segunda-feira, 21 de maio de 2012

De que adianta saber?


Becos sem saída - O descolocado

I

baitasar

O Velho faz sinal para que se aproxime aquela menina com o olhar da tristeza, vestida e forrada com uma casca resistente e, ao mesmo tempo, bonita e escura, cabelos escorridos, pés descalços da pobreza que anda ao acidente pelo mundo, dentes arroxados e quebrados de quem apenas se desfaz da vida que não lhe vale nada, mas lhe impõe preço. A vida cobra de uns e esquece de anotar na conta de outros, faz o tipo mãezona com os escolhidos, vira as costas aos desajudados. Mães não deveriam amar um filho mais do que aos outros, mães assim, seriam abençoadas com filho nenhum.
O homem antigo torna a chamar e saio desse torpor de ficar pensando em nada. Divagando sobre coisa alguma. A menina parece que vai reclamar, não gosta de agradar, não tem o que agradecer
─         O que é?
Não é apenas uma pergunta, mas um jeito de distanciar e avisar que lhe deixem em paz. Uma má educação áspera. Exercita a solidão. Sabe que se cair não passa do chão e agrado demora a viagem. Ergue o queixo e o canto direito da boca enquanto encarquilha a testa, os olhos macambúzios acompanham todo esse movimento de ataque, mas sem vontade de bisbilhotice. Todos aprendem gestos de defesa, de uma maneira ou de outra. Fingir faz parte da vida. Tristes de verdade e alegres quando necessário.
O Velho faltoso de uma das pernas, olha no seu redor, nem fica pasmo comigo, pareço não existir. Tem os olhos das lembranças vividas por aqui, em outros tempos. Não reconhece mais nada, as coisas estão mudadas de lugar. A sua memória não é tão boa, mas tem certeza que as cinzas da vila de papelão foram transformadas em muros brancos e higiênicos para guardar os mortos. O faltoso da perna acha que praticam naquela tonalidade esbranquiçada o acobertamento do passado. O desenfeitamento das mortes desaparecidas é o conforto necessário para que nada mude de verdade. As crianças que entram e saem não sabem das vidas arrastadas e levadas contra suas vontades, jamais saíram da ilha afundada. Ficaram escondidas em algum lugar ali por baixo. O povoamento da ilha de Madalena nas cercanias da cicatriz, era terra de abundância, cresceu e virou balneário de veraneio dos bem de vida. Depois do afundamento vieram as tropas, mas permanecem, como lembrança de alguns poucos, as paredes caiadas de branco que continuam a esconder suas histórias.
A míngua e a fartura seguem a se acomodar no contorno da abundância engolida. Vivem de costas uma para outra. Os ricos de um lado e os miseráveis de outro. As histórias de uns são escritas com letras de ouro e a vida de outros é gravada nas areias da praia deserta, alguns recebem por privilégios títulos honoríficos enquanto a maioria quer reconhecido seu direito à vida
─         Senta aí... preciso te contar uma história.
As palavras são ditas como se não houvesse começo ou fim, tudo no seu tempo vai se repetir. Toma assento na grama esverdeada da praça dos pedalinhos, ao lado de uma imensa cruz de madeira, pequena área do cemitério das memórias, estou seguro em suas mãos de unhas crescidas e enegrecidas de terra. Depois de examinado com desdém, sou colocado sobre seu colo. Permaneço atento e prudente a todos os movimentos. Os três seguimos desafinados com aquelas cruzes fincadas no chão, tudo cercadinho por fios farpados de eletricidade. Olho à guria, o velho e àquele lugar, todos os olhos acusam. Somos intrusos indesejados. O Velho quase desiste, mas, por fim, enfia a mão dentro do casaco de frangalhos e reaparece com uma trouxa de pano. Tem a forma de um tubo volumoso. Solta o cordão que segura tudo enrolado. Desenrola. Aparecem papéis descorados sobre o pano amarelado estendido no chão
─         O que é isso?
─         Pequenos pedaços da tua vida desconhecida.
─         A minha... o quê?
Pronto, conseguiu a vigilância da guria e a minha, a verdade, ainda que amarga, se traga
─         Chegou o tempo da alma se conhecer.
Pega um dos papéis e começa a leitura, vai dizendo nomes e contando coisas que a guria não lembra, desconhece e não entende, está quieta, não sorri, nem se mexe
─         Autos do interrogatório e qualificação do processo por razões políticas do réu Virgílio Silva...
Minutos se alongam em horas.
Depois daquilo que foi lido, o Velho segue a contar as outras ocorrências que tinha notícia por ter vivido nos entreveros daqueles dias, apesar de não as ter acostumado na memória
─         Não sei muito, não era detalhista.
─         E as outras coisas?
Pede paciência a alma penada. Respira fundo sem ruídos ou afetações. Ele também foi uma figura patética daqueles dias. Pequeno e insignificante, mas, hoje, decisivo para mostrar que a vida é cheia de altos e baixos
─         Fala, Velho.
─         Calma, guria... preciso o uso da lembrança.
─         É bem assim, ensaboar cabeça de burro é perder tempo.
A guria não tem mania de paciência, nem vontade de esperar. Não esconde a impaciência que lhe sacode a cabeça para os lados. Sempre foi assim, desde que lembra, coloca os dedos na boca e se põe a roer os cantinhos da unha do dedão, depois todos os dedos da mão esquerda até chegar ao mínimo da mão direita.
─         Antes do papai sumir, um caso de polícia se tornou conhecido porque o corpo apareceu boiando nas águas. Lembro do papai comentar alguma coisa em casa. Foi sobre um tal sargento Raimundo que era tido, como ruidoso líder comunista. Depois do golpe militar...
─         Calma aí, Velho, que golpe é esse?
─         Foi um bando de gente vestida de general e muitos outros vestidos de gente boa que resolveram querer mudar tudo sem consultar mais ninguém, tinham do seu lado os chefes dos tanques, dos navios e dos aviões. Não teve pra ninguém, foi um passeio, mas como eu ia dizendo, o tal sujeito passou a ser considerado perturbador da ordem, em função do que foi enviado para a Ilha Presídio de Madalena, destino dos presos políticos. Após dois meses de prisão, é encontrado boiando nas águas, as mãos amarradas às costas com a sua própria camisa. Na investigação ficou provado que morreu por afogamento. Tudo aconselhava que se finou durante uma assentada de tortura. O famoso caldo. Apesar das escoriações e ferimentos estarem disfarçadas pelos estragos do cadáver, as provas encontradas eram reais. Pois bem, parece que a falta de castigo desse crime fez aumentar a certeza que os apoiadores da tirania tudo podiam. E a violência da polícia aumentou...
─         Afinal, Velho, foi golpe ou ditadura?
─         No fim dá tudo no mesmo, cacete pra todo lado.
O envelhecido para seu relato, ele está cada vez mais desconfortável no papel de testemunhador da história. Sente medo e remorsos. Mija nas calças. Culpa de criança escondida no mundo das bruxas e ilhota de fantasmas. Não é um completo inútil, ao menos serve de mau exemplo.
Mas na ilha de Madalena, daqueles dias de cegueira, todos pensavam que isso tudo estava longe, era coisa de gente comunista do continente. Uns coitados que comiam criancinha e tinham acordo com o demônio. Não são confiados em Deus e na igreja, gente sem-vergonha
─         Menina, esses papéis foram destinados pra mim.
─         Onde tu tava?
─         Longe, no meio do mato, doente, fugindo e apodrecendo.
Lembra os seus dias de febre pelo metal amarelo, sem dormir, entre mulas e gente que não era mais gente, perdendo os dentes e a vontade, arrastando o corpo acima e abaixo da terra, até o dia que os garimpeiros decidiram fechar a ponte sobre o rio. Nesse dia a polícia veio e o rapaz perdeu aquela parte que fica entre o joelho e o tornozelo. No relatório da polícia foi acusado de colocar a perna na frente do cano do fuzil. Ficou ali, em pé, a olhar o vazio entre o pé que estava dentro da botina e o joelho pendurado no ar. Foi muita sorte e muito azar, outros tiveram um azar danado e foram presos, nunca mais foram vistos, o Velho tem certeza que perderam mais partes do corpo que ele mesmo. A sua vida lhe foi poupada, mas perdeu o jeito de caminhar. O azar é que a perna que não mancava foi a que se perdeu. Durante o entrevero conseguiu consertar a botina, mas teve que enfiar a mão e descalçar o pé. Quando chegou o embrulho do irmão estava recuperando a parte perdida, sem saber o que fazer com o vazio da botina. Um dia, depois de um tempo do acontecido, firmou na cabeça que tinha perna e saiu a caminhar. Mancava um pouco porque não podia calçar botina no pé acidentado, mas lá se foi estrada afora. Um pé torto com botina e o outro pé desamparado
─         Pé que não anda, não dá topada.
Assim é a vida, nela nem tudo é o que parece, há chuva que seca e sol que rega.
A menina quer respostas, não se contenta com a história meio começada, meio acabada
─         Eu tenho nome?
─         Tem... Maria Futuro.
─         Eu tenho um irmão?
─         O noturno daquele tempo, um sujeito baixinho com um baita narigão, depois de um tempo sem notícias precisou dar jeito...
─         O que ele fez?
─         Pelo que sei, e é quase nada que sei, um casal de missionários levou o guri para a África.
─         O que é isto?
─         Um lugar para voltar.
─         Muito longe?
─         Além-mar...
─         O que é isto de além-mar?
─         Muita pergunta boba, pensa no mais importante.
A guria me aperta nas mãos, brinca de me erguer e largar e pegar antes do chão, mais um pouco e começo a me soltar em pedaços. Resignado ao meu destino, só me resta rezar, meus gritos são surdos
─         Eu tenho um irmão...
─         Isso.
─         Não tenho pai nem mãe...
─         Desaparecidos.
─         Eram ricos?
─         Na Ilha Presídio de Madalena, os melhores de vida eram os que cuidavam dos presos.
─         Como assim?
─         Moravam em casas bonitas, iam e viam do continente ao seu gosto.
─         E a gente?
─         Seu avô tinha licença pra trabalhar na ferrovia e fazer biscates entre tijolos e cimento. No mais a gente vivia do papel e tudo mais que aparecia...
─         Sempre pensei que apareci separada de lugar nenhum, tanto se me dá como se me deu.
─         Era como aquela gente queria a ilha presídio, longe do continente. Um sítio de desaparecidos e esquecidos.
Os panos estavam abertos, mas nada estava descoberto para aquela Maria. Ela continuava presa sem culpa formada e incomunicável. Andava pelas ruas como um farrapo que as pessoas têm medo ou horror. Os seus parecidos pelo sangue foram obrigados a apontar entre si, acusar um ao outro, sumiram entre a indiferença e a crueldade das pessoas, papéis da certidão de nascimento e óbito, socos e choques
─         O que eu faço, Velho?
─         Meu irmão contou para mim; eu contei para você...
─         E quando eu morrer?
─         Você terá contado para o seu filho...
─         E daí?
─         Alguém sempre vai saber...
─         De que adianta saber?

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