Becos sem saída - Comunistas desgraçados
I
baitasar
A jovem
Maria Cariciosa entra pela pequena casa em rajadas rápidas, como o vento que se
antecipa a tempestade. Num assopro passa do pórtico de entrada à cozinha do
fogo a lenha. Cortinas de pano esvoaçam e se abrem, janelas se batem naquele
entardecer mormacento. As paredes sem reboco gemem de desconcerto, estão
desguarnecidas na sua feiúra, ressentidas pela luz da menina e sua beleza anatomista.
Ela não é destas paredes, mas vai morrer aqui. O ar venta todo desconjuntado na
sua passagem. O assoalho de madeira estremece e geme. As galinhas engordando no
porão da casa se agitam em cocorocós. As pulgas pulam nas frestas do assoalho.
A mãe,
Maria Memória, recolhe os olhos dos afazeres domésticos, quefazeres dignos de
toda mulher que preze o seu lar. Ainda não está gordinha, mas já vive época de útero
cheio. É o sexto vivo. É quase tempo de apontar o brotamento. Uns poucos dias
atrás, se percebeu com embaraço de barriga. Justo quando as regras teimaram em
não sangrar. Mas é noticiário de poucos dias, vai deixar passar mais um tempo
da semeadura do Ogum. Está surpresa que ele não tenha feito nenhum comentário
de curiosidade, com os gêmeos foi o primeiro a apontar o brotamento. Logo, todos
se vão movimentar na expectativa da colheita do plantado. Mais uma boca, mais
um filho do Ogum. Passa as mãos sobre o ventre livre, sente crescendo a beleza escura-como-a-noite
da criança, com se fosse uma encantaria. Tem na certeza que será outra Maria.
Olha
para aquela que educa com carinho, renúncia e devotamento, ela chega em
redemoinhos, linda na sua cor de negra e carapinha dura, desenrolada em dezenas
de finas tranças, corridinhas, enfeitadas com miçangas. Os olhos amendoados são
duros de enfrentar. Jura que ela está fora de lugar. É uma boa menina, não
aprendeu as maldades que a vida tem
— Mamã, mamã!
— O quê, minha filha?
— Acabei de ouvir na praça...
— Fala logo, guria.
— Criaram uma nova lei.
— Isso lá, é novidade, mocinha...
— Mamã, agora só pode casar quem planta
dez árvores.
— O quê?
Memória
para de se afumentar. Isso é novidade pra lá de grande. Esquisita. Não via
serventia imediata de plantar tanta árvore, será que vão aumentar o mato do capão?
Ali, só tem corvo vestido de preto. Nem imagina como alguém tenha chegado nesse
número de dez árvores. Mas enfim, nunca se sabe quem vai abrir a porta antes
dela ser aberta
— Isso mesmo que a senhora escutou.
— Por quê?
— Deve ser pra ajudar a diminuir o calor
fazendo mais sombra
— Tem coisa aí, algum safado querendo
vender semente ou buraco no chão.
— E tem mais...
— Diz tudo de vez, menina.
— E pra separar depois de casados tem que
plantar vinte árvores.
— Por quê?
— É certo, tem lógica.
Maria
Cariciosa se vira e encara o pai não natural, aquele que recria os filhos do Virgílio,
sabe que cavalo dado não se olha os dentes
— Qual a justeza desse raciocínio, Ogum?
— Pra reparar o paraíso destruído custa
mais caro, minha postiça.
— Mas que paraíso, negão?
Memória se
intromete de supetão, não tem medo de escorregar da língua e atravessar o samba
— Minha preta, o lugar das delícias é o
casamento.
— Sse existe céu o inferno é por aqui.
O Ogum
amoroso não se deixa assustar, a colher é que sabe a quentura da panela, ignora
que a sua preta graúda vive de provocar, é o seu jeito de viver um dia depois
do outro
— O que Deus uniu ninguém pode separar,
minha preta.
— Nem sempre, negão, nem sempre.
— De acordo minha preta, temos casos e
casos, conheço casal amigado com fé que pra mim casado é.
— E daí?
— Agora, com uma ajudazinha pra natureza,
já pode estender o pé até onde lhe chega o lençol, casamento naturalista.
Maria
Cariciosa apenas observa, aprendeu que no duelo daqueles dois não há espaço
para desgarrados. Os gêmeos brincam na volta do Ogum.
Maria Memória desmancha aquela disputa com um virar de ombros. Olha para
sua menina, pensa no vestido branco preparado para Maria Cariciosa, em moldes
de casamento. Vê a si mesma, entrando na igreja, feliz, radiante, o beco em
alvoroço de festa, e agora, mais isso de plantar árvores, grita com raiva
— Isso é coisa desses
comunistas.
— Mas que droga mamã, isso lá
interessa?
— Interessa, sim.
— Mamã, quero saber do meu
casório com o Manualdo.
— Calma, mocinha, nos últimos
recursos o negão sai plantando árvores pela rua.
A menina
ainda solteira de direito, quase casada pelos fatos, lança olhar para a sala da
televisão, preto e branco, mas, também, sala do jantar, visita ou quarto dos
irmãos, vê o paizão da mãe, agarrado nos gêmeos
— Você planta, Ogum?
— Já tenho tudo em incubação.
Esse é o
tal que vai resolver com as plantações de árvores quando tudo o mais tiver
falhado. Um pai biônico. Boné de couro enfiado na cabeça, ferroviário, na cor
preta, lembrança dos tempos de ferrovia. Barba branca falhada, por fazer. Não se
lembra de ver o pai Ogum sem o boné. Nem percebe algum aforçuramento de
empolgação. Começa a duvidar que esse casamento arrede das intenções. Aqui na
vila ou no beco, tudo é apenas vontade. Ainda vivem sem esgoto e a energia
continua a chegar num único poste. A força sai num emaranhado de fios
desencontrados. O beco do pau dos fios da luz. Fincado bem na entrada. A cada
novo morador mais fios nascem naquele emaranhado. E, a cada dia, as chances de
uma desgraça são maiores. Bombeiro ou ambulância não entra no beco, só
derrubando o pau cravado no chão. A água não chegou em todas as casas, não
existem milagres. É preciso fazer fila de espera na bica pública com as latas
de recolher água nas mãos
— Donde menos se espera não sai nada.
— O que foi, minha filha?
— Nada, mamã, apenas resmungos.
Até nem
parece que é com Ogum essa emergência das árvores, já está voltado para o
televisor, a Cariciosa olha para o homem que tem préstimos de pai emprestado e
desvenda mais outro mistério, é verdade que cada um só dá o que tem
— Mamã, que jeito de árvore se planta
nestas quenturas?
— Não sei, não.
— É não ter o que fazer!
— Tanta coisa pra meter na cabeça e agora
mais essa.
Pensam no
barraco que precisa ser construído. Nada dessas coisas de madeira e lona. Tudo
bem feitinho pra não ter rato e barata e sapo. Têm nojo de sapo, odeiam ratos, mas
da barata fogem como condenadas. Não basta afugentá-las, é preciso exterminar. Entram
em pânico. Assustam
todos na volta. Até quem não tem medo se assusta com a algazarra, a desordem e
a bagunça. Correm para longe. Elas jamais se atrevem a enfrentar o feitiço das
baratas. Saem em retirada e aos gritos, acho que para afastar o pesadelo ou
assustar os insetos se deixam ficar com estremecimentos pelo corpo.
Antigamente,
quando os navios carregavam gente como escrava, de um lugar para outro, houve
uma vez um rei, o chamavam pelo alusivo de Mularara, que cuidava de baratas
para tirar remédios e alimentos. A presença de baratas no reino era presságio
de felicidade. Menos para o rei que não achava esposa que lhe desse um filho
para continuar sua linhagem. Nenhuma mulher aceitava morar em sua casa simples,
infestada de baratas, distante do palácio real. Certo dia, Mularara fez uma
longa viagem em busca de esposa. Após percorrer muitos caminhos, o rei retornou
com a bela Moliehi. Quando chegou à casa do rei, a esposa que era muito
aguardada ordenou o extermínio das baratas. O rei de superstição maior que o
amor por Moliehi desordenou o mata-mata das baratas. Muito entristecido mandou que
a esposa fosse isolada do reino. E as baratas saíram poupadas, para a felicidade
do seu povo. Moliehi, a partir daquele dia, desejou que todas as mulheres
tivessem nojo das baratas e obrigassem com gritos de desespero que os homens as
esmagassem. Casamento de imposição tem pouca duração, mas dobrada é a maldição
feita com cor de verdade da esposa desprezada.
Em uma
destas noites de muito calor, depois do banheiro construído e os canos dos
esgotos chegarem ao valo das águas escuras, Manualdo estava em visita de
reconhecimento. Ogum não chegara do trabalho. Naquele sábado arrumara hora
extra. Todos estavam constrangidos, evitavam dizer alguma bobagem e estragar a
primeira visita de consideração. Cariciosa foi a primeira a quebrar o gelo do
acontecimento, correu aos gritos pela casa
— Barata, uma barata!
Era a
maldição da bela Moliehi que se cumpria.
Manualdo,
que só estava em visita de primeiros cumprimentos com a família da menina, se
armou com o tênis e esmagou a nojenta no chão. Ergueu o corpo e com pose de
macho protetor gritou
— Outra barata, mais uma e outra...
Correu
atrás das baratas. Os bichos procuravam as frestas e os buracos no assoalho. As
mulheres procuravam as cadeiras e as mesas. Umas fugiam das outras. E o
Manualdo seguia esmagando. Achatou uma... depois outra e mais outra. Um rastro
de Moliehi com tripas esmagadas
— Onde?
— Ali, ali e ali!
— Ai, ai, ai, meu Deus!
— Outra, tem outra!
O jovem
guerreiro esmagava uma a uma aquelas que tentavam entrar. Elas vinham por baixo
da porta. Paredes e chão estavam repletos de corpos esmagados pelo cassete do
Manualdo. O rapaz, depois de perceber que se tratava de uma invasão, tirou o
outro tênis e armado atirava como uma metralhadora, com as duas mãos. Quando
parte do exército invasor pareceu recuar, o artilheiro abriu a porta e seguiu a
trilha das fujonas. Ele caminhava descalço sobre os corpos feridos, pequenos ou
grandes. Nem todas puderam retornar para a escuridão do esgoto da casa, seus
corpos ficaram estendidos sobre o chão de terra. Trucidados. O rapaz tomou uma
decisão rápida
— Cariciosa,
me alcança o querosene! — a solução final
— Cuidado, meu amor.
Levantou
a tampa da caixa do esgoto e os gritos de pavor tomaram conta de todos, eram muitas,
milhares de baratas se reunindo para o ataque final. Famílias inteiras. Quem
sabe, o final dos sonhos fosse uma invasão de baratas
— Meu Deus!
— Vamos fugir!
— Chamem mais ajuda!
Manualdo
jogou o querosene no buraco e riscou um fósforo. O buraco se desfez em chamas,
sob o clarão da fornalha. Foram torradas. Naquela noite, Manualdo conquistou o
direito de entrar para a família. O preço pago é continuar a sentir as baratas
descascadas rastejando por suas pernas, mas de qualquer modo dos males o menor.
A Maria Memória saiu com o rapaz pelo braço a apresentar pelo beco
— Esse é o Manualdo, rapaz de coragem e
desembaraço, matou as comunistas!
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04 - O domingo
06 - Venha e me entre
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