quinta-feira, 23 de junho de 2011

Arretado pela brabeza

Crescia por dentro, estufando

baitasar

Manualdo passou todo o dia saboreando sua mulher, enquanto executava os empilhamentos. 

Sentia o gosto. 

Experimentava os aromas. 

Desfiava o tricô com os dedos, ponto por ponto, apertava os nós. Não a perdia da lembrança, se entrassem em sua cabeça seria um escândalo. Era uma assombração entrando nas carnes novas da mulher. Segurava com as mãos o vai-e-vem dos quadris. As cadeiras carnudas provocavam suas vontades, as mãos dele em alvoroço, as mãos dela erguidas atrás da nuca. Balançando à frente, voltando atrás. Montava em garupa.

Gostava de crescer por dentro, estufando.

O seu avivamento começava nas mãos antes de abraçar, os olhares antes de beijar.

Abraçava-a e as garras da cobiça não paravam, desciam e subiam sua pele negra. Dois que saboreavam o gosto do encanto, as bocas descobrindo quanto da vontade de comer e beber conseguiam experimentar. Prolongavam. Demoravam. Esvaziavam. Recheios das delícias do sem fim.

Terminou os empilhamentos sem afobação. Assobiava a canção vaporosa do sorriso nos lábios. As claridades do dia se acabavam. Ele seguiu sem sustos até as bicicletas. Todas saiam para seus lares.

Pedalava para casa. Devagar.


A cada movimento dos pedais avisava, Estou chegando, minha preta. Olhava para o céu entrelaçado, não tinha muita atenção no trânsito. Ruas de submissão.
Cariciosa seguia à sua frente nua, quase podia tocá-la. Despreocupado. A pouca vergonha sempre desmanchava nos primeiros carinhos. As virilhas lhe queimavam. Rachas de lenha ao fogo. Ardiam. Estalavam.

Sabia que flutuava, Seu idiota, sai da frente, O que foi, Deixa passar quem tem pressa, seu imbecil. O susto do início se acomodou e apareceu no seu lugar o Manualdo arreitado pela brabeza. Ergueu uma das mãos com o punho fechado e deixou o obsceno dedo do meio firme, reto.
O inimigo acelerou, pedalavam lado a lado. Mãos crispadas ao guidom. O coração pedalava no limite das pernas. Ombro a ombro. Cabeça com cabeça. Desgovernados pela intolerância. Carros, buzinas e faróis desatinados. A fúria insana, nenhum sentido nos olhos. A boca não engolia, babava. Gritavam. Cuspiam. Tudo contrário à razão, o brete da cegueira que não se enxerga, Chega, ordenou Maria.

Manualdo estacionou, a respiração desacelerava, grita com raiva da sua covardia, Seu corno, tomara que se desmanche na carreteira. O desafiante seguiu em frente, olhava com o sorriso da vitória. O genro da Maria Memória ergueu seu dedo obsceno. As mãos suadas tremiam. Aquele dedo ereto era o palavrão que simbolizava sua resistência.
O oponente fugia das suas vistas, pedalava com fúria. Manualdo ficou parado. Importante era chegar. Ordenou calma ao coração. O suor lhe escorria pernas abaixo. A cabeça latejava, os braços não davam conta da direita e da esquerda. Uma dor intensa abaixo das costelas prescrevia que continuasse parado. Não tinha nas intenções morrer pedalando, Agora chega, comandava Cariciosa, volta pra casa.

Recomeçou os movimentos da bicicleta. Precisava vencer a crista arredondada da coxilha, quando seria apenas descida. Pedalava lentamente. Reiniciar parecia mais dolorido, Minha preta, não devia ter ficado estacionário, Bobagem, morrer pedalando, depois que morre... acabou, estraga, nem o cheiro tem proveito.

Estava no topo. As luzes da vila embaixo do céu estrelado. Agora, precisava controlar as vontades da máquina, o animal parecia querer despencar lomba abaixo. Homem e maquinário se desafiando. A traição da locomotora. Perderam-se os freios. O instinto e a botina cingiram fortemente a roda dianteira. Manualdo estremecia tentando firmeza nos braços para controlar a bicicleta. A ladeira parecia subir, mas era ele que descia descabelado.
A memória trouxe lembrança do cruzamento, logo à frente. Tentou rezar. Desistiu. Grudou a botina na roda. Homem e máquina pararam. Naquele instante, ou quase isso, um caminhão cruzou a estrada, assoviava e revirava vento, Seu bobo, quase não me chega.

Os freios não tinham conserto sem o ferramental. Desceu o restante da colina caminhando, lado a lado, com sua bicicleta. Na estrada plana, desmanchada de subidas e descidas, montou no selim e pedalou com moderação. Afastava-se do mundo civilizatório e escorria adentro dos escolhidos à miséria, Sem queixumes, Manualdo... sem queixumes. Lembrava do capataz Cícero, o homem lhe repetia, Rapaz, trabalho não enriquece, mas recheia à mesa. Era isso que lhe bastava saber, sua gente alimentada.
Empurrava os pedais da bicicleta, um depois o outro, lentamente. Diminuiu o ritmo, alguns metros à frente, viu um ajuntamento de gente. Parecia um acidente. O ciclístico acidentado era o corno. Desmontou da máquina em duas rodas. Caminhava lentamente. Quando os olhos se cruzaram repetiram as obscenidades.

Manualdo ergueu o punho fechado da mão direita e deixou o dedo indicador e o mínimo esticados. Imitava um par de chifres. O inimigo lhe devolveu um olhar de ódio, Cuidado moço, o castigo tarda, mas não falha, Verdade seja dita, lhe dou razão, seu corno. Saboreava tudo aquilo.
Saiu dali, sorrindo. Seguiu pedalando, não tirava os olhos do ciclista caído, a bicicleta sozinha, sem direção. A vingança era doce.

Não teve tempo de desviar do poste, Merda, no seu caminho.
Bateu com todas as vontades. Rolou pelo asfalto. As buzinas. As freadas. Cego pelos faróis.

O inimigo sorria.
Estavam quites, Filho-da-puta, Corno!

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