Becos sem saída - O descolocado
III
baitasar
Na chegada do seu roteiro
trabalhista, o Virgílio vê Maria Memória que não ocupa seu lugar de sempre.
Está acordada. Recostada na cama. Olhos estalados feito dois ovos fritos. Rolinhos
a abocar a carapinha curta, coberta por lenço colorido. Neste despedaçar da
rotina ele sente vontade de perguntar
— Quem
morreu?
Mas cala de cansaço. Quando um
não quer os dois não brigam ou um só apanha. É o seu jeito, não é um
contrariador quando o assunto é a Memória. Senta na cama para tirar as botinas
— Por
favor, homem de Deus, tira isso lá fora.
Os sussurros da Memória são
ordens de sargento. O soldado fora delatado à sentinela pelo ocre das botinas,
sem outra alternativa, levanta e vai até um dos cantos da casinha e desveste o
sapato de cano
— Não
esquece de tirar as meias!
Olha para os pés e o dedão aponta
para fora. Coloca água na bacia sobre a mesa, lava os braços e o rosto com um
sabão de barra. Depois coloca a bacia no chão, tira as meias e mergulha os pés
na água. Sente um pequeno arrepio enquanto esfrega os pés com o sabão. Seca o
rosto, os braços e os pés. Deixa a toalha largada sob a mesa. Joga a água da
bacia pela janela. Está pronto. Volta para a cama.
Na conversa daquela madrugada,
ela o convence que precisam ser mais aproximados com os vizinhos. Afinal, é
dezembro. O natal está chegando. O marido lhe fala do encontro com a vizinha
— Hoje
encontrei a vizinha no bonde, parecia cansada... desci no meu ponto e ela
seguiu viagem.
– Pois
eu não vi movimento de saúva pela casa.
Quase lhe reclama que também está
muito cansada e solitária. Ela não se rende a falta de entusiasmo do marido que,
num último suspiro, tenta resistir
— Minha
nêga, não acha um pouco atrasado?
— Por
quê?
— Eles
já moram há quatro anos, aí ao lado...
— E
daí?
— Daí,
sejam bem-vindos, estamos quatro anos atrasados, não reparem somos um pouco
estranhos.
Irritada, vira-se de lado na cama
e pergunta se ele não tinha que trabalhar, o Virgílio responde com um dar de
ombros
— Acabei
de chegar, minha nêga.
— Chega,
chega, está decidido, no domingo, faremos uma feijoada de boas-vindas e
encerramento do ano.
O assunto estava apostado.
Pronto. Sem mais nenhuma algazarra ou tumulto. Apagam-se na luz escura. O
silêncio do sono invade a cama resfriada. Cada um para o seu lado. O braseiro
foi amornado. Não querem mais filhos. Virgílio ronca quase que no instante em
que fecha os olhos. Memória se vira e revira. Desiste de cutucar o homem.
Quando um não quer o outro se revira e dorme
— Assim
é melhor, fico sem nenhum pecado da carne com necessidade de se confessar
Fica ali, sem movimento, a olhar
a escuridade do negrume. O fechamento dos olhos se demora e o abraço do sono
não lhe chega, ele está arredio e desconfiado. Pede aos anjos um tantinho de
sono, mas os moleques não devem andar por esses lados. Depois de muito fuxicar
adormece e os ouvidos emudecem os olhos. Afunda no assoalho da cama.
Naquela sexta-feira, Maria acorda
entusiasmada. Coloca-se em movimento com energia redobrada. Vai até a vizinha
para os convites. Tudo decente e rápido
— Bom
dia.
— Bom
dia.
— No
domingo vamos fazer feijoada.
— É?
— É...
e vocês estão convidados.
— Não
sei, preciso falar com o Ogum.
– Vizinha,
vocês serão muito bem recebidos em nossa casa.
O dia se vem e se vai sem mais temores ou
sustos. A noite já entra pela casinha da Memória e as crianças estão acomodadas
para o sono. Revista os cantos e recantos, enquanto escuta as suas músicas no
rádio
— O
que seria de mim sem esse companheiro?
Ouve o locutor, naquela sua boa voz,
anunciar uma das suas músicas preferidas, tem muitas que gosta mais que outras
de cantarolar pela casa, algumas são mais queridas que outras, como os filhos,
ela gosta de todos... claro. Olha o Supimpa e o Lamparina com olhos de mãe
sempre atenta. Mas os olhos que guarda para Cariciosa são de amiga e cúmplice
da guria. Ela fica danada de contente assistindo a menina crescer
─ Agora
para as nossas ouvintes, um samba-canção de 61, da autoria de Evaldo Gouveia e
Jair Amorim, na voz de João Dias, Perdão Senhorita
Não se contém e sai a cantarolar. Adora
João Dias. Faz coro ao cantor
— Perdão
senhorita se o amor de repente aconteceu
Quando num súbito de susto e
estremecimento ouve a rádio interromper a programação e tocar o Hino Nacional. Para
junto das paredes mornas do fogão de pedra
— Ué,
o que é isto?
─ Boa
noite.
— Boa
noite. — responde ao homem da voz sobranceira.
Uma voz grave e pausada, definitiva,
anuncia o discurso do Excelentíssimo Ministro da Justiça
─ O
Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e considerando
que a revolução de 31 de março de 1964...
Maria Memória perde sua atenção daquela
fala tão sisuda. Está alegre. Convencida da bondade das pessoas. Solidariedade.
Fraternidade. Família. Batuque. Deus. Saravá, mas aquela voz a perseguia,
torturava seus ouvidos
─ O
Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nas
Vilas e Municípios...
Ela só quer ser feliz, alguém cale essa
voz e toque sua canção
─ O
Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição,
poderá decretar o estado de sítio...
Deus, ela confia em você, faça alguma
coisa
─ Fica
suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a
segurança nacional...
Deus, ela não sabe disso de habeas corpus,
passe para o lado dos perdedores. Ela ainda não sabe, mas há males que vêm para
o mal
─ Excluem-se
de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato
Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos...
Obá, não a abandone, ela conta com você
─ O
presente Ato Institucional entra em vigor, nesta data. Revogadas as disposições
em contrário, 13
de dezembro de 1968; 147º da Independência e 80º da República...
Deus... cale-se, você não está entendendo
nada. A voz se cala e a Maria volta a ouvir o Hino Nacional. Está assustada.
Continua parada junto à fornalha de barro. Não chama pelo Virgílio. Fica em silêncio. Talvez ,
nem descubram que eles existem.
As rádios voltam às canções. Olha
para os lados. Respira aliviada. Nada mudou para Maria. Foi só um susto.
Recomeça o zelo cuidadoso e desconfiado. Não sossega. Exausta se vai para o
descaso do sono. O silêncio desalumiado se abre e a toma entre os braços. Deus
é bom. Sente que ele cruza os braços em suas costas, a voz lhe escapa. Está
encolhida. Dobrada pelos joelhos. Mais um dia de aparência lisa se vai
concluir.
O sábado se mostra pequeno para
as tarefas de anfitriã. Mas faz tudo dar certo. Sem mistérios. Sem choradeiras.
Graças à vontade de Deus e seus orixás. Não vê o dia passar. Não presta atenção
em nada. O
banquete para os novos e para os antepassados está sendo aprontado.
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Leia também:
02 - Falta de costume com gosto de carne
04 - O domingo
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