sábado, 26 de maio de 2012

O Hino Nacional


Becos sem saída - O descolocado
III
baitasar

Na chegada do seu roteiro trabalhista, o Virgílio vê Maria Memória que não ocupa seu lugar de sempre. Está acordada. Recostada na cama. Olhos estalados feito dois ovos fritos. Rolinhos a abocar a carapinha curta, coberta por lenço colorido. Neste despedaçar da rotina ele sente vontade de perguntar
—        Quem morreu?
Mas cala de cansaço. Quando um não quer os dois não brigam ou um só apanha. É o seu jeito, não é um contrariador quando o assunto é a Memória. Senta na cama para tirar as botinas
—        Por favor, homem de Deus, tira isso lá fora.
Os sussurros da Memória são ordens de sargento. O soldado fora delatado à sentinela pelo ocre das botinas, sem outra alternativa, levanta e vai até um dos cantos da casinha e desveste o sapato de cano
—        Não esquece de tirar as meias!
Olha para os pés e o dedão aponta para fora. Coloca água na bacia sobre a mesa, lava os braços e o rosto com um sabão de barra. Depois coloca a bacia no chão, tira as meias e mergulha os pés na água. Sente um pequeno arrepio enquanto esfrega os pés com o sabão. Seca o rosto, os braços e os pés. Deixa a toalha largada sob a mesa. Joga a água da bacia pela janela. Está pronto. Volta para a cama.
Na conversa daquela madrugada, ela o convence que precisam ser mais aproximados com os vizinhos. Afinal, é dezembro. O natal está chegando. O marido lhe fala do encontro com a vizinha
—        Hoje encontrei a vizinha no bonde, parecia cansada... desci no meu ponto e ela seguiu viagem.
–          Pois eu não vi movimento de saúva pela casa.
Quase lhe reclama que também está muito cansada e solitária. Ela não se rende a falta de entusiasmo do marido que, num último suspiro, tenta resistir
—        Minha nêga, não acha um pouco atrasado?
—        Por quê?
—        Eles já moram há quatro anos, aí ao lado...
—        E daí?
—        Daí, sejam bem-vindos, estamos quatro anos atrasados, não reparem somos um pouco estranhos.
Irritada, vira-se de lado na cama e pergunta se ele não tinha que trabalhar, o Virgílio responde com um dar de ombros
—        Acabei de chegar, minha nêga.
—        Chega, chega, está decidido, no domingo, faremos uma feijoada de boas-vindas e encerramento do ano.
O assunto estava apostado. Pronto. Sem mais nenhuma algazarra ou tumulto. Apagam-se na luz escura. O silêncio do sono invade a cama resfriada. Cada um para o seu lado. O braseiro foi amornado. Não querem mais filhos. Virgílio ronca quase que no instante em que fecha os olhos. Memória se vira e revira. Desiste de cutucar o homem. Quando um não quer o outro se revira e dorme
—        Assim é melhor, fico sem nenhum pecado da carne com necessidade de se confessar
Fica ali, sem movimento, a olhar a escuridade do negrume. O fechamento dos olhos se demora e o abraço do sono não lhe chega, ele está arredio e desconfiado. Pede aos anjos um tantinho de sono, mas os moleques não devem andar por esses lados. Depois de muito fuxicar adormece e os ouvidos emudecem os olhos. Afunda no assoalho da cama.
Naquela sexta-feira, Maria acorda entusiasmada. Coloca-se em movimento com energia redobrada. Vai até a vizinha para os convites. Tudo decente e rápido
—        Bom dia.
—        Bom dia.
—        No domingo vamos fazer feijoada.
—        É?
—        É... e vocês estão convidados.
—        Não sei, preciso falar com o Ogum.
–          Vizinha, vocês serão muito bem recebidos em nossa casa.
O dia se vem e se vai sem mais temores ou sustos. A noite já entra pela casinha da Memória e as crianças estão acomodadas para o sono. Revista os cantos e recantos, enquanto escuta as suas músicas no rádio
—        O que seria de mim sem esse companheiro?
Ouve o locutor, naquela sua boa voz, anunciar uma das suas músicas preferidas, tem muitas que gosta mais que outras de cantarolar pela casa, algumas são mais queridas que outras, como os filhos, ela gosta de todos... claro. Olha o Supimpa e o Lamparina com olhos de mãe sempre atenta. Mas os olhos que guarda para Cariciosa são de amiga e cúmplice da guria. Ela fica danada de contente assistindo a menina crescer
─         Agora para as nossas ouvintes, um samba-canção de 61, da autoria de Evaldo Gouveia e Jair Amorim, na voz de João Dias, Perdão Senhorita
Não se contém e sai a cantarolar. Adora João Dias. Faz coro ao cantor
—        Perdão senhorita se o amor de repente aconteceu
Quando num súbito de susto e estremecimento ouve a rádio interromper a programação e tocar o Hino Nacional. Para junto das paredes mornas do fogão de pedra
—        Ué, o que é isto?
─         Boa noite.
—        Boa noite. — responde ao homem da voz sobranceira.
Uma voz grave e pausada, definitiva, anuncia o discurso do Excelentíssimo Ministro da Justiça
─         O Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e considerando que a revolução de 31 de março de 1964...
Maria Memória perde sua atenção daquela fala tão sisuda. Está alegre. Convencida da bondade das pessoas. Solidariedade. Fraternidade. Família. Batuque. Deus. Saravá, mas aquela voz a perseguia, torturava seus ouvidos
─         O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nas Vilas e Municípios...
Ela só quer ser feliz, alguém cale essa voz e toque sua canção
─         O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio...
Deus, ela confia em você, faça alguma coisa
─         Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional...
Deus, ela não sabe disso de habeas corpus, passe para o lado dos perdedores. Ela ainda não sabe, mas há males que vêm para o mal
─         Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos...
Obá, não a abandone, ela conta com você
─         O presente Ato Institucional entra em vigor, nesta data. Revogadas as disposições em contrário, 13 de dezembro de 1968; 147º da Independência e 80º da República...
Deus... cale-se, você não está entendendo nada. A voz se cala e a Maria volta a ouvir o Hino Nacional. Está assustada. Continua parada junto à fornalha de barro. Não chama pelo Virgílio. Fica em silêncio. Talvez, nem descubram que eles existem.
As rádios voltam às canções. Olha para os lados. Respira aliviada. Nada mudou para Maria. Foi só um susto. Recomeça o zelo cuidadoso e desconfiado. Não sossega. Exausta se vai para o descaso do sono. O silêncio desalumiado se abre e a toma entre os braços. Deus é bom. Sente que ele cruza os braços em suas costas, a voz lhe escapa. Está encolhida. Dobrada pelos joelhos. Mais um dia de aparência lisa se vai concluir.
O sábado se mostra pequeno para as tarefas de anfitriã. Mas faz tudo dar certo. Sem mistérios. Sem choradeiras. Graças à vontade de Deus e seus orixás. Não vê o dia passar. Não presta atenção em nada. O banquete para os novos e para os antepassados está sendo aprontado.

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02 - Falta de costume com gosto de carne

04 - O domingo

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