quinta-feira, 12 de outubro de 2017

18.O Estrangeiro: O meu interrogatório começou quase imediatamente - Albert Camus

Albert Camus


SEGUNDA PARTE


Capítulo 3


18. O meu interrogatório começou quase imediatamente



  NO FUNDO, UM Verão depressa substituiu outro Verão. Sabia que, com a chegada dos primeiros calores, surgiria qualquer coisa de novo. 

 O meu caso estava inscrito na última sessão do tribunal e esta sessão terminaria em fins de Junho. Os debates iniciaram-se num dia de sol. 

 O meu advogado assegurara-me que não durariam mais do que dois ou três dias "Aliás, acrescentara, "O caso será despachado rapidamente, porque não é o mais importante da sessão. Logo a seguir, será julgado um parricida". 

 Vieram-me buscar às sete e meia da manhã, e o carro celular levou-me ao tribunal. Os dois polícias mandaram-me entrar para uma salinha sombria. Aguardamos, sentados ao pé de uma porta, por detrás da qual se ouviam vozes, chamamentos, barulhos de cadeiras, numa confusão de ruídos que me recordou essas festas de bairro em que, depois do concerto, se organiza a sala para a dança. Os polícias disseram-me que tínhamos que esperar pelos juízes e um deles ofereceu-me um cigarro, que recusei. Perguntou-me, pouco depois, se estava com medo. Respondi que não. E mesmo, sob um certo aspecto, interessava-me observar um julgamento. Nunca tivera ocasião para ver nenhum: "Sim, disse o segundo polícia, mas acabamos por nos cansar". 

 Não muito tempo depois, uma campainha retiniu na sala onde estávamos. Tiraram-me as algemas. Abriram a porta e introduziram-me no pequeno quadrado dos réus. A sala estava cheia a abarrotar. Apesar das persianas, o sol infiltrava-se aqui e ali e o ar estava já quentíssimo. Tinham deixado os vidros fechados. Sentei-me e os polícias puseram-se um de cada lado da cadeira. Foi nesse momento que, diante de mim, distingui uma fila de caras. Todas me olhavam: percebi que eram os membros do júri. Mas não sou capaz de dizer o que os distinguia uns dos outros. Tive apenas uma impressão: eu estava no banco de um eléctrico e todos estes passageiros anônimos espiavam o recém-chegado para lhe observar os ridículos. Sei perfeitamente que esta ideia era parva pois aqui não era o ridículo que eles procuravam, era o crime. Porém a diferença entre as duas coisas não se me afigurava muito grande e, de qualquer modo, foi a ideia que me veio à cabeça. 

 Estava um pouco atordoado, por tanta gente amontoada numa sala. Voltei a olhar para o júri e não consegui distinguir especialmente nenhuma fisionomia. Parece-me bem que, ao princípio, não tinha percebido que toda esta gente estava aqui para me ver. Geralmente, as pessoas não se interessavam pela minha pessoa. Tive que realizar um esforço, para compreender que a causa de toda esta agitação era eu. Disse ao polícia: "Que quantidade de gente!" Respondeu-me que era por causa dos jornais e mostrou-me um grupo que estava em volta de uma mesa, por debaixo do banco do júri. Disse: "Ali estão eles". Perguntei: "Quem?" e ele repetiu: "Os jornais".

 Conhecia um dos jornalistas, que nesse momento o viu e que se dirigiu em nossa direção. Era um homem já de certa idade, simpático, com uma cara vincada. Apertou calorosamente a mão do polícia. Notei nesse instante que toda a gente se interpelava e conversava, como num clube em que se gosta de encontrar pessoas do mesmo meio. Foi assim que interpretei uma impressão bizarra de estar a mais, de ser como que um intruso. No entanto, o jornalista falou-me com um ar sorridente. Disse que esperava que tudo corresse bem, para mim. Agradeci-lhe e ele acrescentou: "Sabe, tivemos que "fazer" um pouco o seu caso. O Verão é uma época morta, para os jornais. As únicas histórias que valiam alguma coisa, eram a sua e a do parricida". Mostrou-me em seguida, no grupo que acabara de deixar, um homenzinho gordo, com uns grandes óculos de aros negros. Disse-me que era o enviado especial de um jornal de Paris: "Não veio, aliás, por sua causa. Mas como está encarregado de fazer uma reportagem sobre o parricida, pediram-lhe para se ocupar também do seu caso". Estive quase para lhe agradecer, mas pensei que seria ridículo. Fez-me com a mão um cordial gesto de despedida e deixou-nos. Esperamos ainda alguns minutos. 

 Por fim chegou o meu advogado, com o traje da ocasião, rodeado de muitos outros colegas. Dirigiu-se aos jornalistas e apertou várias mãos. Gracejaram, riram e tinham um ar perfeitamente à vontade até que tocou a campainha. Foram todos ocupar os seus lugares. O meu advogado veio ter comigo, apertou-me a mão e aconselhou-me a responder com brevidade às perguntas que me fizessem, a não tomar iniciativas e, quanto ao resto, a ter confiança nele. 

 Ouvi, à minha esquerda, o barulho de uma cadeira arrastada e vi um homem alto e magro, vestido de encarnado, com monóculo, que se sentava dobrando cuidadosamente a toga. Era o procurador. Um oficial de justiça veio anunciar os juízes. Ao mesmo tempo, dois grandes ventiladores começaram a girar. Os três juízes, dois de preto e o terceiro de vermelho, entraram com as pastas do processo e dirigiram-se muito depressa para a tribuna que dominava a sala. O homem da toga vermelha sentou-se na cadeira do meio, colocou a gorra em frente dele, limpou o crânio sem cabelos com um lenço e declarou que estava aberta a sessão. 

 Os jornalistas tinham já as canetas na mão. Tinham todos o mesmo ar indiferente e um pouco trocista. Porém um deles, muito mais novo do que os outros, com um fato de flanela cinzenta e uma gravata azul, deixara a caneta em cima da mesa e fitava-me. Na sua cara um pouco assimétrica, eu não via senão os olhos, muito claros, que me examinavam atentamente, sem nada exprimir de definível. E senti a estranha impressão de estar a ser examinado, não pelo que parecia, mas pelo que era realmente. Foi talvez por isso, e também porque não conhecia os hábitos dos tribunais, que não compreendi lá muito bem o que depois se passou, a tiragem à sorte dos jurados, as perguntas feitas pelo presidente ao advogado, ao procurador e ao júri (de cada vez, as caras dos membros do júri voltavam-se ao mesmo tempo para a tribuna dos juízes), uma rápida leitura do ato de acusação, onde reconheci nomes de lugares e de pessoas e novas perguntas, feitas ao meu advogado. 

 Mas o presidente disse que ia proceder à chamada das testemunhas. O bedel leu nomes que me despertaram a atenção. Do seio deste público informe, vi que surgiam, um a um, para em seguida desaparecerem por uma porta lateral, o velho Tomás Perez, Raimundo, Masson, Salamano e Maria. Esta fez-me um sinal ansioso. Ainda não desaparecera a surpresa de não os ter visto mais cedo, quando a última das testemunhas, o Celeste, se levantou. Reconheci ao lado dele a mulherzinha do restaurante, com o seu casaco e o seu ar exato e decidido. Mas não tive tempo de pensar, pois o presidente tomou a palavra. Disse que os verdadeiros debates iam principiar e que julgava inútil recomendar calma ao público. 

 Na sua opinião, estava ali para dirigir imparcialmente os debates de um caso que queria considerar com toda a objectividade. A sentença dada pelo júri seria tomada com espírito de justiça e, se fosse preciso, mandaria evacuar a sala ao mínimo incidente. 

 O calor aumentava e reparei que, na sala, várias pessoas se abanavam com jornais. Isto provocava um barulho contínuo de papel amarrotado. O presidente fez um sinal e o bedel trouxe três leques de palha entrançada que os três juízes começaram imediatamente a utilizar.

 O meu interrogatório começou quase imediatamente. O presidente fez-me as perguntas com um ar calmo e mesmo, pareceu-me, com um fio de cordialidade: Obrigaram-me outra vez a dizer a minha identidade e, apesar de isto já me estar a aborrecer, pensei que era no fundo natural, pois seria muito sério julgar um homem por outro. Em seguida o presidente começou a descrever o que eu tinha feito, interpelando-me de três em três frases e perguntando: "Foi assim, não foi?" De cada vez, seguindo as instruções do meu advogado, respondi: "Sim, sr. Presidente". Isto durou muito tempo, pois o presidente relatava a história com todos os pormenores. Durante este tempo todo, os jornalistas escreviam. Eu sentia sobre mim os olhares do mais novo, assim como da mulher do restaurante. O banco do eléctrico estava todo ele, voltado para o presidente., Este tossiu, folheou o processo e voltou-se para mim, não deixando de se abanar. 

 Disse-me que ia agora abordar questões aparentemente estranhas ao meu caso, mas que talvez o tocassem de muito perto. Percebi que me iam outra vez falar da minha mãe e senti até que ponto isso me aborrecia. Perguntou-me por que razão a mandara para o asilo. Respondi que era por que não ganhava o bastante para a ter comigo e para cuidar dela como devia ser. Perguntou-me se, pessoalmente, sofrera com o facto e respondi que nem a minha mãe, nem eu, esperávamos já alguma coisa um do outro, nem aliás de ninguém, e que os dois nos havíamos habituado às nossas novas vidas. O presidente disse então que não queria insistir neste ponto e perguntou ao procurador se tinha alguma pergunta a fazer-me. 

 Este estava quase de costas para mim e, sem me olhar, declarou que, com a autorização do presidente, gostava de saber se eu voltara à nascente com a intenção de matar o Árabe: "Não", respondi. "Então, porque estava ele armado e porque regressara precisamente, àquele lugar?" Repliquei que fora o acaso que lá me levara. E o procurador concluiu, com uma expressão malévola: "Por agora, é tudo". O que em seguida se passou foi um pouco confuso, pelo menos para mim. Mas depois de alguns conciliábulos, o presidente declarou a audiência suspensa e adiada até logo à tarde, para serem ouvidas as testemunhas.

Não tive tempo para pensar. Levaram-me, mandaram-me entrar para o carro celular e fecharam-me outra vez na minha cela, onde almocei. Ao cabo de muito pouco tempo, apenas o bastante para perceber que me sentia cansado, vieram-me buscar, começou tudo outra vez de princípio, e dei comigo na mesma sala, diante das mesmas caras. Simplesmente o calor era muito maior e, como por milagre, cada um dos jurados, o procurador, o meu advogado e alguns jornalistas, estavam também munidos de leques de palha. O jovem jornalista e a mulherzinha continuavam nos mesmos lugares. Mas não se abanavam e continuavam a fitar-me em silêncio. 

 Enxuguei o suor que me cobria a cara e só retomei consciência do lugar e de mim mesmo, quando ouvi chamar o diretor do asilo. Perguntaram-lhe se a minha mãe se queixava de mim e ele disse que sim, mas que todos os pensionistas tinham um pouco a mania de se queixar da família. O presidente disse-lhe para especificar se ela me censurava por eu a ter metido no asilo e o diretor respondeu que sim. Mas desta vez, não acrescentou nada. A uma outra pergunta, redarguiu que a minha calma no dia do enterro o surpreendera. Perguntaram-lhe o que entendia ele por "calma". O diretor olhou então para as pontas dos sapatos e disse que eu não quisera ver o corpo da minha mãe, que não chorara uma única vez e que partira logo a seguir ao enterro, sem me recolher sequer uns momentos no cemitério. Espantara-o uma outra coisa: um empregado da Agência Funerária dissera-lhe que eu não sabia a idade da minha mãe. Houve uns instantes de silêncio e o presidente perguntou se era de facto a meu respeito que ele acabara de falar. Como o diretor não compreendesse a pergunta, disse-lhe: "a lei". Depois o presidente perguntou ao advogado de acusação se não tinha mais nenhuma pergunta a fazer à testemunha e o procurador respondeu: "Ah, não, isto já chega!", com uma tal veemência e um tal olhar de triunfo na minha direção que, pela primeira vez há já muitos anos, tive uma vontade estúpida de chorar, porque senti até que ponto toda esta gente me detestava. 

 Depois de ter perguntado ao juri e ao meu advogado se queriam fazer algumas perguntas, o presidente chamou o porteiro do asilo. Para este, como para os outros, repetiu-se o mesmo cerimonial.



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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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