terça-feira, 22 de maio de 2012

Falta de costume com gosto de carne

Becos sem saída - O descolocado
II
baitasar


É uma atrapalhação ser homem sem emprego. Negro descolocado. Ou colocado com salário curto, mês comprido. Sem a dignidade da própria subsistência, sem o respeito da casa alugada em algum cafundó. Na privação de um patrão pra enriquecer. Todo negro que se preza tem um dono pra aformosear na riqueza. Faz parte da vida. História de escravidão. O imprestável de ocupação é desnecessário. Sem préstimo. Favelista. Inútil. Em qualquer aglomeração humana mais complica do que resolve. Estorvo. Marginal. Libambo.
O vizinho desempregado da Maria Memória e Silva, mais conhecida na vila como Maria Memória, coitadinho, em tempo algum foi desagradável. Mas pouco atencioso. Parece fugir de dizer bom dia ou boa tarde, mas nunca se ouviu da sua boca um convite de boa noite. Não é visto nas ruas sem a luz do dia. Anda cabisbaixo, sem muito entusiasmo nos cumprimentos. Bem que a Maria tenta ajudar nas cortesias, mas de maneira discreta. Sem mandingas. Disfarçada. Sem muitas palavras.
Em casa, os Memórias, não são de muitas palavras, têm costume e gosto no trato diário por olhares e silêncios. Os comentários são curtos
—        Pobre infeliz, vai dar tudo certo... parece sempre fugindo.
Dói em Maria ver o negrão retornar no final do dia do mesmo jeito que saiu. Os ombros o denunciam. Recurvados. São dias de guardar o berimbau. Continua desguarnecido das mandingas, torto das pernas, parece fantasma. As promessas de boa vizinhança se renovam nos olhares de amparo. Mandam mensagens do mais puro encorajamento. Duas casas gêmeas. Dois pátios. Dois casais. Três filhos. Todos da Memória. Na casa do negrão, nenhuma criança. Ainda bem, seria muito mais difícil se tivessem os filhos que os Memórias têm. Devoradores. Comedores ávidos da geladeira esfomeada. Vazia. Estômagos de avestruz. O frio vem conforme o tamanho do cobertor, pena que a fome não vem conformada com o tamanho do bolso.
Para o bem da verdade, e a mentira não prevaleça neste início, o neguinho do meio, não tem por jeito comer carne. Ele precisa dos empurrões da mãe, por vezes, súplicas, em outras, gritos e insultos. É quando a Maria Memória perde o jeito de conversar com os olhos. Os cabelos curtos, espichados, com franja recortada e cheia de bicos afilados até a altura dos olhos, empunham a fita rosa gordurosa que enfeita a cabeça. Os caminhos que levam o sangue para a cabeça se dilatam, desalinhados, quase se rasgando. Não sossegam enquanto não vêem o seu neguinho submetido. A luta é desigual. Sempre foi desigual. Ela se deixa puxar na perna pra lá e cá. Ele se deixa mastigar de um lado e outro da boca, qualquer pedaço de carne. Mastiga. Tritura. Aperta. Morde. Mas não engole. Outro pedaço. Mesmo caminho. E o bolo de carne aumentando. Dançando na embocadura daqueles dentes manchados. Não chega à garganta. Não desce. Falta de costume com gosto de carne. O nervosismo tomando conta. A ansiedade embrulhando o estômago. Tortura. Medo. Até que a exaustão apodera-se violentamente de todos. O neguinho xendengue chora até as lágrimas e a mãe cresce nas ameaças
—        Come, come, come!
Ele vomita. Nunca come.
Ela sempre limpa.
Mãe é mãe, só se sente falta de água quando o pote está vazio, só se sente falta de mãe quando não tem mais jeito de ter vontade.
As crianças sentem a falta de crianças na casa do inútil do vizinho, mas se ajeitam entre si. São dois molecotes e uma menina maravilhosa. Maria Memória tem um marido primoroso, bem empregado, que lhe deu três crianças encantadoras. Sobrenatural. Ele tem três empregos. Nenhum com a carteira assinada. Tudo bico. Biscates. Um jogo de truques para sobreviver. Um trabalho para cada turno do dia. Nas manhãs trabalha na ferrovia, colocando e consertando dormentes. Eles vivem do Virgílio substituir aqueles que adoecem. Nada oficial. Não tem boletim nem contrato, apenas um bilhete que chega com o nome do adoentado
—        Minha preta, dizem na boca pequena que continua gente em desaparecimento na estrada de ferro.
—        No troco de quê?
—        Coisa do sindicato e dos milicos.
—        Não te mete, Virgílio, pelo amor de Deus...
Ele já foi muitos nomes na ferrovia, nem sabem o seu verdadeiro. Ele se tornou comum em inteirar o terno de trabalhadores. Quanto mais os ferroviários acamam, mais ele recebe ocupação de serviço. Já foi chamado de fura greve. Mesmo em tempo sem greve. Coitados. Sorte a dele. Sai nas três horas da manhã. Noite do amanhecer. Nas tardes é carregador de tijolos. Nem vem almoçar. Vive faminto. Elegante. Não carrega jóias de relógios ou correntes, apenas aqueles dois dentes de ouro, bem na frente, em cima. Um troféu. Nos dias do anoitecer é vigia. Até meia-noite. Um homem competente, nada lhes falta. Vive daqui prá lá e de lá prá cá, caminhando. Quando o lugar de direção é mais longe, vai de bonde amarelo. Sempre senta no último banco. Passageiro. Último a ser lembrado. Vem sempre depois de todos. Trabalhar e viajar de bonde não enriquece ninguém.
Às vezes, Virgílio parece ouvir o sinhô do engenho, com seu chapéu de grandes abas, botas compridas de couro, chicote em uma das mãos, gritando
─         Basta de matutar, é hora das moendas!
E todos os pretos saem do refúgio do amanhecer mormacento com seus cantos de tristeza. O dia começa mais cedo que o próprio dia. Os moleques açoitam os negros que empurram as rodas. As engrenagens do engenho gemem pelos silenciados. As canas são esmagadas e o chicote estala sem cessar. Todos trabalham sem descanso: o chicote e os negros. O suor escorre dos corpos espremidos pelo sangue do chicote suando. Os escravos e o caldo verde espumoso escoam das bicas, nunca acabam. Não têm fim os feixes de cana que chegam nos carros de bois ou empilhados no lombo dos burros. Não param. Ninguém sossega até que o dia fica sonolento e começa a cerrar os olhos e as lamparinas da choça dos pretos vão se acendendo. Essa sina não toma sumiço com encantamento.
Quando Virgílio sai do sonho do avoengo, sabe que está sentado e dormindo, no último banco do bonde amarelo, já quase chega. Plantar cana e produzir açúcar era sina de escravo. Virgílio não se pensa da África dos africanos, apenas se enxerga um preto daqui, que ainda planta café, minera ouro, vende comida, carrega tijolo de barro, fabrica louça de barro, tece pano, cestas e balaios. Tudo por um poucadinho de fartura na mesa. Não vê mais longe que a vila. Volta todo espremido pra lamparina da sua casa.
É um marido maravilhoso. Inventou três lindas crianças. Uma menina, dois meninos. Três filhos diferentes. Iniciaram a ter vida em casa, nas mãos da comadre Socorro. Parteira dos arredores. Outros dois se ficaram extintos por falecimento, na hora do aliviamento da parição. Foram os primeiros serviços da Socorro e da Memória. Uma não puxou no tempo certo e a outra não se animou de empurrar com mais força. Faltou experiência. Careceram de coragem. Maria Cariciosa, a mais velha, a primeira que enraizou depois dos extintos, nasceu na manhã de um dia de muito vento. Tudo muito rápido. Supimpa, o do meio, veio numa tarde de muito sol. Tudo muito eficiente. Radiante. Já Lamparina, o mais novo, chegou aos empurrões, tarde da noite. Não queriam esse, mas o que fazer, cavalo dado não se olha os dentes. Decidiram parar com isso de fazer filho.
Ele é um homem maravilhoso. Sabe viver. Lutador. Bem empregado pra preto descontado da falta de escola. Não é muito forte, mas decidido. Muito compreensivo. Virgílio Silva tem três empregos. Um em cada turno. Três jeitos de passar os dias. Todos diferentes. Três chefes diferentes. Três caminhos diferentes. Três crianças que se vieram pelo exagerado às vontades das carnes. Virgílio sempre ajuizou nas carnes da Memória o compensatório pelo trabalho executado de segunda a sábado. Alguma coisa havia de ser feita para sair da mesmice de trabalhar e dormir. Ele se aproveitava das partes moles. Ninguém haveria de culpá-lo. Maria Memória é sua mulher e, além de tudo mais, já teve muita formosura. Apetecia ao homem chegar em casa e ir para a cama fazer uns festejos. Na medida do tempo sumindo e das crianças aparecendo, mesmo Virgílio, que não foi construído por resmungos, não resiste à rezinga de ter a sua mulher nas mãos, perto dos choros de criança. Faz ameaço perder as vontades com a Memória.
Maria Memória adora muito os três filhos, mas não tem planos de engordar com mais um curumim. Tudo se acomoda de um jeito ou de outro.
Faz suas rezas e oferendas por Cariciosa, a sua encantaria. Não quer a menina vivendo na dependência de homem sem riqueza de emprego, se tiver precisão de ficar metida em quefazeres domésticos, feito ela, que não seja engaiolada. Enraizada aos pouquinhos, um dia depois do outro. Engordando. Não que ela se queixe, mas faz benzeduras e oferendas para que a menina encontre a felicidade. Sabe que o seu querer vai depender da resistência da guria a cobiça. Mãe nenhuma consegue afastar os urubus no entorno da carniça. É luta perdida. Precisa confiar no ajuizamento do Deus do mundo
—        No final, tudo há de dar certo, só acontece o que Deus quer. — fica repetindo pra si mesma, tem precisão de confiar nas rezas. Ladainhas de mulher que deu à luz uma ou mais filhas.
Outra manhã e já não tem o esposo, saiu antes do amanhecer, assim que a madrugada começou a envelhecer. A cama esfria. Nenhum beijo. Não quer aborrecer a Memória. Amado. Tão compenetrado. Já foi muito carinhoso. Sente falta. Continua rezando por ele e o pegado do lado. O vizinho. Os tempos estão feios para os homens, também. A gurizada dos colégios fica a protestar pelas ruas, gritando que é proibido proibir. Resmunga pela casa contra-ordens
—        Bobagem dessa piazada, quero ver eles criarem os filhos, sem dizer não.
Levanta em silêncio. Caminha em sigilo. A perna menos comprida já está acostumada em acompanhar a outra, ninguém vê o jeito de mancar da Memória. Se a grandona vai ligeiro, ela se aligeira, mas se precisa mais lentidão ela se acalma. Apenas quer se passar despercebida. Ela é o que não se vê e não se vê o que ela é.
Não quer acordar as crianças. Ainda bem que têm pouca idade na escola. Assim, não se metem com esses baderneiros. Brancos comunistas. Ficam estragando aqueles muros todos pintadinhos — Abaixo a ditadura! — essa gurizada não sabe nada de pobre.
Ela sabe da sina de pobre. Abastança de miserável. A sua família só vai crescer nos confortos da vida com sangue, suor e lágrimas. Por isso mantém a esperança, lágrimas não há de faltar. Pra gente como eles, é tudo muito difícil. Só com muita torcida e reza. Nem o samba ajuda
—        É coisa de crioulo malandro.
Antes de se pôr em pé, ela fica a torcer que o seu Virgílio não tenha esquecido de despejar o balde plástico das imundícies humanas. Não sente nenhuma vontade de sair para descarregar aquela porcaria toda que se sai da gente. A noite é feita de muitos descarregos. Não suporta os cheiros que saem do vaso higiênico de plástico. Rastros da podridão humana. Leva as vistas para o canto do buraco balde. Nada. Apenas a mancha úmida na tábua do chão. Graças a Deus que o Virgílio não esquece as obrigações. Sorri para o pássaro engaiolado. Pulando de galho em galho. Não voa. A mulher eleié engaiolada faz pequenos muxoxos para ouvir seu canto. Não canta. Vira-lhe as costas. Tem preferência por outro jeito de passar aqueles minutos de despovoamento familiar. Este é um instante breve do paraíso. Ninguém para cuidar ou satisfazer. Sozinha. Olha com jeito de espiar pela janela e lá está o negralhão. Ombros largos. Sempre o mesmo jeito. Um beijo de boca alongado na vizinha
—        Coitada, a mulher nem é tão bonita. — mas tem que admitir que sobra bunda. Formigona saúva. Opa, hoje, ela ganhou uma mão entre as pernas. Indecente
—        Se faz de coitado pra ganhar sapato novo! — muita demonstração e nenhum barulho. Estão sorrindo. Olho no olho. Atrevidos. Maria Memória sente a língua latejar e câimbras nas bocejas enquanto os absolve com o sinal da cruz. Quanto atrevimento.
Passam as manhãs. Uma após a outra, por muitos dias, incontáveis semanas, e ela, por ali, em sua pequena escotilha. A mão se enfiando na outra mulher. A vizinha. A boca da Memória se contraindo e pulsando. Sempre diferente. Muita criatividade para uma puta mão. Por vezes, segura firme a saúva pelas traseiras. Em outras, sobe as coxas por dentro. Palmadinhas. Beliscões miúdos e descuidados. Murmúrios confusos. Enfia os dedos por baixo das rendas. Vestidos de dormir. Carapinha desalinhada. Lábios elegantes. Desabotoa a blusa e espreme os bicos arretados. Ela o lambe, enquanto ele se põe na ponta dos pés a enviar sua cabeça entre os bicos. Quando o danado de assanhado tira a cabeceira dos peitos da escrava, ela a vê brilhar e estremecer. Não ouve, mas sabe que aquela estava gemendo. Manhãs diferentes e maneiras semelhantes das mãos agirem, veste correndo suas rendas deixadas sobre a cama
—        Mãos sujas! — reza pelas gentes pecadoras... e a boca agitada
—        Língua indecente... — faz promessa de oferenda para que os desavergonhados encontrem o caminho da virtude.
Memória repete entre os dentes e os espasmos de câimbras
—        Têm sorte que somos poucos os vizinhos pegados na volta.
Hoje, decide que espera o Virgílio acordada e conversa sobre esses dois que moram tão perto.
O dia se passa sem que a Memória esqueça do acontecido, está louca pra destrancar seus planos para o marido.

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