quinta-feira, 24 de maio de 2012

Nada é fácil de entender sem um colo

XXIX (2ª) - No se puede hacer la revolución sin las mujeres


o cuspe seca na mão
baitasar
— Preta... — levei um susto com o sussurro do meu nome, um ar espremido e quente me entrou nas orelhas. Abri os olhos para enxergar aquela voz ardente. O leporino dormia em meus braços, estava agarrado pela boca no meu biquinho espremido. Naquele escuro pensei nalgum espírito ofendido com aquele jogo de dá não dá. Queria pensar em alguma coisa que pudesse ser dita, nada me vinha na língua
— Esse guri pendurado pela boca é feliz, mas não sabe... então, não é feliz. — continuava adormecida, aquela voz me parecia conhecida, o hálito quente me entrava na boca, cada vez mais atrevido, mais perto
— O miudim dorme feliz. — retruquei por falar, qualquer coisa
— É conformista.
— Deixa de dizer bobagem e acende a lâmpada do quarto. — silêncio.
Podia sentir o medo me abraçando, eu rezava baixinho, as palavras me saiam como se fossem as palavras de la Vieja
— Ó tangas, ó mangas, ó mija verrumas, ó caga fivela, se quebrantes tinha na linda bundinha, por que a mim não vinhas, por quê? Que eu tirava com 3 maravalhos, com 3 baita caralhos, 3 peidos dos meus, 3 do velho Mateus, 3 da velha que se acoca e 3 da puta que pariu. — ouvi um clique e a lâmpada acendeu
— Qual é o preço? — depois de soltar o meu biquinho do aperto da sua chupação de dorminhoco, larguei o dormido na minha cama. Sentei. Esfregava os olhos para acordar a visão.
O Calçado esperava em pé, estaqueado na soleira da porta
— Mocinha, chega de enrolação, deixei as leiteiras e vim voando nos cascos do Aveia, preciso de resposta, exijo respeito.
— Já tenho resposta. — não tinha resposta, mas as forças da natureza estavam prontas para soltar sua tempestade. Ouvi a voz do céu depois do clarão do relâmpago, pedi para abrandar a tormenta. Resmungava por um colo para desaguar meu espírito, acomodação de reza não era suficiente, nada é fácil de entender sem um colo
— Quanto vai custar esse serviço de mulher? — pedi que se aproximasse e lhe contei baixinho o meu preço, para dentro do ouvido, não queria que nada se derramasse para fora, as paredes costumam ter ouvidos, os espíritos também
— Isso é mais que queremos pagar. — pensei que pudesse ter exagerado, mas que se danem, nem queria aquele negócio, foi tudo invenção deles. Apostava que o guri estava esfolado pelo uso da mão. Natural para quem não tem onde se enfiar, se não faz acaba ficando louco e se faz demais não sabe quando parar, vira tarado, fica com a mão amarrada no demônio.
— Por mim, não tem mais compra nem venda, fica o dito pelo não visto. — empurrei os ombros para cima e deixei que caíssem, fiz careta de indiferença, deixei as mãos no colo, os dedos enfiados entre os dedos. Encarei o mais velho no olho, frente a frente, me aprendia. Estava atenta em mim mesma. O agrado do guri seria o meu trabalho, me aprendia. Meus esconderijos seriam o meu passaporte para as coisas de comodidade do cotidiano que custam dinheiro, me aprendia. Ainda não estava atrás de prestígio, estava enfiada de maneira muito humilde na vida, me aprendia.
O mais velho saiu do meu compartimento dormitório, nem bem aceitou, nem mal negou. Levantei disposta a esquecer do desfeito do não feito. Olhei o miúdo que dormia o sono solto da preocupação de agradar, quem quer que seja, uma despreocupação já marcada para morrer. A gente vai crescendo esfomeada por carinho no pelo da carne, querendo agradar feito cachorro louco por uma calentura que nunca vem.
Fui até o baú com as coisas de herança que la Vieja me deixou. Peguei cascas de alho junto com o talo que sustenta os dentes, juntei um punhado de alecrim seco, coloquei tudo dentro de uma cabaça e queimei, enquanto a fumaça saia defumava os quatro cantos do dormitório. Queria espantar pensamentos ruins e perfumar o meu cantinho
— Guri, com dois eu te vejo, com três eu te ato, o sangue eu te bebo, o coração eu te parto, debaixo do meu pé esquerdo eu te encarco — tudo dito três vezes, batendo o pé esquerdo três vezes
— Preta! — dona Lara já tinha se livrado da preguiça no banho. Deixei a porta aberta, assim sabia de alguma reclamação do miudim, no tempo de fazer a higiene do quarto de dormir e enfezamento. Já vestimentada ela repetia as mesmas ordenanças para as mesmas tarefas, para a mesma presença silenciosa, se repetia sem memória, sem novidade
— Índia madraça... — não respondia, esperava em silêncio sua coleção de ordens: a banheira, as roupas abandonadas no chão, os papéis amarrotados, molhados, manchados e perdidos do cesto, a bacia sanitária por escovar até brilhar, as escovas, os cabelos perdidos da cabeça, as revistas, os jornais, os vidros da janela, limpar, assear, enxugar e revestir de branco.
Minha vaidade de criada aumentava minha seriedade e responsabilidade, não era uma qualquer; desobedecia com resignação à vontade de fugir para longe, não conseguia renunciar ao meu destino de índia madraça, o vício de ser criada-muda.
Ainda não sabia, não tinha como saber, mas o sentido da minha vida estava mudando, não seria mais limpar as sujeiras e dar aparência de bonito as vaidades de dona-de-casa da dona Lara. Esfregava a louça da bacia sanitária com toda minha vontade, a brancura precisava ter aparência de bonita e cheirar com perfumes de flores, aquele era o meu trabalho e precisava ser bem feito, nem precisava dos gritos de dona-de-casa
— Índia madraça! Deixa de bobagem e enfia limpeza neste vaso de assento! — o pior nunca foi enfiar a mão na imundície, mas o costume de enfiar a mão na imundície
— Tu ainda vai sentir falta, índia!
Dona Lara não calava meus pensamentos, mas sujava minhas mãos e as vontades do guri, sujeira por sujeira, melhor com pagamento
— Acho que ele paga para tocar nos meus esconderijos...

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