sábado, 11 de junho de 2011

As árvores e os homens


Cio da terra

baitasar

A noite do casório do Manualdo e Maria Cariciosa ficou na lembrança como a noite das afogadas. Virou lenda urbana, sementes e memórias da vontade de contar histórias daquela gente esquecida, perdidos entre lugar nenhum e coisa alguma.

As crenças populares passaram a contar que duas mulheres grávidas do mesmo homem, um pequeno de nariz grande e apito na boca, caíram nas águas brilhantes do lago com chafariz. No jeito que tocaram o fundo, as águas ganharam cor de barro e pecado.

Virou costume entre as mulheres sem casamento, engravidadas por descuido de proteção das vontades, irem se purificar nas águas de alforria. O esguicho das lágrimas eram súplicas pelo esquecimento. Águas lavando pecados, libertando da fogueira difamadora as mulheres com moral duvidosa. Amaldiçoadas na luxúria. Algumas mais impressionadas juravam, As mãos das afogadas agarram os pés das banhistas, parecem pedidos de socorro.

Só o casamento salva, mas arrancar as árvores da praça para plantar árvores na vila, foi um excesso. Assim, no fim e ao cabo de muita correria, a tal obrigação dos noivos em plantar árvores para casar ficou presa no esquecimento. A lei virou fuxico. Motivo de chacota. Por certo, quem criou a tal lei, se deu conta do que estava perdendo e deixou o dito pelo não dito. Gente de pensamento torto, fraca de decisão e curta das ideias.

A única plantação que continua crescendo é a da carne humana. Adubo de fábrica para fertilizar a colheita do dinheiro. O resultado dessa colheita de sangue são os carunchos que esburacam a terra, escavam como noivos apressados.

Manualdo se declarou vítima daquela noite de cegueira. Deixou na praça, malungos arrancados por noivo apressado, não pensou direito, foi usado pelas virilhas, o medo do diz-que-diz, os sorrisos de fuxico, Amorzinho, a gente só vai poder casar se plantar umas vinte árvores. De todo jeito, os furos na terra estavam espalhados na praça. Abertos. A terra em carne-esfoladiça.

Os antigos diziam que a terra estava se negando cicatrizar, não queria esquecer. Testemunhava a própria frustração com todos.

O alcaide enviou tratores e caminhões, junto foram as ordens de acabar com os buracos. Traziam terra e cobriam as feridas. Batiam. Socavam. Passavam sobre as úlceras com suas máquinas poderosas. Na manhã seguinte, os buracos estavam lá. O entulho desaparecia chão abaixo. Engolido. As feridas da terra, as mágoas do chão, não deixavam fechar as lembranças, não permitiam o esquecimento, Bobagem, meu filho, a terra não tem vontade própria, Meu sogro, parece que essa terra da praça tem, pois engole tudo que lhe cai na garganta, Manualdo, isto tá com jeito de buraco sem fundo, Buracos com cara de fome e tristeza, jeito de zanga, Quem sabe... é a entrada no inferno.

A notícia correu rápido, feito rastilho de pólvora.

Os homens da prefeitura fechavam os buracos na luz do dia e a terra engolia tudo, nas trevas. Os buracos cresciam como se fossem um saco sem fundo. Goela abaixo até o centro do chão.

A terra que afundava virou notícia. A ganância e a ignorância se juntaram, vendiam pecados, milagres, perdão, o medo do fim do mundo, Todos nascemos pecadores, precisamos do arrependimento. Vendiam punhados da terra amaldiçoada em pequenos frascos, Aqui, freguesia... a terra que se recusa continuar vivendo.

Tem gente que leva a cruz nos peitos e o diabo nos feitos.

Na vila, o medo da goela da terra se esparramou, E se a terra ficar bocuda, Enterra toda a vila, À terra dada não se olha a boca, Engraçadinho. A histeria espantava a razão, A vila vai sumir dentro do chão. Manualdo ia e vinha com a empilhadeira, enquanto pensava uma solução para o caso esburacado, Ogum precisamos reparar tudo isso, De que jeito, Manualdo, Não sei, Ogum, mas precisamos fazer alguma coisa, Guri, só falta você dizer que o chão sofre como gente, A terra está desnaturada, virou cova larga e funda manchada de sangue, Ela tá morrendo, Agoniza embaixo dos nossos pés, Chega, guri, volta pro trabalho.

Manualdo acreditava que foi no desatino das árvores arrombadas que os buracos das árvores ficaram derrubados para dentro. Engolidos. Precisava consertar o que foi estragado.

Depois de acomodado do trabalho e perfumado com banho, ele falou com a Cariciosa sobre seus planos, Esperar que a noite engula o sol e entrar no largo do chafariz, Todos vigiam a praça, é muito arriscado, Com risco ou sem risco preciso ir, Eu sei. Tinha tomado decisão de acabar com aquela farra começada por ele e Ogum.

Lá pelas madrugadas, um nevoeiro deixou a praça encoberta pela brancura da escuridão. Os olhos tinham pouca serventia de uso dentro daquela luz cega. Era preciso deixar de se guiar pelos olhos e orientar-se pelos sentidos da audição, do cheiro e do medo, enquanto o inimigo procurava indícios da invasão com os olhos.

A terra ensina aos homens, basta ter boa vontade para aprender. Ela quer ser cultivada e brotada em abundância, não tem segredo. Tratada com carinho, ela se dá para uso. As covas sem cicatrização tinham precisão das doçuras com sentido de existência. Um jeito de viver o cotidiano com amorosidade e esperança, no afetuoso berço da vida.

Manualdo foi até seu berçário de mudas, iria devolver à terra o arrancado, Vocês farão o reparamento do meu erro. Carregava sua laranjeira do mato, aroeira, abacateiro e figueira brava, numa sacola de tecido. No outro bornal levava terra preta e alguns chás, que haveriam de acomodar o chão retorcido de cólicas. Chá de bugre, capim cidró, maria-mole e mamica de cadela.

Esperava a noite fechar os olhos para se meter nos pesadelos dos capões de corvos e urubus. Queria devolver à terra ferida suas raízes, seus frutos, fecundar o chão.

Percorreu o caminho a pé, olhava entranhas dilaceradas e ofendidas. Um peregrino implorando perdão. Caminhava entre as sepulturas. Mirava os pés e lembrava os enterros das suas gentes queridas. Brincava entre as covas, olhava retratos, rostos que acabaram. Memórias que não terminavam por conta da sua mãe que aguava flores de plástico. Gente que sumiu das vistas da mãe e que o feitiçeiro do tempo amarrava com as cordas da memória. As cordas estavam ali, agarradas àquela mãe que retirava o capim dos caminhos e rezava fervorosamente com as mãos ao peito. Chorando, murmurando, acendendo velas na cruz das almas. Profundamente alimentada pelo revivido, entre dentes e lágrimas.

O marido da Cariciosa continuava caminhando em silêncio, empacava e espiava através do nevoeiro, nenhum movimento nem para respirar. Estava dentro da brancura. Na caverna maior descarregou a laranjeira de palmo e meio. Enfiou por cima das raízes a terra preta. Depois, fez a plantação o abacateiro, a aroeira e a figueira brava. Da mesma feição que sua mãe, Manualdo levou as mãos ao peito e rezou de maneira arrebatada. Profundamente relembrado daqueles campos de matos e capões. As lembranças que carregava no sangue vinham das memórias de muitas gentes, desde o seu início.

Naqueles tempos, as terras de carne tenra e sangue novo viviam ilhadas, revestidas de vegetação rasteira ao modo campeiro. Eram despovoadas de gente, numa porção de matos e águas por todos os lados. Selvagens e alagadiças. Senhoras dos próprios destinos. Um tempo em que era fácil aprender a língua das plantas e dos animais.

A chuva chegou e não parava, atando a lama preta nas raízes. Quando a reza tomou pousada por cansaço, o lodo cobriu a cova das plantas e Manualdo. O bugre afundava por cansaço, deslizava pela lama para dentro do chão, Eu te amo. Era sua preta que reclamava, ele precisava voltar, Eu te amo, Já volto, foi a resposta do bugre. Agarrado nas raízes do abacateiro emergiu do barro, Está feito.

Foi assim que as cordas da memória passaram para Manualdo.

Na manhã, seguida daquela madrugada, todos queriam ver o milagre com os próprios olhos. As feridas gangrenadas amanheceram enraizando laranjeira com mais de metro. Abacateiro. Aroeira. A terra havia parado de sangrar para dentro. As plantas e as folhas verdes brilhavam como olhares esbugalhados.

As boas novas correram das bocas às orelhas, antes do piscar dos olhos, Então, era isso... tenho uma laranjeira em tempo de plantar, Eu posso trazer um araçaeiro, Tenho goiabeira, Jatobá, Romã, Tenho maçã.
O cio da terra.

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