores estavam atarefados; os imediatos trabalhavam ativamente; e muitos dos trabalhadores estavam ocupados trazendo a bordo as muitas últimas coisas. Durante esse tempo, o Capitão Ahab permaneceu invisível no santuário de sua cabine.

Moby Dick: 21 - Embarcando
Moby Dick: 22 - Feliz Natal
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melvillesobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,
O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.
O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.


E você com o quê se identifica?

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