domingo, 27 de maio de 2012

O domingo


Becos sem saída - O descolocado
IV
baitasar
É domingo.

Maria Memória odeia os domingos. Muitas bocas para alimentar que não dão auxílio. Panelas, pratos, colheres, garfos e facas para lavar e nenhuma ajudância. Marido e crianças atirados pelos cantos. Dá de ombros e conclui as preliminares. Mesmo porque dar de ombros é o que consegue nestes tempos de pau mole e barriga vazia. Olha o pátio, fiscaliza o chão de terra e alguma grama
—        Odeio essa terra nos pés.

Fica na procura de formigas, soterra todas com seus pés descalços, nenhum remorso. Bichos teimosos. Olha para o céu na procura de insetos. Pronta para esmagar com as mãos
—        Quem com ferro fere, não sabe quanto dói.
—        São apenas moscas, Ogum.

A mesa está posta sob a lona verde-oliva esticada. As laranjas, o pão, a farofa, a couve, os bolinhos de abará. A banana da terra será servida frita como sobremesa. Tudo em seu lugar. Causa admiração. Volta à janela, espera o movimento de lá para cá. O beco tem ficado deserto por estes dias. Na parede do rádio está pendurado o quadro do Santo Padre, ajeita um pequeno desvio que acredita ter visto. Uma inclinação para a direita.Vai até o altar do seu orixá Obá. Faz reverência de reza. A sua casa está em ordem. Pega seus balangandãs com alegria. Adora aquelas pratas pendentes na cintura.

Chegam. Estão exatos nos minutos ajustados em combinação. As necessidades das duas casas foram satisfeitas. Uma pode se preparar sem contrapor-se a outra no uso das mãos. Sem urgência. A cada vez que estendeu a toalha à mesa, cobrindo-a, imaginou como deveria ser de préstimo ter tais mãos ao alcance da vontade. Iniciar pelas mãos, continuar pela língua e acabar indecente no fogaréu brotado entre as pernas. Não consegue esquecê-las. Pensa que a falta de serventia do emprego com pagamento de dinheiro, devem deixar aquelas mãos famintas de ajudar. Roga pelo perdão divino. A Ana dos bicos arretados lhe estende a mão. Não tem estreiteza naquele aperto.
Memória percebe no peito da escrava Ana um pingente de proteção. A mulher que visita percebe o olhar da dona da casa, comenta que é seu amuleto de sorte
—        Lindo.
—        Obrigada.
A Ana que visita agradece enquanto leva as mãos ao peito, instinto de medo, suspeita de desconfiança
—        É um cisne.
—        Não... é uma cegonha.
—        Não entendi.
—        Queremos muito ter filhos.
—        Não precisei de amuleto, tenha tido sorte além da conta.
A Ana desconfiada pensa nessa gente de sorte que nem sabe de sorte
—        To pensando em trocar por um escaravelho.
—        Por quê?
—        Pendurado no pescoço faz com que o amor seja para a vida toda, mas precisa ficar na altura do coração.
—        E se não funciona como a cegonha?
Ana está desconfiada, olha para a dona do convite desta visitação e desanima das boas intenções
—        Não entendi.
—        Nada, bobagem.
E vira-se para o negralhão. O homem é mais vigoroso no perto da aproximação e, por certo, conta com a proteção dos deuses
—        Bom dia, senhor Ogum.
—        Bom dia, minha senhora.
Naquele aperto das mãos se derrama com força e abundância. Sente um estremecimento nas coxas, quase como um desfalecimento das vontades. Os joelhos se dobram levemente. Ninguém percebe. Essas mãos podem fazer da mulher ileié engaiolada uma negra desmiolada, entregue aos seus abusos. Lembra que precisa rezar
—        Sejam bem-vindos.
—        Muita gentileza de vocês nos receberem em sua casa.
—        Fiquem à vontade.
—        Alguém poderia trocar de estação, colocar alguma coisa mais alegre?
Sugere Virgílio, apontando para o rádio colocado na janela, como se estivesse observando o vai-e-vem daquele almoço. Olhando e guardando na memória, depois espalharia tudo pelas vizinhanças que estivessem na sua sintonia, outros rádios velhos e desconfortáveis como a vida que levam
—        O que vocês querem ouvir?
Corrige a Memória
—        Cartola.
Foi a sugestão da vizinha, agora mais relaxada, mas ainda com a  mão no peito
—        Por esses tempos, só toca coisa de cabeludo
—        Gente, esses cabeludos...
—        Vocês já ouviram aquela ‘Quero que vá tudo pró inferno’?
—        Vamos comer... feijoada fria não cobiça de devorar.
Convida a dona da casa, ansiosa da prestação de serviço à mesa. Lugar de seus confortos e certezas. Na cama presta serviços de utilidade ao Virgílio, mas isso de cozinhar é o prazer da mulher ileié de voar da gaiola.
Os estômagos satisfeitos relaxam, na medida em que a mesa esvazia
—        Tudo perfeito, vizinha...
—        Obrigada... seu Ogum.
Foi um dia de muita conversa reticente. Palavreado mole de muito tempo se passando. Arrastado. Vontades contrariadas. O que era dito não enchia o vazio da vontade insatisfeita. Aparências. Lembrança nostálgica do jamais feito. Desfeito antes do acostumado. Uma festa que não acabou. Um descontentamento subversivo. Uma vontade de comer insatisfeita. Nunca chega a vez da boca.
O almoço já se perdia na memória, os dias passam rápido e as noites dormidas escorregam pelo ralo do temporal, um jeito de acenar boas-vindas e despedidas.
Assim, inexoravelmente, outros dias e noites se vieram. Tensos. Monótonos. Intoleráveis. Mecânicos. Explosivos. Não havia mais garantias de nada.
O improvável se sucedeu: Virgílio se foi com a zinha do Ogum. Desapareceram Virgílio Silva e Ana Rosa Silva. Ele com os dentes de ouro e ela com seu fogo de lamparina. Tornaram-se invisíveis.
Durante muitos dias, depois do sumiço, Maria Memória ficava quase desmaiada no acordamento do dia, como se o seu espírito estivesse ausente. Quando o sol rasgava a pele que cobria à noite, ela voltava e repetia que o seu Virgílio estava encantado em uma árvore, estava com as sementes no chão. Eu queria lhe assoprar com o jeito dos ventos daquela casa, o seu homem, por certo, havia encontrado o caminho para o quilombo do rei Zumbi e esperava a estação de brotar do cio da terra a nação dos negros. Não me tinha ouvidos. Nas horas de desmaiamento, parecia que ficava sem a própria alma, não entendia o motivo da desaparição. A dor desconhecida não tinha cicatrização. Parecia que dormia, mas não dormia, sofria da desconfiança dormida.
Em uma manhã de desconfiança acordada, cheia de pesadelos de caveiras e vermes, chegou a desejar ter o corpo do marido desaparecido para desenterrar. Ninguém se espante ou vire as costas para essa mulher, que dor de desaparecimento é assim mesmo, mistura de esperança com o cansaço da espera inútil. Um desejo de desfecho na procura de uma explicação, um ponto final que nunca chega. Uma desconfiança que não se termina
—        Cruz e credo, Deus o tenha vivo.
Depois do tempo de espera, sem as notícias de explicação da fugição, a separação do vínculo conjugal foi o mais óbvio para todos. E, diante dos olhos sonolentos das crianças, o negrão espadaúdo passou a cuidar das carnes da Maria Memória. Assumiu os compromissos do Virgílio. Para a criançada, ela dissera que era o melhor a fazer, precisavam encontrar os meios para se desfazer das despesas, contas de comer e vestir. Toda família precisa de um chefe.
Coitado do espadaúdo, levanta antes do galo cantar e se sai para a central dos legumes e verduras. Não reclama. Nem vem para os almoços, fica pela obra de tijolos de onde sai para a segurança da firma. E a Memória, se conserva todas as manhãs em acordamento. Observa o seu pássaro engaiolado, pulando de galho em galho, submetido às vontades daquele esqueleto de arame. Aquela eleié está sem entender o seu pássaro engaiolado.
Virgílio deixou pra trás os filhos e os ganhos avulsos dos biscates. Não trocou explicação. Virou só lembrança de antepassado.
Enquanto espera para ter o negão Ogum ajuizado de emprego, ali, na clausura da acomodação doméstica continua enfiando as mãos. A roda da vida parece que carrega o seu destino pra cá, depois que leva pra lá. O homem volta todas as noites de costas curvadas e as mãos assoviando. É o novo chefe de família. É assim mesmo, o novo sempre vem vestido de velho.
Na vitrola, achada atirada pelo chão das ruas, último presente do Virgílio, antes da sumidura dele, escuta a voz de João Dias
─         Nas tuas mãos deixei meus sonhos...

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03 - O Hino Nacional

05 - Só casa se plantar dez árvores

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