Becos sem saída - O descolocado
IV
baitasar
É domingo.
Maria Memória odeia os domingos.
Muitas bocas para alimentar que não dão auxílio. Panelas, pratos, colheres,
garfos e facas para lavar e nenhuma ajudância. Marido e crianças atirados pelos
cantos. Dá de ombros e conclui as preliminares. Mesmo porque dar de ombros é o
que consegue nestes tempos de pau mole e barriga vazia. Olha o pátio, fiscaliza
o chão de terra e alguma grama
— Odeio
essa terra nos pés.
Fica na procura de formigas,
soterra todas com seus pés descalços, nenhum remorso. Bichos teimosos. Olha
para o céu na procura de insetos. Pronta para esmagar com as mãos
— Quem
com ferro fere, não sabe quanto dói.
— São
apenas moscas, Ogum.
A mesa está posta sob a lona verde-oliva
esticada. As laranjas, o pão, a farofa, a couve, os bolinhos de abará. A banana
da terra será servida frita como sobremesa. Tudo em seu lugar. Causa admiração.
Volta à janela, espera o movimento de lá para cá. O beco tem ficado deserto por
estes dias. Na parede do rádio está pendurado o quadro do Santo Padre, ajeita
um pequeno desvio que acredita ter visto. Uma inclinação para a direita.Vai até
o altar do seu orixá Obá. Faz reverência de reza. A sua casa está em ordem. Pega seus
balangandãs com alegria. Adora aquelas pratas pendentes na cintura.
Chegam. Estão exatos nos minutos ajustados em combinação. As
necessidades das duas casas foram satisfeitas. Uma pode se preparar sem
contrapor-se a outra no uso das mãos. Sem urgência. A cada vez que estendeu a
toalha à mesa, cobrindo-a, imaginou como deveria ser de préstimo ter tais mãos
ao alcance da vontade. Iniciar pelas mãos, continuar pela língua e acabar
indecente no fogaréu brotado entre as pernas. Não consegue esquecê-las. Pensa
que a falta de serventia do emprego com pagamento de dinheiro, devem deixar
aquelas mãos famintas de ajudar. Roga pelo perdão divino. A Ana dos bicos
arretados lhe estende a mão. Não tem estreiteza naquele aperto.
Memória percebe no peito da escrava Ana um pingente de proteção. A mulher
que visita percebe o olhar da dona da casa, comenta que é seu amuleto de sorte
— Lindo.
— Obrigada.
A Ana que visita agradece enquanto leva as mãos ao peito, instinto de
medo, suspeita de desconfiança
— É um cisne.
— Não... é uma cegonha.
— Não entendi.
— Queremos muito ter filhos.
— Não precisei de amuleto,
tenha tido sorte além da conta.
A Ana desconfiada pensa nessa gente de sorte que nem sabe de sorte
— To pensando em trocar por
um escaravelho.
— Por quê?
— Pendurado no pescoço faz
com que o amor seja para a vida toda, mas precisa ficar na altura do coração.
— E se não funciona como a
cegonha?
Ana está desconfiada, olha para a dona do convite desta visitação e
desanima das boas intenções
— Não entendi.
— Nada, bobagem.
E vira-se para o negralhão. O homem é mais vigoroso no perto da
aproximação e, por certo, conta com a proteção dos deuses
— Bom dia, senhor Ogum.
— Bom dia, minha senhora.
Naquele aperto das mãos se derrama com força
e abundância. Sente um estremecimento nas coxas, quase como um desfalecimento
das vontades. Os joelhos se dobram levemente. Ninguém percebe. Essas mãos podem
fazer da mulher ileié engaiolada uma negra desmiolada, entregue aos seus
abusos. Lembra que precisa rezar
— Sejam bem-vindos.
— Muita gentileza de vocês
nos receberem em sua casa.
— Fiquem à vontade.
— Alguém poderia trocar de
estação, colocar alguma coisa mais alegre?
Sugere Virgílio, apontando para o rádio colocado na janela, como se
estivesse observando o vai-e-vem daquele almoço. Olhando e guardando na
memória, depois espalharia tudo pelas vizinhanças que estivessem na sua
sintonia, outros rádios velhos e desconfortáveis como a vida que levam
— O que vocês querem ouvir?
Corrige a Memória
— Cartola.
Foi a sugestão da vizinha, agora mais relaxada, mas ainda com a mão no peito
— Por esses tempos, só toca
coisa de cabeludo
— Gente, esses cabeludos...
— Vocês já ouviram aquela ‘Quero
que vá tudo pró inferno’?
— Vamos comer... feijoada
fria não cobiça de devorar.
Convida a dona da casa, ansiosa da prestação de serviço à mesa. Lugar de
seus confortos e certezas. Na cama presta serviços de utilidade ao Virgílio,
mas isso de cozinhar é o prazer da mulher ileié de voar da gaiola.
Os estômagos satisfeitos relaxam, na medida em que a mesa esvazia
— Tudo perfeito, vizinha...
— Obrigada... seu Ogum.
Foi um dia de muita conversa reticente. Palavreado mole de muito tempo se
passando. Arrastado. Vontades contrariadas. O que era dito não enchia o vazio
da vontade insatisfeita. Aparências. Lembrança nostálgica do jamais feito.
Desfeito antes do acostumado. Uma festa que não acabou. Um descontentamento
subversivo. Uma vontade de comer insatisfeita. Nunca chega a vez da boca.
O almoço já se perdia na memória, os dias passam rápido e as noites
dormidas escorregam pelo ralo do temporal, um jeito de acenar boas-vindas e
despedidas.
Assim, inexoravelmente, outros dias e noites se vieram. Tensos. Monótonos.
Intoleráveis. Mecânicos. Explosivos. Não havia mais garantias de nada.
O improvável se sucedeu: Virgílio se foi com a zinha do Ogum.
Desapareceram Virgílio Silva e Ana Rosa Silva. Ele com os dentes de ouro e ela
com seu fogo de lamparina. Tornaram-se invisíveis.
Durante muitos dias, depois do sumiço, Maria Memória ficava quase
desmaiada no acordamento do dia, como se o seu espírito estivesse ausente.
Quando o sol rasgava a pele que cobria à noite, ela voltava e repetia que o seu
Virgílio estava encantado em uma árvore, estava com as sementes no chão. Eu queria
lhe assoprar com o jeito dos ventos daquela casa, o seu homem, por certo, havia
encontrado o caminho para o quilombo do rei Zumbi e esperava a estação de
brotar do cio da terra a nação dos negros. Não me tinha ouvidos. Nas horas de
desmaiamento, parecia que ficava sem a própria alma, não entendia o motivo da desaparição.
A dor desconhecida não tinha cicatrização. Parecia que dormia, mas não dormia,
sofria da desconfiança dormida.
Em uma manhã de desconfiança acordada, cheia de pesadelos de caveiras e
vermes, chegou a desejar ter o corpo do marido desaparecido para desenterrar.
Ninguém se espante ou vire as costas para essa mulher, que dor de
desaparecimento é assim mesmo, mistura de esperança com o cansaço da espera
inútil. Um desejo de desfecho na procura de uma explicação, um ponto final que
nunca chega. Uma desconfiança que não se termina
— Cruz e credo, Deus o tenha
vivo.
Depois do tempo de espera, sem as notícias de explicação da fugição, a
separação do vínculo conjugal foi o mais óbvio para todos. E, diante dos olhos
sonolentos das crianças, o negrão espadaúdo passou a cuidar das carnes da Maria
Memória. Assumiu os compromissos do Virgílio. Para a criançada, ela dissera que
era o melhor a fazer, precisavam encontrar os meios para se desfazer das
despesas, contas de comer e vestir. Toda família precisa de um chefe.
Coitado do espadaúdo, levanta antes do galo cantar e se sai para a
central dos legumes e verduras. Não reclama. Nem vem para os almoços, fica pela
obra de tijolos de onde sai para a segurança da firma. E a Memória, se conserva
todas as manhãs em
acordamento. Observa o seu pássaro engaiolado, pulando de
galho em galho, submetido às vontades daquele esqueleto de arame. Aquela eleié
está sem entender o seu pássaro engaiolado.
Virgílio deixou pra trás os filhos e os ganhos avulsos dos biscates. Não trocou
explicação. Virou só lembrança de antepassado.
Enquanto espera para ter o negão
Ogum ajuizado de emprego, ali, na clausura da acomodação doméstica continua enfiando as mãos. A roda da vida
parece que carrega o seu destino pra cá, depois que leva pra lá. O homem volta todas
as noites de costas curvadas e as mãos assoviando. É o novo chefe de família. É
assim mesmo, o novo sempre vem vestido de velho.
Na vitrola, achada atirada pelo chão das ruas, último presente do Virgílio,
antes da sumidura dele, escuta a voz de João Dias
─ Nas tuas mãos deixei meus
sonhos...
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Leia também:
03 - O Hino Nacional
05 - Só casa se plantar dez árvores
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