quinta-feira, 16 de junho de 2011

As hienas e os buracos

Outra história sobre árvores e homens

baitasar

Outra história da mesma história, outro arranjo. Nada é apenas de um jeito ao redor da fogueira, é um lugar de muitas memórias brotando com outras aparências de viver e morrer. Não têm dono porque estão dentro de cada um. São para sempre, enquanto existir o fogo. É preciso compreender os segredos das estrelas, é preciso entender o silêncio dos homens, mulheres, fantasmas, vagando assustados com as gargalhadas das hienas, enquanto esquecem a língua das plantas e animais. Entediados, viram hienas que se desaprendem, tornam-se guardiãs impiedosas do fogo, calam a todos, impõem as suas histórias do medo, juram viver pela existência do bem em todos. Fingidas.

As árvores arrancadas da praça com chafariz deixaram muitos buracos insepultos e um desaparecido. Denunciaram a submissão dos homens ao coveiro. Feridas abertas de um tempo com fartura de medo, palmatórias, socos, empurrões, pancadas, tudo no mal-intencionado pau-de-arara. Um tempo de vendavais varrendo as folhas da alegria, garis de capacete e baionetas. Os cruzados matavam em nome do pai, torturavam em nome do filho e ameaçavam em nome das almas piedosas. Penadas.

As hienas queriam os responsáveis, Culpados do quê, chefe, A grama sumiu, chuparracha, gente desaparece, mas grama... não, gritava o alcaide da zona da segurança. Chefe nomeado pelo General, para defender a cidade do avanço comunista, Buracos não crescem, não afundam sem o uso da pá e da enxada. Era um homem em agitação, precisava acabar com a história custasse o que custar, Buracos não são criaturas vivas, quero os culpados. As hienas na sua volta babavam e sorriam. Eram da confiança do alcaide, e por lógica, íntimos do General. Quarteladas.

O problema com os buracos era a resistência dos buracos, o alcaide não aceitava nada que lhe amarrasse às vontades, Levem o caminhão e o trator, escondam os buracos. Carregar terra e encher os buracos foram as ordens. Passavam o dia assim, transbordando de terra o vazio do chão de dentro. Na manhã seguinte, os chãos tinham se afundado mais um tanto, os buracos estavam maiores. Parecia que durante a noite, seja o que for que tivesse nos subterrâneos, era alimentado por todo aquele entulho do caminhão, Merda, quanto mais tentamos esconder, mais cresce o chão abaixo. Esburacadas.

Os funcionários da pá e enxada reclamavam a repetição do serviço e sua inutilidade, Por que não deixam pra lá, isso se resolve pela natureza, Jeito inútil de fazer um trabalho inútil, não leva a nada, Quem manda, melhor faz. A hiena capataz precisava acabar com o falatório subversivo. Manda trocar os malcontentes. Desvia os assalariados para o carregamento. Promove os carimbados pelo ferro frio, escolhidos no dedo para aquele serviço de risco e repetição inútil, A negrada das cadeias. Destemidos, Povo sem serventia e desnecessários, Muito bem pensado, senhor, Desses aí, ninguém reclama desaparecimento, Caso se pergunte, saíram de viagem em navio negreiro. Caíram nas gargalhadas, como as hienas quando avistam a presa indefesa, querem assustar e avisar o bando. Negadas.

A proposta era boa, como disse o capataz hiena, É fazer o recheio da buracada ou apodrecer no buraco da prisão.

Saíram na primeira luz do dia. Carregados em gaiolas para dias inteiros de trabalhos. O caminhão ia e voltava com terra de aterro. E homens negros com enxadas, pás e picaretas esparramavam as ruínas. Nada muito diferente da enxada, do pilão ou moenda de carne, sempre no serviço do patrão. Os donos da chibata continuavam duros e cruéis, apenas o chicote mudou e virou espada de borracha. Chibatadas.

No caminhão, fazendo caminho de volta, o preto mais velho, fez juízo daquele costume de estragar o chão, sentença de morte, A terra geme de doença, precisa de benzedura, Isso não adianta, velho, essa gente só enxerga o que vê com as vistas, Traria serenidade ao terreiro uma oferenda de respeito ao guerreiro das matas, Oxóssi, com cabrito, coelho e milho, pedir sua proteção, Já ajudava perfumar o lugar, É cheiro da morte,guri, Velho, é preciso muito feitiço pra desenfeitiçar a terra, Tem mais urgência desenfeitiçar o coração. Ofertadas.

Recebem ordem para calarem a boca. Retornam ao silêncio. Homens negros e mulheres negras de muitos tempos encontraram na religião motivo de reencontrar suas histórias, seguirem suas vidas vigiadas pelo patrão ou sentinela, não importava. São sempre aguardados com medo, a desconfiança da dominação; desprezados com arrogância, o preconceito que não tem sentido além do ritmo próprio do ódio. Negrada.

Na manhã seguinte, o alcaide recebe as notícias da praça esburacada, Ficou pior, chefe, Porra, me chamem o Antena. Não eram ordens, mas sentença de extermínio. Ali mesmo, decretou lei marcial na praça, Quem entrar sem autorização... morre. Quando a hiena da polícia secreta chegou, a ordem dada foi simples, Vá, descubra o que acontece e tome as decisões necessárias. A hiena secreta não carregava consigo nenhuma pergunta.

O submundo da vila Boa Esperança morria a céu aberto. Quem não tem o necessário à vida de fartura precisa resistir, enquanto morre. O polícia secreto Antena vigiava com olhos caçadores, a hiena e os ferimentos da terra.

Na tocaia encontrou os comandos militaristas. Todos em campana para acabar com o conflito campesino. Estava desencadeada a Operação Sendor. A missão era descobrir quem impedia a cicatrização das mágoas da terra. Buracos derrubados para dentro. Engolidos, Comandante, precisamos acabar com essa bobagem de terra ofendida, Senhor Antena, essa gente não tem terras de superfície, então, está roubando as terras de baixo, Com que intenção, E vagabundo precisa de intenção, A reforma agrária, Reforma agrária de merda alguma, esses comunistas vão levar chumbo.

Tudo sempre foi dividido desigual entre os desiguais, É isso rapaz, vagabundo só no cacete, Ainda não chegou o tempo do poste mijar nos cachorros, Bem dito, soldado.

Estavam de tocaia. Café. Resistência. E o fuzil na mão.

Seis homens e um destino, prontos para o sinal de atacar. Feras enjauladas. Perseguindo. Impressionando. Importunando. Castigando. Torturando. Matando. Gladiadores. Elmos. Granadas. Pederneiras. Escudos. Espadas de borracha. Zumbis adestrados com cuidado para o uso da força desmedida e violenta, Somos necessários para sua segurança.

As primeiras noites de campana foram ansiosas pelo enfrentamento.  Precisavam do choque com a multidão desautorizada de caminhar na praça. O tempo ocioso do pensamento anulava a vontade, cresceu o sentido desnecessário de tanta cautela, Quando chega a ordem de ir para cima... eu vou, mas sei que os caras do outro lado vão reagir, Todos ficam feridos. Os soldados rasos olhavam uns aos outros, diminuiram na euforia. Sabiam que ordens são para cumprir. Dever do ofício. Aquilo que é necessário ser feito, é feito. Paus mandados. Aliás, pão mandado não tem cara.

A madrugada prometia um frio intenso que o nevoeiro anunciava. Tudo ficou branco. A missão de espiamento estava comprometida. O comandante baixou ordem de silêncio. Olhos e ouvidos atentos. Dedo no gatilho.

As têmporas latejavam.

Os olhos perderam serventia, era preciso as orelhas e a coceira no gatilho. Estopim da falta de raciocínio. O comandante apurava o sentido do nariz, sentia cheiro de vagabundo na distância.

Passos descuidados brotaram no nevoeiro. Prestavam atenção com as orelhas. Apertavam as vistas. A tensão lhes aumentava os ânimos, Quietos... já tenho na mira.

A cegueira não via além, estava cega. A ordem de manter o silêncio foi levada ao limite do medo e do desejo de agir, Seja o que Deus quiser, O meu dedo só aperta com ordem, E se a ordem não chega, Sempre existe uma ordem, Alto lá, identifique-se. Nada.

Os passos não se intimidaram. Arqueiros e artilheiros levaram suas armas aos ombros, em mira, Alto lá, identifique-se. E nada. Os dedos começaram de coceira, acariciavam o metal disparador. Um passo depois o outro. O comandante solicita autoridade de reagir, Senhor Antena, precisamos tomar posição, Calma, comandante, O inimigo toma as melhores disposições, as nossas perdas vão ser elevadas, Qual o plano, Entrar atirando, Não, só um tiro, Um tiro, Isso mesmo, apenas um tiro, Vou ver como resolvo isso.

O comandante chamou seu melhor atirador, Um tiro só, Merda, à noite todos os gatos são pardos, Então não tem risco de errar. O homem fechou os olhos e a mira foi conduzida pelos passos no chão agonizando. Não respiravam. O dedo e o metal do gatilho eram um só. Não coçavam mais.

O barulho da pólvora rasgou os segredos do nevoeiro e abriu a boca da noite. O corpo caiu. Entraram na praça nevoenta atrás do disparo. Pronto, acharam. Estava ali, aos pés da grande cruz de madeira. Um furo entre os olhos. Um cavalo miserável. Perdido no fogo cruzado, Por isso não se identificou, ele não fala, Merda, O que foi, senhor Antena, Limpem tudo... desapareçam com o corpo, Onde, Joguem no mar... enterrem... sei lá, Vamos enfiar num dos buracos da praça, Muito bem, dá menos trabalho, Isso, defunto não enjeita cova, Com sorte vira jatobá, Esse ninguém reclama.

Tempos de chumbo.

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