sábado, 25 de junho de 2011

Tinha os nós dos dedos esfolados


Natal Novo, Ano Velho

baitasar

Maria Cariciosa chegava no sítio de trabalho e, no mesmo instante, suas crianças gêmeas ficavam ocultas do pensamento, vivia a fantasia de agradar à patroa. Personagem do cotidiano serviçal, Bom dia, dona Clara, Bom dia, Maria.

A vida é assim, Clara era a dona; Maria foi criada para servir. Mandava quem podia, obedecia quem precisava.

As preocupações com os seus gêmeos ficavam diluídas, entregues ao sono da tarefas. Estava largada nas vontades da patroa. Entrava no quarto das bebês. Duas meninas.

Olhava a sua volta e pegava as coleiras.

Saia para passear com as duas presas em suas gargalheiras. Tuca e Farofa abanavam saltavam latiam.

Dona Clara fazia as recomendações de sempre, Maria... não esquece que você é quem pensa melhor, não perca o controle da situação, Pode deixar, dona Clara.

Na volta do passeio, dona Clara colocava as três sentadas, sempre cheia de cuidados para aclarar que o lugar do xixi e do cocô não era nas calçadas e gramados dos vizinhos, Onde eu faço, dona Clara, Leva as minhas crianças na praça do chafariz, Au au au, Viu, Maria, as minhas filhas parecem gente.

Os dias e noites passavam. O cotidiano chegava para todos, até para os cachorreiros. O Natal estava montando os enfeites das casas e diminuindo o dinheiro dos bolsos.

As festas do final do ano, todos os anos, traziam esperança, talvez no ano que vem uma vida nova, talvez talvez... Quem sabe, ela e o Manualdo terminavam o levantamento de tijolo da casa. Cada um ia ao mundo procurando emprego de mais ganho, talvez talvez...

As crianças da Cariciosa usavam suas roupinhas novas de segundo dono. Dona Clara estava se desfazendo das coisas de costume da sua filhinha Maria Clara. Morta num pulo sobre uma vara de bambu. Foi para a Terra dos anjos.. Soldados do Senhor. Finou-se.

O marido da dona Clara fugia da casa e das lembranças. A patroa não reclamava, mas toda mulher reconhece outra que vive infeliz... com nenhum amor, mas isso era lá com a patroa e o delegado.

Naquele Natal, depois da ceia com galinha e farofa, a família estava quase toda na praça do chafariz. O prefeito mandou estourar fogos de artifício, ensaio para o ano novo.

Ali, no terreno da praça curado dos ferimentos, a escuridão da noite foi rasgada por riscos barulhentos, recheados de brilho e sonhos, mas não assustavam mais aquelas terras, aprenderam a fixar as raízes das histórias escondidas.

Retornaram às suas casas.

Maria Memória levava em seus braços Maria Destino, a menina dormia sono solto. Cariciosa e Manualdo, cada um do seu jeito, carregavam os gêmeos, Pena que acabou, Será que no ano que vem tem mais, Mais do quê, Estouros e luzes.

Acomodaram as crianças e continuaram com as conversas comidas bebidas. A cervejaria ia solta de mão em mão, de copo em copo. Os quitutes na volta da galinha eram saboreados na farra. Arroz com banana, lentilha, batata-doce com maçã. Manualdo queria mais cerveja, Agora chega, Minha preta, é Natal, quero beber até cair, Isso é que não, bêbado vestido é sempre borracho, Minha preta, não sou nenhum idiota, Cachaça não dá juízo.

Memória e Cariciosa lavavam copos pratos talheres, não deixavam vestígios de comida para baratas.

Ogum e Manualdo limpavam a última garrafa de cerveja. Não deixavam vestígios de sóbrios. Estavam bebãos.

A festa do Natal acabou.

A Cariciosa colocou olho de curiosa no Manualdo. O bugre estava jogado de barriga na cama, babava pela boca aberta e ventilava pela cueca. Dormia o sono solto. Ela revirou os olhos para cima e agradeceu a graça divina.

Na manhã seguinte, a ressaca levantou e comeu o que achou. Não falava. Não abria os olhos. Respirava e abocanhava as sobras.

Quando Manualdo decidiu que apenas sobreviver não bastava, levantou do coma. O borrachudo hesitava entre coisa alguma e nada.

Foi até o portão. Aquela cerca de madeiras precisava reparos. Naquele dia, não.

Um cachorro desorientado e perdido vagava de portão em portão. Ia e vinha. Cheirava. Acuava. Reconheceu o animal pelas fitinhas, Tuca Tuca. A cadelinha olhou na sua direção, mas continuou seu destino desatinado. Chamou pela Cariciosa e seguiu o bicho.

A sua preta chegou para serviço extra de socorro. A Tuca seguiu fugindo. Estava fora do lugar e desajuizada. Gente ou bicho desamparado fica surdo e vê malquerença por toda parte. Olha e não enxerga. Escuta e não ouve. Caminha e não sai do lugar. Tem fome, mas não é da comida.

Gente ou bicho é tudo igual quando estão apartados da vida, Tuca Tuca.

O bugre lembrou-se da avenida de movimento, estava lá, mais na frente. Imaginou o bicho esparramado. A Cariciosa e a cachorra iam adiantadas dele. Seguia como podia. Atrasado. A cabeça latejava. A claridade, os olhos de bebedeira, a correria das duas. O coração estava na boca. Desejava estar dirigindo a empilhadeira. Viu quando sua Maria entrou na avenida. Um carro todo preto freou bruscamente. Os pneus arrastavam o chão.

O coração descontrolou.

Quando conseguiu espichar melhor a sua visão de ver longe, lá estavam as duas. Paradas no meio da avenida, entre fuscas e opalas. Os carros acuados. A mulher segurava a cachorra no colo. A boca aberta, a língua caída da boca, os olhos arregalados. O coração galopava no seu peito peludo. Estavam salvas.

O coração do Manualdo quase lhe fugiu em desatino, mas já lhe obedecia.

Quando chegaram a sua casa, dona Clara já os esperava. Foi avisada pelos gêmeos. O marido Calçacurta estava junto, Obrigada, Maria, Vê se isso tem razão de acontecer, Os fogos de ontem enlouqueceram as duas, Os bichos não aguentam.

A beleza e o brilho das explosões de ontem virou queixume, Dinheiro colocado fora, Barulho de mais, Estava preocupada, a coitadinha perdida por essas vilas, cheia de cachorros vira-latas.

Cuidado com esses... criados soltos feito bezerros, Vileros, foi a rezinga imperceptível da dona Clara.

Maria Memória apareceu quase no fim da emergência, carregava a menina Destino no colo dos braços e fazia da teta a mamadeira de serventia, Seu delegado, Sim, Como o Supimpa tem se saído nas tarefas de polícia, O rapaz é muito bom, tem futuro.

O filho não haveria de gostar do intrometimento da mãe, É que ele não tem aparecido em casa, Estamos envolvidos com uns serviços extras, mas não é para tanto.

A mulher do delegado estava sentada no carro, já tomada de impaciência. O delegado desenhou um sorriso breve. Maria Memória sentiu o frio que lhe descia pela espinha do corpo. Esse tal Calçacurta não perdia viagem, Nem um pequeno e sincero... obrigado, Isso não tem importância, Cale o que deu e fale o que recebeu.

O dia seguiu mormacento.

Supimpa chegou em casa. Era o polícia paisano da família. A mãe desconfiava que o rapaz tivesse outro domicílio de uso, pois não parava mais, É muito serviço, mãe, mas que diabo de serviço, Não tenho permissão de contar, Eu sou sua mãe, Tem coisa que é melhor desconhecer.

Ogum chegou a se mexer na cadeira para fazer pergunta, mas, por dentro da cachola, pensou que não valia nenhum intrometimento. Imaginação demais espanta o bom senso. Voltou à ressaca de dormir.

Tudo se acostuma ou, pelo menos, faz cara de conformação.

A conversa foi à cozinha, terminavam na mesa tudo que começavam sempre na volta do fogo.

Maria Memória sentou ao lado do filho, Tem galinha, você quer, Quero, estou com fome. Serviu o guri e fez mais perguntas, Meu filho, ta enrabichado em rabo de saia, Mãe... é o serviço, tem certeza, filho, Não se preocupe, Nunca vou deixar de me preocupar.

O rapaz levou as mãos para ajeitar os cabelos. Esse filho sentou praça no quartel, deu baixa da vida de milico e seguiu na vida, com convite do delegado Calçacurta, como soldado carcereiro, Meu filho, você machucou as mãos, Isso... não é nada, mãe.

Tinha os nós dos dedos esfolados.

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