XXVI (2ª) - No se puede hacer la revolución sin las mujeres
ninguém
resiste à memória enfraquecendo
baitasar
O tempo, um dia após outro dia, implacável, engolindo tudo, ninguém
resiste à lembrança bichada, nas últimas. O metabolismo das horas não muda,
segue em seu apetite de lobo, avança onde antes só havia criancice e juventude, depois da
idade madura passa pela velhice e acaba tudo em poeira — Quando morreu não ficou
nem rastro, levou junto à história. — esse é o meu obituário. Já escrevi. Não quero
dar trabalho. Não quero provocar constrangimentos. Não haverá vestidas de luto,
nem lágrimas, nem testamento, nem cobiça, apenas pressa em acabar logo com tudo.
Quero enterramento sem féretro, sinos ou cantos. O sepultureiro e a embrulhada no
embrulho.
Depois do luto pelo desaparecimento de la Vieja, a ganância e a
gula pela vida retornaram ao atalho do egoísmo. O momento do recolhimento
preocupado para pensar a própria existência e a perspectiva de perder a
condição de vivo durou pouco. As brigas eram visíveis e invisíveis, o espólio da
morta trouxe a família Caraca à vida de sempre.
Nenhum dos netos ou netas quis o bruxismo de la Vieja: as ervas, as
plantas e as ferramentas de cura ficariam fechadas no quarto da desaparecida —
Se o senhor me permitir queria olhar o quarto. — Por quê? — Meu jeito de tratar
com respeito minhas memórias. — participava na reunião da família, naquele
primeiro almoço sem luto por la Vieja, percebi que Dom Juan e dona Lara
trocaram olhares, até que a patroa fez uma careta de indiferença, piscando o
olho esquerdo e repuxando o canto da boca.
Dom Juan pareceu resignado — Então, assim será. — foi quando mudei com
o pequeno leporino para o quarto de la
Vieja, la muerta.
No dia seguinte, depois de tudo resolvido na cozinha: lavado, secado y almacenamiento, as
meninas se aproximaram — Preta, tu não tem medo? — Dos mortos? — perguntei para
a mais nova — Dos fantasmas... — ela me confirmou — Acredito nos espíritos que
me protegem. — aproveitei o momento de silêncio e saí daquele interrogatório
infantil. Levei o miúdo para o seu sono depois do almoço, era o meu tempo de
trégua da vigilância. As crianças quando dormem nos dão muitos alívios.
O quarto de la Vieja me veio por herança do medo.
E aquilo que não me interessava passou a interessar. As razões, eu não
sabia, sempre fui movimentada por instintos revolucionários: un poco
de nostalgia, outro tanto, era a
obrigação com a memória de la Vieja, mas sei, foi mesmo curiosidade,
queria o conhecimento do poder nas mãos. E descobri que tinha — O que pode
curar pode matar. — se me descubro com tanta bruxaria, antes do tempo certo,
voltava en la Montaña — O desejo
pela revanche com o Coronel.
A memória do Coronel se arrastava aos meus pés, era uma causa para minha
vida: enfrentar al monstruo que acabó con
las mujeres de mi padre... y acabó
con mi padre.
Mas as minhas escolhas para o destino estavam por descobrir o poder de
encantamento das umidades e cheiros da virilha — Tudo vem a seu tempo.
A existência dos ancestrais me fez menos amarga, mas não me fez doce, não
conseguiu aliviar a dor de não ser mais filha neste mundo de cá. A morte
interrompeu a minha aventura de ser filha. O problema nunca foi com a morte,
mas com o sentido de revanche que me ficou escondido, rico em dores e memórias.
Perdi as virtudes da ingenuidade e desacreditei dos caminhos da salvação.
Tudo passou a ser um jogo, por isso, querida amiga, não exija coerência das
minhas memórias.
Mas voltemos ao que nos interessa dessa história de repetições e
maldições.
Um dia vinha e se ia, cedia seu lugar para os barulhos da noite. A vida
se repetia, enquanto Dona Lara me chamava para as tarefas na cozinha. Olhava as
brincadeiras do miúdo, não parecia que incomodava tão logo. Corria à cozinha
— Dom Juan, sete filhos é um número perfeito. — Perfeito? — Sim. — quando
entrei na cozinha, os dois não perderam nenhuma fração do nada para me perceberem,
eu já fazia parte daqueles móveis e louças — É um número bonito, acho que tudo
pode ser transformado em número. — Dom Juan não achincalhe. — voltei na porta,
esperava as ordens para cumprir — Não estou brincando. — acariciou o quadril da
mulher e lhe disse com a malícia própria dos homens — Minhas brincadeiras com a
língua costumam serem outras. — Que Deus lhe perdoe, Dom Juan! — Adoro essa sua
fantasia de noviça... — Marido! — sentia as cores do fogo na minha cara — E
você, índia madraça, espiando? — não respondi, não precisava responder, ela não
queria nenhuma resposta — Vá colocar as louças e talheres na mesa! — rebaixei
os olhos pra os meus pés e corri para obedecer a suas ordens — Descobri que o
número sete quer dizer perfeição, totalidade. — Bobagem, mulher... — Já o treze
dá azar! — É?
Entrava e saia da cozinha em silêncio. Primeiro esvaziar a mesa de tudo
que lhe colocavam por cima, depois com um pano seco limpar a poeira. E quando o
assoalho da mesa estivesse limpo os talheres e louças eram trazidas. Em uma das
idas e vindas os vasos de louça para comida caíram das mãos, ou as mãos caíram
das louças, e sete deles quebraram — O que foi isso? — Desculpe, dona Lara. — ela
estava parada na porta, contava os estilhaços — Sete! Sete anos de azar! —
levou sua mão à boca e os olhos em minha direção — Sua índia madraça, não faz
nada com gosto! — quando levantou a mão para me descer o chicote, Dom Juan
lembrou que se fui eu que quebrei — É justo que o azar recaia sobre a guria. —
Que os raios lhe partam, índia madraça!
Pensei comigo mesma que mais sete ou menos sete não iria mudar minha
vida. A patroa pareceu recuperar as vibrações harmoniosas — Junte a sua
desgraça e faça o seu serviço. — fiz o meu serviço e acumulei mais sete anos de
macacas.
Ela voltou para seu enredo de supertições e números
— Dom Juan, haviam doze apóstolos e Jesus, treze pessoas. — E daí? —
Judas era um dos treze, e foi traidor, e Jesus morreu numa sexta-feira. — o
patrão sentou em um dos bancos na cozinha, não pareceu que se acomodou,
levantou resmungando alguma coisa, algo como estar com fome... e sumiu da
cozinha das comidas — Mi suerte soy yo el
que hace.
A tradição seguia sua repetição confortável, os Caracas reunidos no
entorno das comidas, mais um almoço, mais um dia. As conversas iam e voltavam
de acordo com os humores daquela teia familiar — Eu não quero jogar bola. — O
que o professor ta ensinando? — Nada... — esse menino Crespo, dona Lara dizia
que foi feito num estado de arrogância do pinto calçudo. Aquela mulher era
assim, dura e desavergonhada de contar suas vergonhas de cama. Eu não sabia,
mas aprendia das fraquezas com os ossos do ofício de ser esposa.
Outro dia desandou a falação sobre a feitura do menino. Eu ficava calada
para ouvir, ficava calada para não atrapalhar, ficava calada para não falar —
Eu avisei o peludo
(Dom Juan, to em dias de mais filhos.) (Não tem problema, a gente termina
antes.) — A tal combinação foi arrogância do teu patrão, ele se gabava de não
se dominar pelo pinto calçudo (Acabo o serviço nas coxas!)
(Don Juan!) (Escapou-me...) — O sem-vergonha do pinto calçudo ficou empolgado
mais que no costume, o peludo não lhe deu ordem de parada, não quis ou não pode,
não importa, no termo derradeiro se acabou dentro e engordei do Crespo.
Eu continuava na sala de conversas, cuidava do miúdo e ouvia os assuntos
para esperar a hora de comer — Crespo, é bom aprender a jogar vôlei. — Não
enche, Calçado! — Guri, a gente aprende o tal vôlei pra comer as gurias. —
todos riam dos desesperos do Crespo, estávamos no tempo das belezas do inferno na
palma da mão. Dona Lara fez dos seus ouvidos o silêncio — Acho que ele gosta de
jogar xadrez. — Isso mesmo, Anadyr, desse jeito ele vai comer as intelectuais —
o Calçado com apenas um olho enxergava mais que no tempo dos dois, todas
brincavam que o olho cego enxergava mais do que o outro, que apenas via.
O patrão voltou da cozinha com um sanduíche de queijo e linguiça, as
conversas silenciaram. Ele nos olhou e todos caíram em uma grande risada — O
almoço já está pronto, Dom Juan!
Depois de tantos anos me sentia parte de uma família.
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