sábado, 4 de junho de 2011

A ordem era remover a casa e o velho junto


Só saio morto

baitasar

Outra madrugada e os mesmos homens caminhando para o serviço dos empilhamentos, como dois fantasmas enfiados a contragosto dentro do nevoeiro, calados encolhidos distantes, gente marginal do carregamento e descarregamento, ignorantes da instrução com as formalidades dos livros, gente mal-assombrada. Burros. Não quiseram aproveitar, nem souberam fingir, bastava ler e fazer de conta. Azar. No nevoeiro, continuavam os mesmo humanos fictícios.

Manualdo buscava proteção, enfiado em sua toca de lã. No domingo, depois do barraco montado, fez plano silencioso, queria mudar o próprio jeito de carregar a carga. Caminhava decidido com a possibilidade do salário aumentado. Contava com o ovo antes da galinha. Nenhum comentário com Ogum, o sogro seguia a mesma caladura, não diria o que precisava conversar.

Os dois mantinham o silêncio das palavras, abriam a trilha, um passo por vez, nenhum encanto mágico, apenas o frio intensamente dolorido.

A dor ensina a gemer. Seguiam, repetiam os passos, um depois o outro, copiando a si mesmos.

Chegaram.

Ogum fez seu caminho decorado, direto às cargas. Empilhando um saco, depois outro, mais um, e assim para sempre, um homem movendo montanhas de um lugar à outro. Ensinado a não se revelar, acomodado com o óbvio, executava suas tarefas com paciência ordem determinação, deixou a poesia para os poetas.

Manualdo torceu os pés, caminhou até o encarregado das empilhadeiras, Seu Cícero, posso manobrar a empilhadeira, o chefe olhou o rapaz com desconfiança, Acho melhor, não, Por que, seu Cícero, Você e o Ogum são muito bons com a carga nas costas, é mais simples, o risco é menor, O salário também é menor, seu Cícero. O home estacionou os pés, olhou pensativo para o rapaz com uma das mãos à testa, acariciava as sobrancelhas, seu gesto de dúvida, Você consegue, Claro, seu Cícero, Onde você aprendeu, Aqui, olhando imitando sonhando, Tá bem, vamos ver o que você sabe fazer.

Manualdo não acreditou que foi tão fácil. Subiu na empilhadeira e sentou no banco do condutor, Seu Cícero, o mundo está diferente, É só o tempo de acostumar, rapaz. O encarregado pareceu gostar da iniciativa do Manualdo, mas o candidato precisava demonstrar sua capacidade para conduzir a máquina. Primeiro, as lanças desimpedidas, livres de qualquer carga. Depois, carregando nos braços da máquina o mundo do armazém de legumes e verduras, entrando e saindo nas passagens estreitas, Seu Cícero, to pronto. Pedia autorização para dar partida. A mão na chave da ignição e o pé pronto para acelerar.

Um rapaz leva e trás pede a atenção do encarregado e lhe fala ao ouvido. O homem olha para trás, na direção de uma imensa janela de vidro, de lá alguém lhe fazia sinais. O encarregado voltou a atenção para o Manualdo, Rapaz, o chefe quer que você desça, Não vou descer, Vamos rapaz, não crie problemas, Daqui só saio morto. Pensa na melhoria do pagamento, na lenha, na Cariciosa, na criança que está chegando, Não saio daqui, quero fazer o teste.

O chefe já tinha prometido a vaga para outro acobertado.

Ogum se aproximou do encarregado e repetiu uma história que já contara muitas, e mais vezes, Chefe, esse menino tinha um tio que morou em zona de muito alagamento na vila, E daí, E daí que durante muito tempo, na estação das chuvas, as águas invadiam becos e ruas. Não escolhiam onde cobriam de água, por todos os lados. Gente molhada nas cinturas. Os transportes ficavam no encargo dos caiaques canoas barcos, tudo movido pela força dos braços remando. As pessoas não saiam das suas casas com medo da pilhagem de piratas. Ficavam até o último instante da subida das águas, E a polícia, Seu Cícero, a polícia só entra na vila pra levar o corpo, Exagero. Eram tempos difíceis da convivência popular com a democracia do voto, os milicos mandavam por tudo e em todos. O prefeito da cidade era indicação de general. Assustavam com a fantástica zona de segurança nacional, ninguém votava em ninguém, pois, seu Cícero, para o bem e para o mal, um general deu a ordem para construção, Do quê, Um dique para contenção das águas. E assim, começou a ser feito. As casas que ficavam na faixa do aterramento precisavam ser removidas. Nossa gente chorava e as obras avançavam. Corriam contra o tempo das chuvaradas. A vila seria empurrada mais para dentro do anel, protegida do rio. Tinham negociado goela abaixo, manda quem pode e obedece quem precisa, mas faltava um detalhe, O que estava faltando, Acertar acordo com o tio do Manualdo, O homem pedia muito, Nada, Então, qual a dificuldade, Ele não queria sair da sua terra, repetia que dali só sairia morto.


Nesta altura da conversa o Cícero sentou nas caixas de tomate. Acendeu cigarro enquanto Ogum mantinha postura em pé, causa impressão mais forte. Avançava na história e o cigarro queimando a cada baforada, O xiru não cedia em nada. Chegaram as ordens para começar. As obras iniciaram de um lado e outro. Eram muitos quilômetros de comprimento. A casa do velho Ayris estava a meio caminho de um começo e outro. Chegava terra de tudo quanto era jeito, caminhão carroça carrinho de mão saco de pano, era preciso acabar o aterramento antes das chuvas.

Seu Cícero, dizem que foi a coisa mais linda de se ver, um formigueiro de gente, dia e noite, não paravam saindo ou chegando. O tempo das chuvas chegando e o dique ganhando forma e fama, mas a casa do velho Ayris ainda estava no mesmo lugar, Daqui só saio morto. O aterro crescendo de um lado e outro. As máquinas se aproximando. Até que chegou o inevitável, as máquinas pararam. A casa do velho Ayris estava no caminho do progresso, nada ia nem vinha. O momento inevitável, nada poderia continuar sem a amputação da casa do velho. A ordem era remover a casa e o velho junto, Daqui só saio morto, Então, assim seja, gritou uma voz na multidão, Calma, calma, foi o pedido do capataz, acho que podemos descansar. Foi até o velho Ayris e o convidou para uma churrasqueada, Seu Ayris, que tal um churrasco de acomodamento e paz, Podem se achegar. E ali, no chão da casa pretendida com demolição, os homens de boa vontade se puseram a assar um costelão de boi. As brasas estalavam de quentura e o aroma da carne cozinhando andava por todos. O velho e tradicional fogo de chão. Naquela tarde, comeram e beberam nas suas vontades. Quando as brasas foram virando cinza, a carne foi esfriando, a gordura endurecendo e a bebida acabou, o velho Ayris se desculpou, Os amigos me desculpem, mas vou descansar um pouco, meu tempo já terminou. Levantou e foi para o quarto. Depois de alguns minutos, ouviram o disparo de uma arma de fogo, Pam. O velho Ayris saiu morto da sua terra.

Seu Cícero, esse rapaz leva o mesmo jeito do velho Ayris, O que eu faço, Deixa o guri fazer o teste.

Naquela noite, Manualdo chegou desanuviado.

Teve empenho na cobiça das carnes da sua Cariciosa.

Estava forte. Segurou a notícia o quanto pode, até que entrando nas carnes da mulher, sussurrou nas orelhas, A empilhadeira é minha.


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