domingo, 16 de outubro de 2016

histórias de avoinha: você é o melhor que já tive

mulheres descalças


você é o melhor que já tive
Ensaio 90B – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar



os visitantes chegaram escoltados pelo nosso amigo do peito, o general, e juntos à comitiva, outros dois aliados, honrados e próperos representantes da villa na capital, rio de janeiro. todos lacrados pela mudez do sigilo. a casa em polvorosa. todas indo e vindo, ajeitando e acomodando os detalhes, coisas sem importância que pessoas educadas percebem quando olham a esmo, só por olhar. aquilo tudo era uma novidade no casarão. quando o general me pediu o favor, sugeri que poderíamos atender seus convidados em qualquer lugar. afinal, o ferramental do atendimento pra saciar a gula e a fome dos hóspedes é o uso exclusivo da cada menina. provocar olhares de admiração e desejo é nossa especialidade. excitar encourajar e despertar instintos eróticos faz de cada menina especial e única, Não, Maria. Os rapazes querem conhecer o casarão.

O senhor manda.

jamais havíamos fechado a casa pra oferecer atendimento com exclusividade: “sempre abertas, sempre alertas”. sempre prontas pra chamar a atenção, Tudo bem, General. Deixe tudo com as meninas. Não pensaremos em mais nada... nem eles. Diga pra esquecerem seus compromissos.

não fazemos distinções entre gordo ou magro, político safado ou caixeiro-viajante, ladrão ou guarda da polícia, o dinheiro é o mesmo. só muda o preço do prêmio e o tamanho do serviço combinado. aparência? tanto faz, acudimos até desdentados. o dinheiro não faz cara feia pra mau hálito. já tivemos caso assim, as meninas acostumam. não existe anjo no céu nem demônio na terra, só gente ruim ou muito ruim, é preciso fazer uso da disciplina do general

já atendemos até negros no porão. é mais raro, mas atendemos em separado, não é por mim nem pelas meninas, não cabe a nós decidir, a clientela torce o nariz, e negócios são negócios. é tudo pelo dinheiro, sempre foi. não deixamos nenhum cliente ser humilhado, os tombos acontecem, mas procuramos diminuir as chances de ocorrer. não somos um instrumento de luta, somos a libertação. chega um momento que o desejo faz parte de tudo e homens sonham acordados, só pensam no gozo que virá em seus gritos de entusiasmo. são dinossauros anestesiados e frustrados que fodem como se matassem a mulher, esperando que ela regresse outra vez e outra vez e outra vez

já fizemos caridade socorrendo um ou outro rico em dívidas e pobre de recursos, é bem mais raro, mas acontece. também, atendemos em separado no porão. a entrada da senzala é nos fundos do casarão. uma pequena sala de espera com dois bancos compridos e quatro baias com divisórias de lona. quando as meninas não alcançam suas cotas de atendimentos elas descem para completar o seu bocado. é um trabalho como outro qualquer

esse é um casarão muito antigo, esse é um serviço muito mais antigo

a bisa contava que a sua mãe andava desgostosa com a vizinhança do quartel. queria mudar a competência da casa que atendia os soldados do quartel e os caixeiros-viajantes da villa, mas não se decidia em mudar. o que fazer? precisava de tempo

até que descobriu, em suas conversas com o padre - da igreja que não terminava - que além da vizinhança com o quartel e a praça dos enforcados, a casa podia estar em cima de um terreno santo do antigo cemitério da villa, ele não tinha precisão do lugar, mas devia ser pelos arredores. foi a gota d’água, Minha filha, precisamos sair desta rua de fantasmas e pecados ou perdemos o negócio e você não vai ter uma casa pra cuidar.

Isso é bobice, mamãe...

Um lugar com mortos em cima e embaixo da terra, é um lugar doloroso de abandono e solidão.

O que passou é coisa que não volta, mamãe.

Não quero me acostumar com isso. Sei, todos os lugares têm histórias de alegrias e tristezas, quero que você encontre um desses com mais alegrias que tristezas, entendeu?

Hum... não dá pra confiar nos fantasmas...

Nem nos fantasmas vivos.

a preferência era por um lugar mais alto, a salvo da estação das chuvas. a bisa chegou encontrar um casarão na rua do outro lado da colina, bonita pelos arvoredos, a sua mãe não quis. ela queria ficar no alto. não queria mais se estabelecer na mesma altura das águas, Não é mais seguro que o lugar em que estamos, minha filha.

Mas esse arvoredo esparramado é lindo.

Sei, mas vamos subir.

a filha colocou, então, toda sua atenção na rua da igreja. prédios de alvenaria. ruas calçadas. o progresso. melhor atendimento aos frequentadores. um novo pequeno milagre na rua da igreja, Gostei. Os fantasmas que fiquem por lá, nas beiradas do rio.

Mas, mamãe... esse casarão precisa de melhoras urgentes.

Pois então, vamos dar uma olhada já.

ao final da visita minuciosa, ela anunciou, Vamos fazer!

mas não havia um dinheiro guardado suficiente pra essa reforma, Calma, minha filha. Vamos criar um fundo, onde todas iremos contribuir.

O quê?

Um fundo de reservas...

Mas, mamãe... as meninas estão resmungando pelos cantos...

Iremos cobrar o dobro pelos nossos serviços.

Mamãe!

Está decidido. Não quero uma restauração ao acaso, improvisada por qualquer idiota safado.

Mamãe!

Não é só pelo valor da casa, minha filha. Esse casarão tem coração e muito fôlego pra ser o centro de abastecimento dos nossos serviços.

Eu preciso de fôlego.

Não se demore.

sabia dos riscos, mas quando entrou no casarão e fechou os olhos pode sentir o novo Casarão das Marias, as cobras se exibindo com as novas incumbências. um lugar que parecia um forte derrotado e abandonado, mas que voltaria a brilhar com força

dois pisos e um porão imenso. os quartos principais em cima, os dormitórios ocasionais ou emergenciais no rés do chão, junto com o piso da recepção e da grande praça de alimentação. os banheiros seguiam o costume, ficavam no fim do corredor, tanto em cima, como no nivelado pelo chão. um em cada piso, mas nenhum no subsolo, lá embaixo, tinha a latrina do pátio, Minha filha, precisamos uma entrada de serviço para os cubeiros.

Mãe, isso aumenta os custos.

E daí? Consegue imaginar o cubeiro entrando na porta da frente, o pão em uma das mãos, a cuba vazia na outra, passando pela recepção, atravessando o salão, com os pés descalços e imundos, até o banheiro pra trocar a cuba cheia de merda e mijo? Imagina ele subindo as escadas...

Chega, mamãe. Você quando quer é muita nojenta.

Ou você quer que joguemos as imundícies pela janela? E se cai na cabeça de um dos clientes?

Tá bom, mamãe...

o porão imenso em desuso, Esse lugar macabro podemos transformar em depósito.

Seria um bom depósito.

E quem sabe, um lugar mais reservado pra encontros com embaraço?

Boa ideia, minha filha. Um lugar pros estorvos.

sair dos alagados mudou nossa clientela, não foi um corte súbito, aconteceu naturalmente. aprendemos espontaneamente essa distinção que fazemos: o cliente quer saciar a sede e a fome? pra voar alto precisa pagar

Mamãe...

O que foi Mariinha?

Você já beijou?

Claro, minha filha!

Não é esse beijo. Eu quero saber se você já beijou no trabalho?

Já...

Não gosto de beijar na boca. É muito íntimo.

E se for alguém bonito?

Pode ajudar...

Eu não conseguia esperar quando eram bonitos.

Beijo de língua é nojento.

É uma delícia.

Nem sempre. Não gosto de fingir, mas fazer o quê, né?

‘Você é o melhor que já tive’, é o que eles querem escutar.

E o tamanho?

Isso mesmo, ‘O tamanho não importa, me faça feliz’.

O tamanho não importa se o homem não é preguiçoso.

Mas precisa ser esforçado.

Já estive com homem preguiçoso, não queria se esforçar, ‘Você é a puta, eu estou pagando, quem goza aqui sou eu’!

tem um preço pra voar muito alto, quanto mais afastado da terra pra fugir dos seus odores, resmungos, inveja, mazelas, mais caro é esse bilhete da passagem, Somos a mentira que salva, mas não fazemos caridade. O paraíso tem dono e um preço.

Às vezes, sinto pena.

a vida de ter mais é assim, lá no começo de tudo, os nossos sonhos não se atreviam a tanto, ninguém diz, ou se diz, não escutamos, A realidade precisa do sonho que, por sua vez, precisa estar escondido da realidade. E adivinha... nós somos esse sonho...

querem mais, mas não querem pagar

Somos cadáveres que os homens comem chutando pra baixo da cama.

Chutam de ódio.

Outros chutam de medo de gostar e nos enterram vivas.

os ensinamentos das bisas continuam nos ajudando, é assombroso como nada mudou fora do casarão. eu e as meninas preferimos nos tornar rendosas com a vida que escolhemos. a cobiça cresce e crescemos juntas, o a mais sempre é mais, ficamos intolerantes com o a menos

essa noite, por exemplo, estamos mudando de nível, vamos deixar esses homens em chamas, até se consumirem em cinzas. encontrarão seus medos e os prazeres mais ocultos soterrados sob toneladas da terra do bom senso, Isso é promessa, General!





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