quarta-feira, 8 de junho de 2011

Não aguentava a impaciência da água e borbulhava junto


Mocotó e Mandinga

baitasar

As conversas no amanhecimento do dia, entre Manualdo, o sogro Ogum e a sogra Maria Memória, eram quase sempre silenciosas. Didáticas. Pergunta e resposta. Lacônicas. Curtas. Respeitavam os mistérios de cada um, como se tivessem dentro de si uma memória protegida, cada um é cada um. Mas aquela era uma manhã especial, o sonho imaginado do Manualdo se tornara vida vivida, Minha sogra, tenho vontade de servir mocotó ao meu modo, Qual o motivo dessa urgência, meu filho, Comemorar com a casa aberta e cheiro de comida, anunciar minha elevação de serventia. Maria Memória respondeu que mocotó era mocotó, não existia jeito muito diferente de cozinhar. Mas enfim, o genro fora promovido condutor de empilhadeira. Ganhou aumentou no salário, nas ambições e nas obrigações. Merecia. A mulher ofereceu o fogão das lenhas para os serviços de cozimento. O rapaz agradeceu, mas disse que preferia fazer do modo antigo, Fogo de chão, perguntou, em dúvida, a dona da casa, Jeito de escravo, respondeu Manualdo.

Depois, os dois homens saem pelo nevoeiro, deixaram com a Memória as formalidades do café.

Assoviam. Tinham pressa em chegar.

Aquele dia, no restante da semana, o rapaz passou em treinamento. Olhava. Escutava. Perguntava. Observava os empilhamentos, como levantar daqui para lá e trazer para cá. Uma semana para aprender como um homem livre... usando ferramental. As condições da vida não seriam menos difíceis, mas encontrara um jeito de resistir à escravidão da pobreza. Tentava re-escrever sua própria história. Aquela empilhadeira dava um sentido à liberdade.

Queria celebrar a vida.

No sábado, pela manhã, mais cedo que foi possível, Manualdo e Ogum foram a carniçaria. Queria comprar a canela do boi, linguiça, carne de charque, mondongo, coalhada, Seu João, o preço tá mais salgado que o charque, É o descontrole da inflação, rapaz, Isso parece bicho de 7 cabeças, Meu filho, dizem, não sei, mas dizem que a culpa é do petróleo, E o que a canela do boi tem com isso, Não sei, rapaz, mas cada vez que o boi desce do caminhão está mais caro.

Por conta das suas conversas de amizade com o açougueiro, comprava tudo no caderninho. O Seu João tinha dois cadernos com o nome do Manualdo. A cada vez que ele ou a esposa compravam na carniçaria, o Seu João anotava no caderno da loja de carnes, e também, no caderno do Manualdo, as compras feitas e o preço da mercadoria. No fim do mês, conferiam as coincidências nos dois cadernos, somavam e o Manualdo pagava.

Tudo anotado, as compras na sacola de lona, saíram do açougue. Foram ao armazém dos secos e molhados do Seu André. Queria batata, aipim, feijão branco, queijo ralado, salsinha, cebolinha verde. O rapaz mantinha outro caderno de crédito no armazém do Seu André.

Ogum fazia companhia de conversa e palpites. Apontava os melhores pedaços e porções, o privilégio da experiência. Discursava sobre as vantagens do boi com a canela grossa e as desvantagens do boi com a canela fina. Depois, ensinava como limpar as partes menos conhecidas e procuradas do animal chifrudo, Escaldar e esfregar sumo de limão, Pra que, Diminuir o cheiro de intestino, E precisa tanto esmero, Depende do nariz do freguês.

Depois que chegaram, encarregaram os gêmeos com a tarefa de buscar lenha. Duas viagens dos meninos e as provisões de tocos e gravetos eram boas, mas insuficiente. Precisava encomendar lenha cortada, Precisamos de mais lenha, Quanto, Acho que uma talha nos deixa com conforto de fogo, Isso é muito, Melhor sobrar que faltar. Mandou comprar a lenha, Meninos, quero lenha da acácia e eucalipto.

Assim, começaram os preparativos do mocotó. As conversas eram cantorias. Queriam que o propósito da festa chegasse aos ouvidos da vizinhança. Durante todo o dia, cada bater ritmado de palmas ou dos tambores cantando os rituais das palavras, sons, danças e cores celebravam a primeira assunção na família.

As mulheres recitavam o ponto em cantoria e dança, enquanto iam dando fervuras nas partes salgadas. Usavam o fogão das lenhas. A cada fervura trocavam a água. Até aprontar para colocar no panelão das patas e canelas do boi.

No fogo de chão, Manualdo fortalecia as labaredas com mais lenha e remexia o aguaceiro fervente. Não aguentava a impaciência da água e borbulhava junto.

Ogum limpava a manta do mondongo, pedaço por pedaço. Cuidadoso. Esfregava e lavava. Passava limão. Lavava. Esfregava. Exagero.

O recém promovido pediu à Memória para retirar a casca da mandioca e cortar a raiz em fatias finas, Minha sogra, depois dos ossos... mandioca ao fogo, Por que, meu filho, Engrossa o caldo, D’sso, não tinha conhecimento, meu povo tem muitos jeitos de uso com a mandioca, Aipim, Ou mandioca-mansa, e tem outra, A mandioca-brava... amarga, E essa faz o quê, É venenosa, Nossa Mãe do Céu, Não se preocupe, por aqui a gente só acha a mansa.

O dono da festa, vez que outra, pegava as lenhas compradas e as rachava em tiras finas, Assim, reaviva o fogo mais rápido.

O dia se indo, mas o fogo não abrandava. Até que as partes moles do osso soltaram. Era tempo de fortalecer o batuque, os cantos saiam pelas mãos.

À noite, o brilho do fogo iluminando a negritude das mulheres e seus homens, encantamento de muita beleza. Chegara o tempo de amornar o cozimento, todos se requebravam, giravam no ritmo do batuque. A fervura aumentava os giros, ardiam os calcanhares.

A noite se completa quando o mocotó é servido.

As mãos do Manualdo seguravam a concha que mergulhava e enchia até derramar. Os pratos de alumínio recebiam o sopão de mocotó. O cheiro das ervas picadas foram espalhadas. O batuque cessou, as mãos e as bocas estavam no serviço da alimentação. Manualdo ergueu os olhos e observava sua mulher. A sua preta estava graúda de linda. Tinha muita beleza. Estava com ganas de falar do seu apaixonamento.

Manualdo pegou o seu prato e sentou ao lado do mais velho, tinha curiosidade de fazer uma pergunta, Ogum, quem é o velho Ayris, Não sei, uma história que ficou perdida no esquecimento. O rapaz voltou atenção ao seu prato com um sorriso nos lábios.

É isso, os homens e as mulheres não podem ser medidos aos palmos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário