segunda-feira, 28 de maio de 2012

Só casa se plantar dez árvores

Becos sem saída - Comunistas desgraçados
I
baitasar
A jovem Maria Cariciosa entra pela pequena casa em rajadas rápidas, como o vento que se antecipa a tempestade. Num assopro passa do pórtico de entrada à cozinha do fogo a lenha. Cortinas de pano esvoaçam e se abrem, janelas se batem naquele entardecer mormacento. As paredes sem reboco gemem de desconcerto, estão desguarnecidas na sua feiúra, ressentidas pela luz da menina e sua beleza anatomista. Ela não é destas paredes, mas vai morrer aqui. O ar venta todo desconjuntado na sua passagem. O assoalho de madeira estremece e geme. As galinhas engordando no porão da casa se agitam em cocorocós. As pulgas pulam nas frestas do assoalho.
A mãe, Maria Memória, recolhe os olhos dos afazeres domésticos, quefazeres dignos de toda mulher que preze o seu lar. Ainda não está gordinha, mas já vive época de útero cheio. É o sexto vivo. É quase tempo de apontar o brotamento. Uns poucos dias atrás, se percebeu com embaraço de barriga. Justo quando as regras teimaram em não sangrar. Mas é noticiário de poucos dias, vai deixar passar mais um tempo da semeadura do Ogum. Está surpresa que ele não tenha feito nenhum comentário de curiosidade, com os gêmeos foi o primeiro a apontar o brotamento. Logo, todos se vão movimentar na expectativa da colheita do plantado. Mais uma boca, mais um filho do Ogum. Passa as mãos sobre o ventre livre, sente crescendo a beleza escura-como-a-noite da criança, com se fosse uma encantaria. Tem na certeza que será outra Maria.
Olha para aquela que educa com carinho, renúncia e devotamento, ela chega em redemoinhos, linda na sua cor de negra e carapinha dura, desenrolada em dezenas de finas tranças, corridinhas, enfeitadas com miçangas. Os olhos amendoados são duros de enfrentar. Jura que ela está fora de lugar. É uma boa menina, não aprendeu as maldades que a vida tem
—        Mamã, mamã!
—        O quê, minha filha?
—        Acabei de ouvir na praça...
—        Fala logo, guria.
—        Criaram uma nova lei.
—        Isso lá, é novidade, mocinha...
—        Mamã, agora só pode casar quem planta dez árvores.
—        O quê?
Memória para de se afumentar. Isso é novidade pra lá de grande. Esquisita. Não via serventia imediata de plantar tanta árvore, será que vão aumentar o mato do capão? Ali, só tem corvo vestido de preto. Nem imagina como alguém tenha chegado nesse número de dez árvores. Mas enfim, nunca se sabe quem vai abrir a porta antes dela ser aberta
—        Isso mesmo que a senhora escutou.
—        Por quê?
—        Deve ser pra ajudar a diminuir o calor fazendo mais sombra
—        Tem coisa aí, algum safado querendo vender semente ou buraco no chão.
—        E tem mais...
—        Diz tudo de vez, menina.
—        E pra separar depois de casados tem que plantar vinte árvores.
—        Por quê?
—        É certo, tem lógica.
Maria Cariciosa se vira e encara o pai não natural, aquele que recria os filhos do Virgílio, sabe que cavalo dado não se olha os dentes
—        Qual a justeza desse raciocínio, Ogum?
—        Pra reparar o paraíso destruído custa mais caro, minha postiça.
—        Mas que paraíso, negão?
Memória se intromete de supetão, não tem medo de escorregar da língua e atravessar o samba
—        Minha preta, o lugar das delícias é o casamento.
—        Sse existe céu o inferno é por aqui.
O Ogum amoroso não se deixa assustar, a colher é que sabe a quentura da panela, ignora que a sua preta graúda vive de provocar, é o seu jeito de viver um dia depois do outro
—        O que Deus uniu ninguém pode separar, minha preta.
—        Nem sempre, negão, nem sempre.
—        De acordo minha preta, temos casos e casos, conheço casal amigado com fé que pra mim casado é.
—        E daí?
—        Agora, com uma ajudazinha pra natureza, já pode estender o pé até onde lhe chega o lençol, casamento naturalista.
Maria Cariciosa apenas observa, aprendeu que no duelo daqueles dois não há espaço para desgarrados. Os gêmeos brincam na volta do Ogum.
Maria Memória desmancha aquela disputa com um virar de ombros. Olha para sua menina, pensa no vestido branco preparado para Maria Cariciosa, em moldes de casamento. Vê a si mesma, entrando na igreja, feliz, radiante, o beco em alvoroço de festa, e agora, mais isso de plantar árvores, grita com raiva
—        Isso é coisa desses comunistas.
—        Mas que droga mamã, isso lá interessa?
—        Interessa, sim.
—        Mamã, quero saber do meu casório com o Manualdo.
—        Calma, mocinha, nos últimos recursos o negão sai plantando árvores pela rua.
A menina ainda solteira de direito, quase casada pelos fatos, lança olhar para a sala da televisão, preto e branco, mas, também, sala do jantar, visita ou quarto dos irmãos, vê o paizão da mãe, agarrado nos gêmeos
—        Você planta, Ogum?
—        Já tenho tudo em incubação.
Esse é o tal que vai resolver com as plantações de árvores quando tudo o mais tiver falhado. Um pai biônico. Boné de couro enfiado na cabeça, ferroviário, na cor preta, lembrança dos tempos de ferrovia. Barba branca falhada, por fazer. Não se lembra de ver o pai Ogum sem o boné. Nem percebe algum aforçuramento de empolgação. Começa a duvidar que esse casamento arrede das intenções. Aqui na vila ou no beco, tudo é apenas vontade. Ainda vivem sem esgoto e a energia continua a chegar num único poste. A força sai num emaranhado de fios desencontrados. O beco do pau dos fios da luz. Fincado bem na entrada. A cada novo morador mais fios nascem naquele emaranhado. E, a cada dia, as chances de uma desgraça são maiores. Bombeiro ou ambulância não entra no beco, só derrubando o pau cravado no chão. A água não chegou em todas as casas, não existem milagres. É preciso fazer fila de espera na bica pública com as latas de recolher água nas mãos
—        Donde menos se espera não sai nada.
—        O que foi, minha filha?
—        Nada, mamã, apenas resmungos.
Até nem parece que é com Ogum essa emergência das árvores, já está voltado para o televisor, a Cariciosa olha para o homem que tem préstimos de pai emprestado e desvenda mais outro mistério, é verdade que cada um só dá o que tem
—        Mamã, que jeito de árvore se planta nestas quenturas?
—        Não sei, não.
—        É não ter o que fazer!
—        Tanta coisa pra meter na cabeça e agora mais essa.
Pensam no barraco que precisa ser construído. Nada dessas coisas de madeira e lona. Tudo bem feitinho pra não ter rato e barata e sapo. Têm nojo de sapo, odeiam ratos, mas da barata fogem como condenadas. Não basta afugentá-las, é preciso exterminar. Entram em pânico. Assustam todos na volta. Até quem não tem medo se assusta com a algazarra, a desordem e a bagunça. Correm para longe. Elas jamais se atrevem a enfrentar o feitiço das baratas. Saem em retirada e aos gritos, acho que para afastar o pesadelo ou assustar os insetos se deixam ficar com estremecimentos pelo corpo.
Antigamente, quando os navios carregavam gente como escrava, de um lugar para outro, houve uma vez um rei, o chamavam pelo alusivo de Mularara, que cuidava de baratas para tirar remédios e alimentos. A presença de baratas no reino era presságio de felicidade. Menos para o rei que não achava esposa que lhe desse um filho para continuar sua linhagem. Nenhuma mulher aceitava morar em sua casa simples, infestada de baratas, distante do palácio real. Certo dia, Mularara fez uma longa viagem em busca de esposa. Após percorrer muitos caminhos, o rei retornou com a bela Moliehi. Quando chegou à casa do rei, a esposa que era muito aguardada ordenou o extermínio das baratas. O rei de superstição maior que o amor por Moliehi desordenou o mata-mata das baratas. Muito entristecido mandou que a esposa fosse isolada do reino. E as baratas saíram poupadas, para a felicidade do seu povo. Moliehi, a partir daquele dia, desejou que todas as mulheres tivessem nojo das baratas e obrigassem com gritos de desespero que os homens as esmagassem. Casamento de imposição tem pouca duração, mas dobrada é a maldição feita com cor de verdade da esposa desprezada.
Em uma destas noites de muito calor, depois do banheiro construído e os canos dos esgotos chegarem ao valo das águas escuras, Manualdo estava em visita de reconhecimento. Ogum não chegara do trabalho. Naquele sábado arrumara hora extra. Todos estavam constrangidos, evitavam dizer alguma bobagem e estragar a primeira visita de consideração. Cariciosa foi a primeira a quebrar o gelo do acontecimento, correu aos gritos pela casa
—        Barata, uma barata!
Era a maldição da bela Moliehi que se cumpria.
Manualdo, que só estava em visita de primeiros cumprimentos com a família da menina, se armou com o tênis e esmagou a nojenta no chão. Ergueu o corpo e com pose de macho protetor gritou
—        Outra barata, mais uma e outra...
Correu atrás das baratas. Os bichos procuravam as frestas e os buracos no assoalho. As mulheres procuravam as cadeiras e as mesas. Umas fugiam das outras. E o Manualdo seguia esmagando. Achatou uma... depois outra e mais outra. Um rastro de Moliehi com tripas esmagadas
—        Onde?
—        Ali, ali e ali!
—        Ai, ai, ai, meu Deus!
—        Outra, tem outra!

O jovem guerreiro esmagava uma a uma aquelas que tentavam entrar. Elas vinham por baixo da porta. Paredes e chão estavam repletos de corpos esmagados pelo cassete do Manualdo. O rapaz, depois de perceber que se tratava de uma invasão, tirou o outro tênis e armado atirava como uma metralhadora, com as duas mãos. Quando parte do exército invasor pareceu recuar, o artilheiro abriu a porta e seguiu a trilha das fujonas. Ele caminhava descalço sobre os corpos feridos, pequenos ou grandes. Nem todas puderam retornar para a escuridão do esgoto da casa, seus corpos ficaram estendidos sobre o chão de terra. Trucidados. O rapaz tomou uma decisão rápida
—        Cariciosa, me alcança o querosene! — a solução final
—        Cuidado, meu amor.

Levantou a tampa da caixa do esgoto e os gritos de pavor tomaram conta de todos, eram muitas, milhares de baratas se reunindo para o ataque final. Famílias inteiras. Quem sabe, o final dos sonhos fosse uma invasão de baratas

—        Meu Deus!
—        Vamos fugir!
—        Chamem mais ajuda!
Manualdo jogou o querosene no buraco e riscou um fósforo. O buraco se desfez em chamas, sob o clarão da fornalha. Foram torradas. Naquela noite, Manualdo conquistou o direito de entrar para a família. O preço pago é continuar a sentir as baratas descascadas rastejando por suas pernas, mas de qualquer modo dos males o menor. A Maria Memória saiu com o rapaz pelo braço a apresentar pelo beco
—        Esse é o Manualdo, rapaz de coragem e desembaraço, matou as comunistas!

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04 - O domingo

06 - Venha e me entre

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