quarta-feira, 1 de junho de 2011

Quatro paredes com telhado de zinco


Casa de Casca

baitasar

No primeiro sábado, depois da troca das galinhas por pregos, Maria Memória autorizou a levantadura das quatro paredes com telhado de zinco. Um barraco no pátio da sua casa, no fundo do terreiro. A filha e o agregado ficavam no alcance da voz e na distância dos olhos. Não desmentia sua vontade de proteger com cuidados o crescimento da barriga da sua menina. Duas barrigas crescendo. Mãe e filha.

A casa de casca subia pelos braços e a força do Ogum, a energia desgovernada do Manualdo, os ordenamentos inquestionáveis da Memória, os auxílios dos gêmeos com o ferramental – alcançando procurando – enquanto Cariciosa preparava o lanche de café e pão. Alimentação rápida oferecida na metade da manhã. Tomaram seu café sem parada no trabalho. Uma correria contra o andamento do dia.
Faltava quase tudo para a construção da pequena senzala, mas discussão e palpite sobravam. Todos tinham solução para cada assunto de dúvida ou certeza de confusão. O entrevero e o bate-boca atrasavam o cronograma dos trabalhos. O auge dos distúrbios foi a cisão sobre os tapumes com os anúncios de bebidas e cigarros. Os feitiços ficaram tumultuados. Ninguém era de ninguém ou parecia querer ceder.

Manualdo e Ogum queriam as paredes com cerveja e refrigerante viradas para dentro do barraco, De jeito nenhum, essas coisas propagandistas ficam fora dos olhos de dentro, Minha preta, fica feio, Grande merda, vocês passam o dia na rua, indo e vindo de um lugar para outro, Trabalhando, minha preta, As mulheres enjauladas olhando para as paredes.

Não era situação de consenso. Alguém precisava ceder. Os trabalhadores cruzaram os braços, queriam solução negociada. A mãe e a filha fecharam questão sobre o assunto. Com o dia se aproximando da sua metade e a fome chegando, o mais antigo chamou Manualdo, longe da confusão, Rapaz, O que é, seu Ogum, No jeito delas, as paredes não precisam de pintura, Como se fosse uma maquiagem de arte, É isso, já estão enfeitadas. Era preciso ser inventivo, dar a volta por cima com ginga.

Foi decidido, as pinturas de arte ficam fora da casa. Cascas coloridas viradas para o mundo. Retomaram os serviços de uso dos pregos novinhos brilhantes duros firmes. Os cravos não haveriam de faltar, nem o ferramental tomado de empréstimo na oficina das empilhadeiras, instrumentos para medir cortar cerrar, cavar, pregar, Pam, pam, pam, Ai meu dedo, Calma, guri, a falta de precisão acerta no dedão, Não achei gosto na piada. Manualdo levou o dedo estropiado à boca, chupa chupa chupa, Isso é prá hoje, reclamou o sogro, O que foi, amorzinho, Nada, minha pretinha. O acidentado pela própria imprecisão pegou o martelo, o dedo ainda latejava, mas antes que o mais antigo voltasse às brincadeiras, recomeçou o martelamento.

No meio do dia, Maria Cariciosa chamou todos à comilança, Surpresa... arroz carreteiro, Com charque, Sim, foi a resposta da jovem cozinheira. Os rapazes Oquê e Oquerê chegaram dos alvoroços da madrugada, bem no tempo, carregaram a panela do fogo da cozinha para o pátio, Venham comer.

Todos pararam os serviços, e os risos zombarias invencionices invadiram os portões das terras de Maria, é bem assim, cara de fome não é a mesma cara com a barriga cheia. Maria Memória rezava, ela sabe que a comida revigora os laços de ligação da sua família com as divindades.

O almoço foi servido ali, no pátio terra chão.

Manualdo pegou seu prato servido com generosa abundância e, com a colher em uma das mãos, sentou num banco improvisado à sombra. Olhava todos com seu jeito de saudade escondida muda acomodada. Aprendeu com seu pai que uma família funciona não porque tem um chefe, mas porque todos trabalham juntos, ajudam uns aos outros, Meu filho, uma colcha de retalhos não se faz só com um pano, Eu sei, meu pai, nada é divino por acaso.

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