sexta-feira, 11 de maio de 2012

No sabía el precio


XXVII (2ª) - No se puede hacer la revolución sin las mujeres


o preço acaba com o milagre dos escrúpulos
baitasar
Não importa, eu já sabia que iria acontecer, não queria que acontecesse, mas o que estava escrito não dependia de ser desencorajado, tudo era muito claro, tem os que mandam e tem os que obedecem, e tem as mulheres
— Preta, quero comprar você.
— O seu pai já fez preço. — não sabia da conversa do anão com Dom Juan, quando me trouxeram de la Montaña, nunca soube, e depois do sumiço do pequeno e da Blanca, os Caraca eram o mais perto que podia chegar de ter uma família, o patrão nunca cobrou pela casa, comida e a roupa, gente de bem
— Não desse jeito. — e que outro poderia ser, me perguntava, lá estava eu encarando a solidão. A barulheira da casa e da rua não me adiantavam de nada, queria um abraço de carinho que me desse estimação de valor
— Que jeito é esse, Calçado. — olhei o mais velho direto no olho, que esse não era meu patrão. Sabia que devia obrigação de respeito ao patrão, mas o guri ainda precisava crescer na ambição. Parecia mais envergonhado que cusco perdido com as beatas e beatos no meio das cantorias de procissão. A ladainha perfilada entre os pés que se arrastavam, levantando a poeira dos pecados que subia pelas virilhas, entrava pelo nariz, engasgava na garganta e seguia o cortejo no entorno da praça e da igreja, voltava ao início e recomeçava
— Ave Maria cheia de graça... — o beiral do cortejo passava de largo e não entrava, seguia mais uma volta. As velas acesas queimando os dedos, os pecados das mãos encobertos na cera gozada, a chama do fogo dançando com as cantorias, o ar das ladainhas que sai das bocas, o caule encharcado, os pés arrastados, as virilhas em fogo lamentavam e prometiam não zombar da vida, o guri insistia no feitio da compra
— Jeito de mulher — começou assim minha ambição de dinheiro fácil. Não fiquei envergonhada nem estava surpresa, mas precisava do tempo de pensar. Não tinha jeito de mulher fácil, nem sabia contar dinheiro, mas uma oportunidade, dessas de dar água na boca e enfezar a mais tranquila das mulheres, acontece lá de vez em quando, e para muitas nem acontece, parece enfeitiçamento, uma coisa em mim que carrego desde la Montaña: juízo para sobreviver. Aprendi que os espíritos têm influência nos resultados, mas os homens decidem se vou chorar ou rir, assim, tratei de sempre estar em bons termos com eles. Nada seria de graça
— Não sei se lhe quero fazer o favor. — criancice de miúda, negócios são negócios
— Não é pra mim. — pareceu encher o peito antes de anunciar a sua arrogância de macho, amor-próprio equilibrado pelo fio inquieto do medo, coisa de guri mijão. Descobri que para sobreviver com sucesso nesse ramo de negócios não bastava boniteza, tinha necessidade de aprender as fraquezas de um e de outro. Foi bom não ter ido à escola, minha atenção de leitura pode se concentrar nas gramáticas que ficavam de acordo com a freguesia, as contas de números aprendi de fazer com os olhos fechados enquanto me serviam de sela
— Hum... o patrãozinho tem quem lhe sirva. — sabia que fazia deboche. Esse assunto de servir desse jeito era uma novidade, para eles e para mim, as crianças crescem e nem toda cantilena do mundo consegue apagar esse vulcão que acumula a cera branca nas virilhas, mais dia menos dia, a terra há de tremer e a boca do vulcão vai cuspir o seu fogo incontrolável.  O cerúmen sairá derramado pela boca do vulcão
— Então, peça mais um favor pra quem já lhe serve. — dito assim, pode lhe parecer que eu estava enciumada e deixava a obrigação para outras mãos
— A mesma comida no mesmo prato não dá apetite. — o mijão aparecia com resposta para tudo
— Que importância há de ter quem fez ou recebeu o favor?
— O favor é para o Crespo.
Tinha sentido o tal propósito, ficava tudo em casa, mas não por um preço sem valor. Foi quando cheguei num impasse: no sabía el precio. Compreendia que precisava descobrir antes de aceitar aquele comércio
— Vou pensar e lhe aviso da minha vontade. — como se uma índia madraça tivesse vontade de respeito. Eu queria tempo antes de aceitar ou negar. Não sabia o preço, não sabia se compensava vender os favores em que minha irmã Blanca afogava o anão de graça, era a vontade própria dos espíritos.
Aprendi as sem-vergonhices das virilhas nas sombras das velas, olhava espiando os dois se afogueirando. Agora, aquela bisbilhotice podia me ajudar, até ter o meu próprio jeito. A decisão estava tomada, precisava ter o meu próprio preço e arrancar o medo de ser enfiada pela primeira vez, devia abrir a porteira da boiada.
Tinha meus encantamentos, mas não tinha mais uma irmã, sozinha num mundo de homens cegos pelo buraquinho que carregava entre as pernas. Não iria me vender toda, apenas o buraquinho. E sem tocar no cuspe da boca
 — No quiero besar.
— Combinado. — faltava o preço que eu não sabia. Arrendava o buraquinho e guardava o cuspe. E o preço que não descobria.
Inventava que o Calçado combinava com o Crespo o jeito de deitar comigo e me davam o valor que eu nem me tinha: la Preta, una chica de la Montaña, es diferente.
Era uma criança, mas já sabia das fantasias dos machos, guris ou velhos, são sempre as mesmas: ¡Niñas virgenes!
Encanta ao macho enfiar a espada e abrir o ventre ao meio, até que o sangue branco misturado ao vermelho escorregue para suas mãos e boca. Não existe sabedoria nem inteligência, apenas o preço que não sabia, se não sabia, podia perder
— Preta, quando o guri vai te abrir ao meio? — quanta pressa. Eu não tinha pressa alguma, não tinha nem preço
— O guri está com a vontade se acumulando.
— Ensine o bom uso das mãos. — é por aí que se começa
 — Isso é contigo, não tenho jeito de professor. — pensei em subir o preço que não tinha. Ensinar o guri a me enfiar, eu que nunca tinha sido enfiada, devia valer um preço melhorado
— Preta, tu é só uma ama inventada, índia criada, serviçal de qualquer serviço
— Desse jeito não se chega em lugar algum, é até melhor o guri ficar com o rabo entre as pernas. — macho com a língua despregada por necessidade de falar das outras: son los huesos de este trabajo la demência y el cuello; é pior que mulher mijona.
Os dias iam se passando assim, um pouco negociava, outro pouco negava, mas, na maioria do tempo, que não era meu, cuidava do miudim leporino. Ele servia de arma defensiva que resguardava o meu corpo de golpes.
Não tinha preço, não tinha um caderno de clientes, não tinha um alcoviteiro de proteção, eu era um livro em branco. Não tinha inveja, não conhecia nenhuma puta, não podia comparar vidas, nem julgar. Eu sou eu, as outras eram as outras. O problema era não saber o preço: cobrar demais, até que podia, mas nunca cobrar de menos.
Tinha que me concentrar para convencer o Calçado que o preço não tinha preço porque a mercadoria era de muito valor. Aumentava o peso da minha responsabilidade, nada que não pudesse dar conta. Um guri se debatendo com a palma da mão e revistas peladas não metia medo, metia preocupação esse encontro de negócios, entre dois desajeitados
— Calçado, eu aceito!
— Qual é o preço? — tudo tem preço, queira ou não queira, com promessa ou sem promessa, o preço acaba com o milagre dos escrúpulos.


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