sexta-feira, 4 de maio de 2012

O tempo engole tudo


XXVI (2ª) - No se puede hacer la revolución sin las mujeres
ninguém resiste à memória enfraquecendo
baitasar
O tempo, um dia após outro dia, implacável, engolindo tudo, ninguém resiste à lembrança bichada, nas últimas. O metabolismo das horas não muda, segue em seu apetite de lobo, avança onde antes só havia criancice e juventude, depois da idade madura passa pela velhice e acaba tudo em poeira — Quando morreu não ficou nem rastro, levou junto à história. — esse é o meu obituário. Já escrevi. Não quero dar trabalho. Não quero provocar constrangimentos. Não haverá vestidas de luto, nem lágrimas, nem testamento, nem cobiça, apenas pressa em acabar logo com tudo. Quero enterramento sem féretro, sinos ou cantos. O sepultureiro e a embrulhada no embrulho.
Depois do luto pelo desaparecimento de la Vieja, a ganância e a gula pela vida retornaram ao atalho do egoísmo. O momento do recolhimento preocupado para pensar a própria existência e a perspectiva de perder a condição de vivo durou pouco. As brigas eram visíveis e invisíveis, o espólio da morta trouxe a família Caraca à vida de sempre.
Nenhum dos netos ou netas quis o bruxismo de la Vieja: as ervas, as plantas e as ferramentas de cura ficariam fechadas no quarto da desaparecida — Se o senhor me permitir queria olhar o quarto. — Por quê? — Meu jeito de tratar com respeito minhas memórias. — participava na reunião da família, naquele primeiro almoço sem luto por la Vieja, percebi que Dom Juan e dona Lara trocaram olhares, até que a patroa fez uma careta de indiferença, piscando o olho esquerdo e repuxando o canto da boca.
Dom Juan pareceu resignado — Então, assim será. — foi quando mudei com o pequeno leporino para o quarto de la Vieja, la muerta.
No dia seguinte, depois de tudo resolvido na cozinha: lavado, secado y almacenamiento, as meninas se aproximaram — Preta, tu não tem medo? — Dos mortos? — perguntei para a mais nova — Dos fantasmas... — ela me confirmou — Acredito nos espíritos que me protegem. — aproveitei o momento de silêncio e saí daquele interrogatório infantil. Levei o miúdo para o seu sono depois do almoço, era o meu tempo de trégua da vigilância. As crianças quando dormem nos dão muitos alívios.

O quarto de la Vieja me veio por herança do medo.
E aquilo que não me interessava passou a interessar. As razões, eu não sabia, sempre fui movimentada por instintos revolucionários: un poco de nostalgia, outro tanto, era a obrigação com a memória de la Vieja, mas sei, foi mesmo curiosidade, queria o conhecimento do poder nas mãos. E descobri que tinha — O que pode curar pode matar. — se me descubro com tanta bruxaria, antes do tempo certo, voltava en la Montaña — O desejo pela revanche com o Coronel.
A memória do Coronel se arrastava aos meus pés, era uma causa para minha vida: enfrentar al monstruo que acabó con las mujeres de mi padre... y acabó con mi padre.
Mas as minhas escolhas para o destino estavam por descobrir o poder de encantamento das umidades e cheiros da virilha — Tudo vem a seu tempo.
A existência dos ancestrais me fez menos amarga, mas não me fez doce, não conseguiu aliviar a dor de não ser mais filha neste mundo de cá. A morte interrompeu a minha aventura de ser filha. O problema nunca foi com a morte, mas com o sentido de revanche que me ficou escondido, rico em dores e memórias.
Perdi as virtudes da ingenuidade e desacreditei dos caminhos da salvação. Tudo passou a ser um jogo, por isso, querida amiga, não exija coerência das minhas memórias.
Mas voltemos ao que nos interessa dessa história de repetições e maldições.
Um dia vinha e se ia, cedia seu lugar para os barulhos da noite. A vida se repetia, enquanto Dona Lara me chamava para as tarefas na cozinha. Olhava as brincadeiras do miúdo, não parecia que incomodava tão logo. Corria à cozinha
— Dom Juan, sete filhos é um número perfeito. — Perfeito? — Sim. — quando entrei na cozinha, os dois não perderam nenhuma fração do nada para me perceberem, eu já fazia parte daqueles móveis e louças — É um número bonito, acho que tudo pode ser transformado em número. — Dom Juan não achincalhe. — voltei na porta, esperava as ordens para cumprir — Não estou brincando. — acariciou o quadril da mulher e lhe disse com a malícia própria dos homens — Minhas brincadeiras com a língua costumam serem outras. — Que Deus lhe perdoe, Dom Juan! — Adoro essa sua fantasia de noviça... — Marido! — sentia as cores do fogo na minha cara — E você, índia madraça, espiando? — não respondi, não precisava responder, ela não queria nenhuma resposta — Vá colocar as louças e talheres na mesa! — rebaixei os olhos pra os meus pés e corri para obedecer a suas ordens — Descobri que o número sete quer dizer perfeição, totalidade. — Bobagem, mulher... — Já o treze dá azar! — É?
Entrava e saia da cozinha em silêncio. Primeiro esvaziar a mesa de tudo que lhe colocavam por cima, depois com um pano seco limpar a poeira. E quando o assoalho da mesa estivesse limpo os talheres e louças eram trazidas. Em uma das idas e vindas os vasos de louça para comida caíram das mãos, ou as mãos caíram das louças, e sete deles quebraram — O que foi isso? — Desculpe, dona Lara. — ela estava parada na porta, contava os estilhaços — Sete! Sete anos de azar! — levou sua mão à boca e os olhos em minha direção — Sua índia madraça, não faz nada com gosto! — quando levantou a mão para me descer o chicote, Dom Juan lembrou que se fui eu que quebrei — É justo que o azar recaia sobre a guria. — Que os raios lhe partam, índia madraça!
Pensei comigo mesma que mais sete ou menos sete não iria mudar minha vida. A patroa pareceu recuperar as vibrações harmoniosas — Junte a sua desgraça e faça o seu serviço. — fiz o meu serviço e acumulei mais sete anos de macacas.
Ela voltou para seu enredo de supertições e números
— Dom Juan, haviam doze apóstolos e Jesus, treze pessoas. — E daí? — Judas era um dos treze, e foi traidor, e Jesus morreu numa sexta-feira. — o patrão sentou em um dos bancos na cozinha, não pareceu que se acomodou, levantou resmungando alguma coisa, algo como estar com fome... e sumiu da cozinha das comidas — Mi suerte soy yo el que hace.
A tradição seguia sua repetição confortável, os Caracas reunidos no entorno das comidas, mais um almoço, mais um dia. As conversas iam e voltavam de acordo com os humores daquela teia familiar — Eu não quero jogar bola. — O que o professor ta ensinando? — Nada... — esse menino Crespo, dona Lara dizia que foi feito num estado de arrogância do pinto calçudo. Aquela mulher era assim, dura e desavergonhada de contar suas vergonhas de cama. Eu não sabia, mas aprendia das fraquezas com os ossos do ofício de ser esposa.
Outro dia desandou a falação sobre a feitura do menino. Eu ficava calada para ouvir, ficava calada para não atrapalhar, ficava calada para não falar — Eu avisei o peludo
(Dom Juan, to em dias de mais filhos.) (Não tem problema, a gente termina antes.) — A tal combinação foi arrogância do teu patrão, ele se gabava de não se dominar pelo pinto calçudo (Acabo o serviço nas coxas!)
(Don Juan!) (Escapou-me...) — O sem-vergonha do pinto calçudo ficou empolgado mais que no costume, o peludo não lhe deu ordem de parada, não quis ou não pode, não importa, no termo derradeiro se acabou dentro e engordei do Crespo.
Eu continuava na sala de conversas, cuidava do miúdo e ouvia os assuntos para esperar a hora de comer — Crespo, é bom aprender a jogar vôlei. — Não enche, Calçado! — Guri, a gente aprende o tal vôlei pra comer as gurias. — todos riam dos desesperos do Crespo, estávamos no tempo das belezas do inferno na palma da mão. Dona Lara fez dos seus ouvidos o silêncio — Acho que ele gosta de jogar xadrez. — Isso mesmo, Anadyr, desse jeito ele vai comer as intelectuais — o Calçado com apenas um olho enxergava mais que no tempo dos dois, todas brincavam que o olho cego enxergava mais do que o outro, que apenas via.
O patrão voltou da cozinha com um sanduíche de queijo e linguiça, as conversas silenciaram. Ele nos olhou e todos caíram em uma grande risada — O almoço já está pronto, Dom Juan!
Depois de tantos anos me sentia parte de uma família.

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