domingo, 19 de junho de 2011

Precisavam escolher entre a escola e as serventias do dinheiro


As crianças da vila Boa Esperança
baitasar
Desde o seu nascimento, as crianças da vila Boa Esperança guardavam em seus pequeninos corpos a esperança num outro jeito de viver, até o dia em que precisavam escolher entre a escola e as serventias do dinheiro.
Então, os sonhos ficavam guardados numa caixinha de fósforos. As coisas da escola nem eram tão admiráveis, as dores do estômago vazio tinham mais importância e urgência.
As barrigas da Maria Memória e da Maria Cariciosa cresceram, o prenhamento brilhava nas formas redondas. Mãe e filha haviam chegado juntas no tempo da colheita. Mais crianças encolhidas em caixinhas de fósforos.
A ida para o hospital dos nascimentos precisava da carroça das núpcias. Já toda preparada para a ocasião. Graxa nos eixos. Pintura no capricho. Cavalo bem tratado. Rédeas novinhas. Assento estofado.
Encilharam o Ícaro, ele estava pronto, como qualquer soldado em prontidão de alerta no quartel. O dedo no gatilho e a baioneta calada no fuzil. A bala faminta para voar.
Nas horas de apuro eram preciso as rezas e os cuidados do costume.
Manualdo deixava na vista de todos a carteira do INAMPS, para garantir atendimento de segurado. A autoridade da carteira assinada. O mais novo não cansava de repetir ao mais velho, mais valia ganhar menos, assinando a carteira de trabalhador e garantir médico e hospital na família. Ogum resmungava que tinha carnê de pagamento, Meu sogro, é preciso menos preocupação de compras, não esqueça, a gente nasce nu e não se enterra de chapéu.
Mas, enfim, esse era assunto acabado. Precisavam levar as duas para os nascimentos. Memória e Cariciosa embarcaram na gôndola. Manualdo com as rédeas e Ogum sentado ao lado. As crianças chorando na volta. A carroça atolada no valo das águas de esgoto. Um rego da terra que se encarrega da água fedida.
O Ícaro não dava conta de puxar a carruagem.
Os dois homens desceram e juntos com a criançada ajudavam na empurração e animação do bicho. A Cariciosa fez sinal em cruz, a Memória pegou seu colar de contas e parecia conversar com alguém, que não estava ali, mas estava ali. O animal não desatolava a caleça.
O menino Supimpa se aproximou com o cabo do relho nas mãos e enfiou no rabo do Ícaro. O animal empinou depois de anos de abatimento e tolerância. A diligência foi desatolada.
O destino se mudava de lado, o que foi um dia volta a ser de novo e o que será repete o que já foi. Voltas e voltas e o início nunca tem fim.
A vida é cheia de altos e baixos.
Lá se foi o Ícaro a todo galope, já recuperado na importância da missão. O som das patas faiscava pelo caminho. O orgulhoso animal enfeitava seu tropel.
A lua acompanhava a viagem de afobação dos nascimentos, pendurada no alto, entre estrelas e escuridão, mostrava o caminho, clareava assombrações. Até que estacionaram na porta da emergência, o casarão dos nascimentos.
Estava amanhecendo.
Mãe e filha foram separadas.
Maria Cariciosa desapareceu entre as paredes brancas dos segurados do INAMPS. Maria Memória entrou pelas portas da ala reservada à indigência de ajuda. Gritavam pelos corredores, Eu quero ficar com mamã, Eu quero minha filha.
Os dois homens se aproximaram da enfermeira e pediram que as duas ficassem ficar juntas, Senhor, o INAMPS só atende os segurados.
Manualdo assegurou ao sogro que a missão de ambos estava cumprida, até ali, mas reclamava que todo nascimento deveria ser com o pai e a mãe juntos, semeando e colhendo.
Naquele dia, a empilhadeira teve que esperar, Quem é o pai dos nascidos da mãe Cariciosa, Sou eu, a senhora disse mais de um, Sim, um casal, meus parabéns, E como eles estão, Todos muito bem.
A sua preta foi corajosa, Essa mãezinha não deu um ai ai ai. A voz saiu como se fosse uma esfinge, devorava o coração do Manualdo pela boca, dentro da sua garganta.
O tempo passava, mas não passava e a mais velha não se desembaraçava da barriga.
Manualdo e Ogum acordaram com os gritos da Memória. Chamava por Socorro. O pai mais antigo enveredou pelos labirintos, Meu nego, chama a Socorro, Minha preta, não dá, ela é parteira, Quero ir pra casa, Não pode, minha preta, só sai depois de consertada, Ou estragada.
A mulher do Ogum estava deitada em uma maca, empurrada contra a parede do corredor. As dores na árvore velha chegavam com mais intensidade, o tempo da colheita sacudia suas raízes e dobrava os galhos, Minha preta, vou buscar um copo d’água.
Ogum caminhava assustado, por ali, tudo se parecia com um campo de refugiados. Desses que só vemos em fotografia das revistas. Na dobra de uma esquina daquelas paredes brancas ele foi encontrado por Maria Socorro, O que a senhora faz aqui, Estou atrás da minha menina, Como a senhora soube, É o chamado de Deus, Venha comigo.
Quando chegaram no lugar marcado, Maria Memória tinha sumido. Restava a maca vazia, Minha preta, Calma, meu sogro, Onde está a Memória, Aqui.
O Manualdo armou confusão na ausência do mais velho. Exigiu que a Avó dos gêmeos fosse melhor tratada. Parece que as coisas não mudam, boa educação não funciona em correria de emergência, gritos e um bom barraco acordam funcionários que deviam estar atentos à humanidade dos humanos.
Quando entraram no quarto, onde as gestantes filantrópicas esperavam pelos trabalhos, Maria Memória exclamou entre choros, eram as lágrimas que tinham restado para cantar, Socorro, ajuda meu bebê, Calma, minha filha, estou aqui para ajudar em nome do Nosso Senhor, Minha Socorro, como você demorou, Vim a pé. E começou a cantar canções de conforto do candomblé que desfez a zanga da Memória, ela sabia que cantiga velha valia a pena entoar, mas as cantigas da África soam mágicas, como todo mundo que já foi criança, Que Oxalá e Iemanjá nos abençoe
Ori, ori axé,
Axé ori ô!
Odoiá!
A parteira Socorro não tinha pressa, deixava a natureza agir, mas não arredava o pé do alcance dos olhos e das mãos. Estava ali, para proteger aquele que nascia da mãe. Sempre foi assim e será sua vida inteira.
Os dois homens foram mandados sair, Isso não está certo, O que foi, Manualdo, Meu sogro, na hora da colheita, a mãe e o pai tem que estar junto, Bobagem, não sinto necessidade. O rapaz olhou o outro, resmungou que voltava para sua Cariciosa e os gêmeos, mas qualquer necessidade de ajuda bastava chamar.
Nas passagens da enfermeira, as gestantes metiam a Socorro em esconderijo. Quando a curiosidade da mulher doutora sumia pelos corredores daquela hotelaria infame, a Socorro reaparecia com suas cantigas e histórias. Tinha voz iluminada, Minhas filhas, vocês sabem que as parteiras são mencionadas na Bíblia, É, a exclamação de dúvida foi conjunta, Queremos ouvir, e aquelas mulheres relegadas ao atendimento filantrópico, caridoso sem carinho, ficaram atentas para ouvir da experiência que ensina, O Faraó do Egito disse às parteiras dos hebreus, Sifra e Fuá: ’Quando ajudardes as mulheres dos hebreus a darem a luz, olhai o sexo das crianças. Se for um menino mate-o. Se for uma menina deixe-a viver.’ As parteiras, porém, temiam a Deus. Não cumpriram aquelas ordens do rei do Egito lhes ordenara e deixaram os meninos viverem. Então, o rei do Egito lhes convocou e disse: ‘Por que fizestes isso e deixastes viver os meninos?’ As parteiras responderam que as mulheres dos hebreus não são como as egípcias; são cheias de vida, antes da parteira chegar já deram à luz. Deus tornou as parteiras eficazes e o povo se multiplicou e se tornou bem forte.
No final da história, Memória fez sinal que havia chegado a hora, O nosso Deus é grande e o mundo é largo, que seja uma boa hora, Amém.
A parteira largou as atenções das histórias e passou a comandar de maneira metódica os momentos que se vieram, um a um, Preciso de lençóis e toalhas limpas, Deixa pra mim, Alguma de vocês pode diminuir a claridade do quarto, Eu dou um jeito. Logo, aquela que foi na procura de panos limpos estava de volta, arrastava os pés e caminhava com as pernas abertas, Chega, Está ótimo.
Todas fizeram silêncio, Socorro e Memória faziam conversa de oração, tudo passa pela calma do coração e clareza da mente. Socorro pediu que a Memória ficasse de cócoras. Duas das companheiras de quarto estavam amparando-a pelos braços, a parteira ficava de frente com as mãos na forma de bacia aparando o bebê.
Começou o nascimento, Isso menina, um pouco de força, Ai, Outro tanto de coragem, Ai, Ele quer vir para nós, Ai, Mais um pouco.
Todas observavam e rezavam, tudo estava entregue nas mãos de Deus e daquela mãe antiga, Ai, Tudo bem, descansa.
Essa Socorro era a única que faria Memória descansar em tempo de nascimento. Um andamento extraordinário da vida, cheio das esperanças que fazem uma mulher seguir em frente, pisando em brasas e a alma retorcida, Ai, Eu já estou sentindo o nosso bebê.
Senhora de respeito e reconhecimento nas dores de cada uma. Não perdoava o cansaço e os desvios dos tolos que preferiam os atalhos das epidemias de cesáreas, gente faminta de lucros, Ai, Ele está vindo, minha menina, ele está vindo.
Aquele que vem em nome do amor deveria ser bem recebido, sem açodamento, Ai, Mais um pouco, assim, menina. Um pouco mais de força e tudo se faz de novo, Ai, minha mãe, Ela chegou.



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