terça-feira, 25 de outubro de 2016

Bobók - 4. Mas depois começou tal pandemônio - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


4.


Mas depois começou tal pandemônio que não retive tudo na memória, porque muitos acordaram ao mesmo tempo; acordou um funcionário, conselheiro civil, e começou imediatamente a discutir com o general o projeto de uma nova subcomissão no ministério e, conjugado com essa subcomissão, um provável remanejamento de ocupantes de cargos, o que deixou o general bastante entretido. Confesso que eu mesmo me inteirei de muitas novidades, de sorte que fiquei impressionado com os meios pelos quais às vezes podemos tomar conhecimento das novidades administrativas nesta capital. Depois semidespertou um engenheiro, que ainda levou tempo resmungando um completo absurdo, de sorte que os nossos nem implicaram com ele, mas deixaram que por ora continuasse deitado. Finalmente uma ilustre grã-senhora, sepultada pela manhã no catafalco, deu sinais de animação tumular. Lebieziátnikov (porque se chamava Lebieziátnikov o bajulador conselheiro da corte, objeto do meu ódio, que se colocara ao lado do general Piervoiêdov) ficou muito agitado e surpreso ao ver que desta vez todos estavam acordando muito depressa. Confesso que eu também me surpreendi; aliás, alguns dos despertos já estavam enterrados há três dias, como, por exemplo, uma mocinha bem jovem, de uns dezesseis anos, que dava risadinhas sem parar... dava risadinhas abjetas e sensuais.

— Excelência, o conselheiro secreto Tarassiêvitch está acordando! — anunciou de súbito Lebieziátnikov com uma pressa excepcional.


— Ãh, o quê? — resmungou o conselheiro secreto com voz ciciante e nojo, despertando de repente. No som da voz havia um quê de capricho e imposição. Por curiosidade agucei o ouvido, pois nos últimos dias eu ouvira falar coisas sumamente tentadoras e inquietantes a respeito desse Tarassiêvitch. 

— Sou eu, Excelência, por enquanto apenas eu. 

— Qual é o seu pedido e o que o senhor deseja? 

— Apenas me inteirar da saúde de Vossa Excelência; por falta de hábito, cada um que chega aqui se sente meio tolhido da primeira vez... O general Piervoiêdov gostaria de ter a honra de conhecer Vossa Excelência e espera... 

— Não ouvi. 

— Perdão, Excelência, é o general Piervoiêdov, Vassíli Vassílievitch... 

— O senhor é o general Piervoiêdov? 

— Não, Excelência, sou apenas o conselheiro da corte Lebieziátnikov para servi-lo, mas o general Piervoiêdov... 

— Absurdo! E peço-lhe que me deixe em paz. 

— Deixai-o — finalmente o general Piervoiêdov deteve com dignidade a pressa torpe do seu cliente sepulcral. 

— Ele ainda não acordou, Excelência, é preciso considerar; isso é falta do hábito: quando acordar o receberá de modo diferente... 

— Deixai-o — repetiu o general.



— Vassíli Vassílievitch! Ei, Excelência! — gritou alto de súbito e entusiasmada ao lado da própria Avdótia Ignátievna uma voz inteiramente novata, voz fidalguesca e petulante, com a dicção lânguida da moda e descaradamente escandida —, já faz duas horas que vos observo a todos; há três dias estou deitado aqui: o senhor se lembra de mim, Vassíli Vassílievitch? Kliniêvitch, nós nos encontramos em casa de Volokonski, onde o senhor, não sei por quê, também era recebido.

— Como, o conde Piotr Pietróvitch... não me diga que é o senhor... e em idade tão jovem... Como lamento!

— E eu também lamento, só que para mim dá no mesmo e doravante quero desfrutar de tudo o que for possível. E não sou conde, mas barão, apenas barão. Nós somos uns baronetes sarnentos, descendentes de criados, aliás, eu até desconheço a razão disso e estou me lixando. Sou apenas um pulha da “pseudo-alta sociedade” e me considero um “amável polisson”. Meu pai era um generalote qualquer e houve época em que minha mãe era recebida en haut lieu. No ano passado eu e o jid Zifel pusemos em circulação cerca de cinquenta mil rublos em notas falsas, eu o denunciei, e o dinheiro Yulka Charpentier de Lusignan levou todinho para Bordeaux. E imaginai que eu já estava noivo — de Schevaliévskaia, moça ainda colegial, a menos de três meses para completar dezesseis anos, noventa mil rublos de dote. Avdótia Ignátievna, estais lembrada de como me pervertestes há quinze anos, quando eu ainda era um cadete de quatorze anos? 

— Ah, és tu, patife, pelo menos Deus te enviou, porque aqui... 

— Em vão desconfiastes de mau cheiro no vosso vizinho negociante... Eu me limitei a calar e rir. Porque o mau cheiro sai de mim; é que me enterraram num caixão pregado. 

— Ah, que tipo abominável! Mas mesmo assim estou contente; não acreditaríeis, Kliniêvitch, não acreditaríeis como isso aqui carece de vida e graça. 

— Pois é, pois é, mas eu tenho a intenção de organizar aqui alguma coisa original. Excelência — não estou falando com o senhor, Piervoiêdov —, Excelência, o outro, o senhor Tarassiêvitch, o conselheiro secreto. Respondei! É Kliniêvitch, que na Quaresma vos levou à casa de mademoiselle Furie, estais lembrado? 

— Eu vos estou ouvindo, Kliniêvitch, e muito contente, acreditai... 

— Não acredito numa vírgula, e estou me lixando. Eu, amável velhote, quero simplesmente cobri-lo de beijos, mas graças a Deus não posso. Sabeis vós, senhores, o que esse grandpère engendrou? Faz três ou quatro dias que morreu, e podeis imaginar que deixou um desfalque de quatrocentos mil rublos redondos em dinheiro público? A quantia estava em nome das viúvas e dos órfãos, mas não se sabe por que ele a administrava sozinho, de sorte que acabou ficando oito anos livre de fiscalização. Imagino a cara de tacho de todos eles lá e que lembrança guardam dele! Não é verdade que é uma ideia cheia de volúpia? Vivi todo o ano passado admirado de ver como esse velhote de setenta anos, cheio de gota nas mãos e nos pés, ainda conseguia conservar tanta energia para a libertinagem, e agora vejo o enigma decifrado! Aquelas viúvas e órfãos... aliás, a simples ideia de sua existência deveria deixá-lo em brasas!... Eu já conhecia essa história havia muito tempo, e era o único a conhecê-la, Charpentier me contou na Semana Santa e, mal tomei conhecimento, investi contra ele, amigavelmente: “Passa-me vinte e cinco mil, senão amanhã a fiscalização estará aqui”; imaginai, na ocasião ele só arranjou treze mil, de sorte que, parece, agora a morte dele vem bem a propósito. Grand-père, grand-père, estais ouvindo? 

— Chèr Kliniêvitch, estou inteiramente de acordo convosco, e em vão... descestes a semelhantes detalhes. Na vida há tanto sofrimento, tanto martírio e tão pouco castigo... eu desejei finalmente aquietar-me e, até onde percebo, espero até neste lugar desfrutar de tudo... 

— Aposto que ele já farejou Kátich Bieriestova!

— Qual?... Que Kátich? — tremeu lasciva a voz do velho. 

— Ahah, que Kátich? Ali está, à esquerda, a cinco passos de mim, a dez do senhor. Ela já está aqui há cinco dias, e se o senhor, grand-père, soubesse que canalhinha... de um bom lar, educada, e um monstro, um monstro em último grau! Lá eu não a mostrava a ninguém, só eu sabia... Kátich, responda! 

— Ih-ih-ih! — respondeu o som de cana rachada da voz da mocinha, mas nele se ouviu algo como uma alfinetada. — Ih-ih-ih! 

— E é lou-ri-nha?— balbuciou o grande-père com três sons fragmentados. — Ih-ih-ih! 

— A mim... a mim já faz tempo — pôs-se a balbuciar ofegante o velho — que me atrai o sonho com uma lourinha... de uns quinze anos... e justamente numa situação como esta... 

— Ah, que monstruosidade! — exclamou Avdótia Ignátievna. 

— Basta! — resolveu Kliniêvitch. —, estou vendo que o material é magnífico. Aqui vamos nos organizar rapidamente para atingir o melhor. O principal é que passemos com alegria o resto do tempo: mas que tempo? Ei, o senhor aí, Lebieziátnikov, funcionário de alguma coisa, parece que foi esse o nome que ouvi chamarem!



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Dostoiévski, Fiódor, 1821-1881 D724b Bobók / Fiódor Dostoiévski; tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; desenhos de Oswaldo Goeldi; texto de Mikhail Bakhtin. — São Paulo: Editora 34, 2012 (1ª Edição). 96 p. (Coleção Leste)


1. Literatura russa. I. Bezerra, Paulo. II. Goeldi, Oswaldo, 1895-1961. III. Bakhtin, Mikhail, 1895-1975. IV. Título. V. Série.

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BOBÓK*

*Publicado originalmente no semanário Grajdanin (O Cidadão), nº 6, em 5 de fevereiro de 1873, quando Dostoiévski já era seu redator-chefe. Traduzido do original russo Pólnoie sobránie sotchiniénii v tridtsatí tomákh (Obras completas em trinta tomos) de Dostoiévski, tomo XXI, Leningrado, Ed. Naúka, 1980. As notas da edição russa estão assinaladas com (N. da E.); as notas do tradutor, com (N. do T.).

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