segunda-feira, 24 de outubro de 2016

17.O Livro dos Abraços - Mapa-múndi/1 - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


17. O Livro dos Abraços



Mapa-múndi/1


O sistema
Com uma das mãos rouba o que com a outra empresta. 
Suas vítimas: 
Quanto mais pagam, mais devem. 
Quanto mais recebem, menos têm. 
Quanto mais vendem, menos compram. 



Mapa-múndi/ 2 



No Sul, a repressão. Ao Norte, a depressão.
Não são poucos os intelectuais do Norte que se casam com as revoluções do Sul só pelo prazer de ficarem viúvos. Prestigiosamente choram, choram a cântaros, choram mares, a morte de cada ilusão; e nunca demoram muito para descobrir que o socialismo é o caminho mais longo para chegar do capitalismo ao capitalismo. 

A moda do Norte, moda universal, celebra a arte neutra e aplaude a víbora que morde a própria cauda e acha que é saborosa. A cultura e a política se converteram em artigos de consumo. Os presidentes são eleitos pela televisão, como os sabonetes, e os poetas cumprem uma função decorativa. Não há maior magia que a magia do mercado, nem heróis mais heróis que os banqueiros. 

A democracia é um luxo do Norte. Ao Sul é permitido o espetáculo, que não é negado a ninguém. E ninguém se incomoda muito, afinal, que a política seja democrática, desde que a economia não o seja. Quando as cortinas se fecham no palco, uma vez que os votos foram depositados nas urnas, a realidade impõe a lei do mais forte, que a lei do dinheiro. Assim determina a ordem natural das coisas. No Sul do mundo, ensina o sistema, a violência e fome não pertencem à história, mas à natureza, e a justiça liberdade foram condenadas a odiar-se entre si.

A desmemória/1


Estou lendo um romance de Louise Erdrich. A certa altura, um bisavô encontra seu bisneto. O bisavô está completamente lelé (seus pensamentos têm a cor da água) e sorri com o mesmo beatífico sorriso de seu bisneto recém-nascido. O bisavô é feliz porque perdeu a memória que tinha. O bisneto é feliz porque não tem, ainda, nenhuma memória. 

Eis aqui, penso, a felicidade perfeita. Não a quero.



A desmemória/2


O medo seca a boca, molha as mãos e mutila. O medo de saber nos condena à ignorância; o medo de fazer nos reduz à impotência. A ditadura militar, medo de escutar, medo de dizer, nos converteu em surdos e mudos. Agora a democracia, que tem medo de recordar, nos adoece de amnésia; mas não se necessita ter Sigmund Freud para saber que não existe o tapete que possa ocultar a sujeira da memória.



O medo


Certa manhã, ganhamos de presente um coelhinho das índias. Chegou em casa numa gaiola. Ao meio-dia, abri a porta da gaiola. 

Voltei para casa ao anoitecer e o encontrei tal e qual o havia deixado: gaiola adentro, grudado nas barras, tremendo por causa do susto da liberdade.



O rio do Esquecimento


A primeira vez que fui à Galícia, meus amigos me levaram ao rio do Esquecimento. Meus amigos me disseram que os legionários romanos, nos antigos tempos imperiais, tinham querido invadir aquelas terras, mas dali não haviam passado: paralisados de pânico, tinham parado nas margens daquele rio. E não o haviam atravessado nunca, porque quem cruza o rio do Esquecimento chega à outra margem sem saber quem é ou de onde vem. Eu estava começando meu exílio na Espanha, e pensei: se bastam as águas de um rio para apagar a memória, o que acontecerá comigo, que atravessei um mar inteiro? Mas eu tinha andado, percorrendo os pequenos povoados de Pontevedra e Orense, e tinha descoberto tavernas e cafés que se chamavam Uruguay ou Venezuela ou Mi Buenos Aires Querido e cantinas que ofereciam parrilladas ou arepas, e por tudo que era canto havia flâmulas do Penarol e do Nacional e do Boca Juniors, e tudo aquilo era dos galegos que tinham regressado da América e sentiam, ali, saudades pelo avesso. Eles tinham ido embora de suas aldeias, exilados como eu, embora afugentados pela economia e não pela polícia, e depois de muitos anos estavam de volta à sua terra de origem, e nunca tinham esquecido nada. Nem ao ir embora, nem ao estar lá, nem ao voltar: nunca tinham esquecido nada. E agora tinham duas memórias e duas pátrias.



A desmemória / 3


Nas ilhas francesas do Caribe, os textos de história ensinam que Napoleão foi o mais admirável guerreiro do Ocidente. Naquelas ilhas, Napoleão restabeleceu a escravidão em 1802. A sangue e fogo obrigou os negros livres a voltarem a ser escravos nas plantações. Disso, os textos não dizem nada. Os negros são os netos de Napoleão, não as suas vítimas.




A desmemória/4


Chicago está cheia de fábricas. Existem fábricas até no centro da cidade, ao redor do edifício mais alto do mundo. Chicago está cheia de fábricas, Chicago está cheia de operários. 

Ao chegar ao bairro de Heymarket, peço aos meus amigos que me mostrem o lugar onde foram enforcados, em 1886, aqueles operários que o mundo inteiro saúda a cada primeiro de maio. 

Deve ser por aqui — me dizem. Mas ninguém sabe. Não foi erguida nenhuma estátua em memória dos mártires de Chicago na cidade de Chicago. Nem estátua, nem monolito, nem placa de bronze, nem nada. 

O primeiro de maio é o único dia verdadeiramente universal da humanidade inteira, o único dia no qual coincidem todas as histórias e todas as geografias, todas as línguas e as religiões e as culturas do mundo; mas nos Estados Unidos, o Primeiro de maio é um dia como qualquer outro. Nesse dia, as pessoas trabalham normalmente, e ninguém, ou quase ninguém, recorda que os direitos da classe operária não brotaram do vento, ou da mão de Deus ou do amo.

Após a inútil exploração de Heymarket, meus amigos me levam para conhecer a melhor livraria da cidade. E lá, por pura curiosidade, por pura casualidade, descubro um velho cartaz que está como que esperando por mim, metido entre muitos outros cartazes de música, rock e cinema. 

O cartaz reproduz um provérbio da África: Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador.



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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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18.O Livro dos Abraços - Celebração da subjetividade  - Eduardo Galeano


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