Crescia por dentro, estufando
baitasar
Manualdo passou todo o dia saboreando sua mulher, enquanto executava os empilhamentos.
Sentia o gosto.
Experimentava os aromas.
Desfiava o tricô com os dedos, ponto por ponto, apertava os nós. Não a perdia da lembrança, se entrassem em sua cabeça seria um escândalo. Era uma assombração entrando nas carnes novas da mulher. Segurava com as mãos o vai-e-vem dos quadris. As cadeiras carnudas provocavam suas vontades, as mãos dele em alvoroço, as mãos dela erguidas atrás da nuca. Balançando à frente, voltando atrás. Montava em garupa.
Gostava de crescer por dentro, estufando.
O seu avivamento começava nas mãos antes de abraçar, os olhares antes de beijar.
Abraçava-a e as garras da cobiça não paravam, desciam e subiam sua pele negra. Dois que saboreavam o gosto do encanto, as bocas descobrindo quanto da vontade de comer e beber conseguiam experimentar. Prolongavam. Demoravam. Esvaziavam. Recheios das delícias do sem fim.
Terminou os empilhamentos sem afobação. Assobiava a canção vaporosa do sorriso nos lábios. As claridades do dia se acabavam. Ele seguiu sem sustos até as bicicletas. Todas saiam para seus lares.
Pedalava para casa. Devagar.
A cada movimento dos pedais avisava, Estou chegando, minha preta. Olhava para o céu entrelaçado, não tinha muita atenção no trânsito. Ruas de submissão.
Cariciosa seguia à sua frente nua, quase podia tocá-la. Despreocupado. A pouca vergonha sempre desmanchava nos primeiros carinhos. As virilhas lhe queimavam. Rachas de lenha ao fogo. Ardiam. Estalavam.Sabia que flutuava, Seu idiota, sai da frente, O que foi, Deixa passar quem tem pressa, seu imbecil. O susto do início se acomodou e apareceu no seu lugar o Manualdo arreitado pela brabeza. Ergueu uma das mãos com o punho fechado e deixou o obsceno dedo do meio firme, reto.
O inimigo acelerou, pedalavam lado a lado. Mãos crispadas ao guidom. O coração pedalava no limite das pernas. Ombro a ombro. Cabeça com cabeça. Desgovernados pela intolerância. Carros, buzinas e faróis desatinados. A fúria insana, nenhum sentido nos olhos. A boca não engolia, babava. Gritavam. Cuspiam. Tudo contrário à razão, o brete da cegueira que não se enxerga, Chega, ordenou Maria.Manualdo estacionou, a respiração desacelerava, grita com raiva da sua covardia, Seu corno, tomara que se desmanche na carreteira. O desafiante seguiu em frente, olhava com o sorriso da vitória. O genro da Maria Memória ergueu seu dedo obsceno. As mãos suadas tremiam. Aquele dedo ereto era o palavrão que simbolizava sua resistência.
O oponente fugia das suas vistas, pedalava com fúria. Manualdo ficou parado. Importante era chegar. Ordenou calma ao coração. O suor lhe escorria pernas abaixo. A cabeça latejava, os braços não davam conta da direita e da esquerda. Uma dor intensa abaixo das costelas prescrevia que continuasse parado. Não tinha nas intenções morrer pedalando, Agora chega, comandava Cariciosa, volta pra casa.Recomeçou os movimentos da bicicleta. Precisava vencer a crista arredondada da coxilha, quando seria apenas descida. Pedalava lentamente. Reiniciar parecia mais dolorido, Minha preta, não devia ter ficado estacionário, Bobagem, morrer pedalando, depois que morre... acabou, estraga, nem o cheiro tem proveito.
Estava no topo. As luzes da vila embaixo do céu estrelado. Agora, precisava controlar as vontades da máquina, o animal parecia querer despencar lomba abaixo. Homem e maquinário se desafiando. A traição da locomotora. Perderam-se os freios. O instinto e a botina cingiram fortemente a roda dianteira. Manualdo estremecia tentando firmeza nos braços para controlar a bicicleta. A ladeira parecia subir, mas era ele que descia descabelado.
A memória trouxe lembrança do cruzamento, logo à frente. Tentou rezar. Desistiu. Grudou a botina na roda. Homem e máquina pararam. Naquele instante, ou quase isso, um caminhão cruzou a estrada, assoviava e revirava vento, Seu bobo, quase não me chega.Os freios não tinham conserto sem o ferramental. Desceu o restante da colina caminhando, lado a lado, com sua bicicleta. Na estrada plana, desmanchada de subidas e descidas, montou no selim e pedalou com moderação. Afastava-se do mundo civilizatório e escorria adentro dos escolhidos à miséria, Sem queixumes, Manualdo... sem queixumes. Lembrava do capataz Cícero, o homem lhe repetia, Rapaz, trabalho não enriquece, mas recheia à mesa. Era isso que lhe bastava saber, sua gente alimentada.
Empurrava os pedais da bicicleta, um depois o outro, lentamente. Diminuiu o ritmo, alguns metros à frente, viu um ajuntamento de gente. Parecia um acidente. O ciclístico acidentado era o corno. Desmontou da máquina em duas rodas. Caminhava lentamente. Quando os olhos se cruzaram repetiram as obscenidades.Manualdo ergueu o punho fechado da mão direita e deixou o dedo indicador e o mínimo esticados. Imitava um par de chifres. O inimigo lhe devolveu um olhar de ódio, Cuidado moço, o castigo tarda, mas não falha, Verdade seja dita, lhe dou razão, seu corno. Saboreava tudo aquilo.
Saiu dali, sorrindo. Seguiu pedalando, não tirava os olhos do ciclista caído, a bicicleta sozinha, sem direção. A vingança era doce. Não teve tempo de desviar do poste, Merda, no seu caminho.
Bateu com todas as vontades. Rolou pelo asfalto. As buzinas. As freadas. Cego pelos faróis.O inimigo sorria.
Estavam quites, Filho-da-puta, Corno!
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