quarta-feira, 30 de maio de 2012

Venha e me entre

Becos sem saída - Comunistas desgraçados
II
baitasar
Enquanto Manualdo sonha com baratas, Cariciosa sonha com convidados, festa, bolo, convites e músicas. Sonhar é bom, mas que não caia da cama. Revira o pensamento atrás da roupa do noivo, solução resolvida por ela, que não seria doida de deixar na mão dele tudo isso. Quem sabe um dia, outro casamento. Sem tanta pressa. Por ora, prefere entregar àquelas mãos outras coisinhas
—        Vamos dar um jeito, filha.
—        Mamã, eu estou apaixonada. – a Memória olhou sua menina, precisou reconhecer que nunca se viu assim, com aquela vontade de se dar perdida da razão
—        Vai dar tudo certo, Deus seja louvado.
—        Mamã, Saravá... Deus te ouça.
Enquanto a menina fala, Memória vai de um lugar a outro, arredondando, naquela diminuta cozinha. Prepara seu copo de água, alho e mel
—        O que é isso, mamã? — a guria estava com a mania de relancear os olhos na mãe, não era só simpatia, duas mulheres se destampando
—        Receita da vovó. — a mãe que ela tão pouco conheceu e os seus filhos nada sabem. Lembra de sentar em suas pernas e ser sacudida para cima e baixo enquanto sua mãe cantava e sonhava se a rua fosse dela, iria mandar esconder a lama com ladrilhos brilhantes, para o seu amor passar. Filha de escravo, não teve instrução de livro, sobreviveu por teimosia. Tirou os filhos que pode e criou os filhos que teve vontade de criar. Vá lá saber qual foi a vontade dela em me criar. Ninguém se interessa em contar histórias de negro e pobre.
—        É?
—        Um dente de alho dentro de um copo com três dedos de água, o alho precisa dormir na água e, assim que acordo, bem cedinho, tomo com mel.
—        E daí?
—        Antibiótico dos antepassados. — a mãe, a nêga Falda, se tornou antepassado, ela também se tornará uma gente que já se passou e ninguém sabe que existiu, um rastro de poeira da estrada
—        Contra o quê?
—        Resfriado.
—        É?
—        É assim mesmo, experimenta...
—        Hum, não quero.
Tem algumas coisas da mãe que a Cariciosa invoca de não imitar. Nunca. Na sua casa não vai ter isso de foto de padre, santo ou não. Mas queria ter a memória de elefante da mãe. Depois do gole com alho, Maria Memória se dispõe em arrumações. Cariciosa lhe fica cravando às vistas. Estão no quarto da mãe, ela junta meias e camisas jogadas pelo chão
—        Minha filha, são todos parentes.
—        Não sou empregada de ninguém. — a mãe lembra que ela precisa manter a casa na faxina
—        Pode até que seja, mas limpeza de sujeira fedida, não. Saio na corrida e não volto. — a mais velha desdenha da sua conversa e assegura que vai aprender a limpar o que precisa
—        Tem coisa que não aprendo. — a mãe dá aquela conversação por acabada.
A aranha vive do que tece, pega o retrato do padre morto, pensa que ninguém escapa dessa viagem até a fronteira do sumidiço, mais dias ou menos dias, a estrada se acaba e não tem onde se embocar, não tem refúgio
—        Que Deus o tenha. — reza para que a graça de Deus e dos seus Orixás os protejam
—        Por certo há de ter, mamã.
—        Depois de tantos anos, até já tinha acostumado com ele me vigiando.
—        Virou Papa faz tempo.
—        Minha filha, o teu irmão Lamparina mamava no peito, quando esse virou Papa. — a Memória trocou de homem, mas não mudou de retrato, e a vida futura, a vida depois da morte lhe faz seguir, no que lhe é possível, as regras do Papa e dos seus Orixás. Sabem mais do que ela sobre céu de rosas e céu aberto, só se vê o que se deseja, ela não quer se meter em abismo onde só há choro e ranger de dentes. A guria que continuava menina na cabeça da Memória lhe retoma o assunto dos papas, um interesse de caridade e santidade
—        Mamã, e o outro?
—        Coitado, não durou um mês. — mais dias ou menos dias, não tem justeza, é assim
—        Pobre do infeliz, nem esquentou a cadeira.
—        É isso, hoje aqui, amanhã, ninguém sabe, nem o santo padre.
—        Não deu tempo nem de pendurar o retrato na parede. — a nova morte de um papa, o luto, e os preparativos da eleição de outro, é muito rápido para entender. É preciso continuar, apesar das maldades. A vida não pode parar, tanto faz que a água corra para cima como para baixo — Eles o mataram, por certo, um papa breve.
—        Quem, mamã?
—        O que morreu agora, esse João Paulo I.
—        Mamã, por favor, vamos pensar nas árvores. — a filha Cariciosa muda o rumo do palavrório, vai de um lugar ao outro sem muitos nervosismos. Não tem muitas vontades de demorar-se fincada num mesmo assunto, o ar lhe escapa e parece não regressar. Memória leva as mãos à cintura e endireita o jeito de respirar. Ainda pode com o tamanho da barriga. Pequena de não aparecer. Essa tem muito que arredondar. É somente nestes tempos de ficar redonda que sente o desenquadramento das pernas. Tudo pesa mais no lado da curta. Perde a habilidade de disfarçar o balanço das ancas. Deixa ao gosto da natureza.
A sineta do portão estala nos ouvidos da Maria Cariciosa, a mocinha sai correndo
—        É o Manualdo! — grita de puro contentamento
—        Minha filha, deixa o rapaz entrar.
Juro que nunca vi gente mais tranqüila que esse Manualdo. Muito parado. Profundo no seu jeito matutoso de desfazer o que se fica a pensar dele. O contrário do seu benzinho que vai de um lugar ao outro, inquieta com a sua donzelice. Ele tem os cabelos muito lisos, muito escorridos, acompanhados de um farto bigode. Índio puro. A guria chega aos atropelos. Quer pular em seus braços e o enlaçar com as pernas. Olha o rapagão e mede a distância pouca do nariz até a boca, mas pára de súbito e lhe ordena que entre, em disfarce amornado sussurra no pé do ouvido
—        Ó meu amado, que ele venha e me entre.
Fica fubento quando recebe os beijos da guria, cor de vermelho envergonhado. O coitado parece sentir a gravidade do olhar da Memória, a moça casadoira se põe em socorro de ajuda, recoloca assunto na conversa
—        Amorzinho, a gente só vai poder casar se plantar umas vinte árvores.
—        Não são dez árvores, minha filha?
—        Mamã, quem planta dez faz mais um esforcinho e já deixa mais algumas pelo chão se enraizando.
O moço não parece preocupado, nem espantado com a novidade, acredita que há males que vêm por bem
—        Meu benzinho, esse vai ser um jeito lindo de casar.
—        Isso aí, Manualdo.
O dono do boné ferroviário se mexe e sai do velório da televisão. Maria Memória lança o seu olhar de leoa em defesa da ninhada, Ogum até pensa em recolher o dito, mas já foi lançado pela boca a fora. A leoa retruca do outro lado do rio, um rugido que faz tremer as terras do chão batido
—        Jacaré é pra quem é e não pra quem quer.
—        Já não está mais aqui quem falou. — a fêmea é que faz o ninho
—        Negão, não vai atrasar pros afazeres.
—        Minha preta, hoje é sábado. — responde para lhe alumbrar, hoje é noite com festejos de cama, no domingo não se tem exatidão de acordar
—        Ah, então, vê se fica quieto por aí, com os meninos.
Não trabalhar no sábado é decisão do Ogum, quer aproveitar as instruções da estação televisora. Para Memória, é dia de fazer render mais uns trocados, mas enfim, esse negão não deixa nada faltar, ainda é da sua confiança. A Memória controladora não sabe parar de reprimir a si mesma, pisa no coração do amoroso com os pés. Nus. Em desgasto, nem sabe bem porque faz uso desse mau humor contra o negão, mal com ele pior seria sem ele
—        Negão, o sábado pode render mais uns trocados.
—        Os gurizim são felizes assim, comigo ficando aqui, por perto.
Diz apontando para os gêmeos, os guris estão enrolados em suas pernas como as varizes azuladas das canelas. Esse graúdo faz isso com os pequenos, não tem precisão de meter medo, leva as crianças no respeito de autoridade
—        Que seja...
Foi dada a última palavra.
Ogum está levantado, já não se sente mais nas vontades de adormecer na frente do televisor. E o assunto está ficando curioso. Não é metediço, mas tem algumas ideias e sugestões de aconselhamento, sabe que água e conselho só se dá a quem pede. Muda de assunto enquanto faz aproximação
—        Rapaz, quero fazer compra destas coloridas.
—        Seu Ogum, deve de ser muito puxado.
—        É uma beleza de ver com as cores todas.
—        Com que pagamento? — quer saber Maria, mas o negão Ogum não estremece, até parece que tem tudo já respondido, e cá entre nós, essa Maria é uma rixenta que nem o diabo aguenta, veste a fantasia de espinhenta, se perde em lamúrias desimportantes, vazias de felicidade
—        Faço na prestação do crediário.
—        Acho melhor tirar isso das ideias, essa coisa colorida é pra rico.
—        Minha preta, vou fazer servidiço em sábados. — a Memória não pode deixar passar, não consegue desvestir a fantasia, já é maior que a própria vontade
—        Vez que outra, negão, esse servidiço de sábado só de quando em vez.
Pelo tempo, desse entrevero, Manualdo fica apreciando Maria Cariciosa com as mãos cheias de amor. Sabe que o não visto naquela rapariga é ainda mais cobiçado. O feitiço com as mãos, esse índio Manualdo aprendeu de ouvir o Ogum. O sogro futuroso lhe dizia do tempo em que as mãos e dedos tinham mais serventia que segurar garfo e faca ou enfiar no nariz. São dois pra cá e um pra lá. Tempos de língua afiada e dedos atrevidos, tem medo que lhe faltem algum dia. Sente desvergonha no corpo da sua preta, adora quando a saliva engrossa e aos poucos se desmancha nos serviços das carnes.

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Leia também: 
05 - Só casa se plantar dez árvores 

07 - Todos dormem. Até as galinhas.

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