sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Gente Pobre - 20. Enamorado de uma atriz, mas enamorado a valer - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


20.




7 de julho


Minha querida Bárbara Alexeievna:




Retomo o fio da conversa no ponto onde ontem a deixamos... Também, minha querida, no meu tempo, fiz algumas loucuras. 

Estive enamorado de uma atriz, mas enamorado a valer; é como lhe digo! E o mais interessante é que nunca a tinha visto na rua; vi-a no teatro, e só uma vez. No entanto apaixonei-me por ela. 

Nesse tempo, na divisão pegada aos meus aposentos viviam cinco rapazes muito alegres. Não mantínhamos relações íntimas, mas uma noite juntei-me espontaneamente com eles e acompanhei-os ao teatro. O que eu ouvia os rapazes contarem dessa atriz! Sempre que havia espetáculo, lá iam todos, gastando às vezes o dinheiro que lhes fazia falta para as coisas necessárias. Entravam para a galeria e todos os seus aplausos e ovações eram exclusivamente para aquela atriz; não se cansavam de a aplaudir freneticamente como possessos. Depois, como é natural, os meus companheiros não me deixavam dormir em toda a noite; passavam-na a falar dela, todos lhe chamavam a sua Glacha, estavam todos enamorados da artista, denominando-a «o canário dos seus corações». Por fim, acabaram por me contagiar do seu entusiasmo. Eu era ainda tão novo! 

Não sei como, uma noite encontrei-me sentado, como eles, na galeria. Apenas distinguia um cantinho do pano de fundo do palco, mas ouvia tudo perfeitamente. Ela possuía uma vozita linda, clara, agradável como a de um rouxinol. Batíamos palmas até ficarmos com as mãos roxas e vermelhas, e gritávamos sem cessar; numa palavra, quase tinham de nos tirar dali pelo pescoço para nos irmos embora. 

De regresso a casa, vinha como envolto numa névoa! Já só trazia no bolso um rublo, e para o fim do mês faltavam ainda uns bons dez dias. E que imagina que eu fiz, meu amor? No dia seguinte, quando ia para o trabalho, entrei numa perfumaria e gastei o dinheiro que me restava em perfumes e sabonetes cheirosos, sem saber mesmo para que queria tudo aquilo. Além disso, naquela tarde não comi; fui rondar a casa da atriz, ao pé das suas janelas. Vivia num quarto andar da Perspetiva Nevski. Em seguida, regressei a casa, comi qualquer coisa e dirigi-me de novo para Nevski, onde reatei a vigilância em frente às suas janelas. 

Passei assim mês e meio; de vez em quando alugava um drochki dos mais luxuosos, e passeava nele de um lado para o outro, junto das janelas da atriz. Gastei assim todo o meu ordenado, vendo-me obrigado a contrair dívidas. Por fim aquela paixão foi-se dissipando, acabando por se me tornar aborrecido aquele namoro. 

Ora veja a que extremos uma atriz pode conduzir um homem! Mas é preciso ter em conta que nessa altura era um jovem, querida Bárbara. Sim, era ainda muito novo...



M. D.







8 de julho


Querida Bárbara Alexeievna:




Apresso-me a devolver-lhe o livro que teve a amabilidade de me enviar no dia 6 deste mês, ao mesmo tempo que quero ter consigo umas explicações, meu amor. Acho que não faz bem colocando-me nesta melindrosa situação. 

Permita-me, minha amiga, que lhe diga que é o Todo-Poderoso quem marca ao homem a sua condição social. Um nasceu para ostentar as estrelas de general, outro para ser literato; aquele, para mandar; este, para obedecer, sem replicar. Estas coisas estão de acordo com a capacidade de cada qual; um tem aptidão para uma coisa, outro para outra, mas é Deus quem dá essas aptidões. 

Já tenho trinta anos de serviço como empregado público, cumpro à risca os meus deveres, procuro comportar-me bem e nunca fui apanhado na mínima falta. Como cidadão e como pessoa humana, reconheço que sou homem e que tenho, por isso, defeitos, mas também tenho algumas virtudes. Sou estimado pelos meus superiores e mesmo sua excelência está contente comigo... Apesar de até hoje me não haver dado mostras da sua satisfação, sei de boa fonte que isso é verdade. Possuo uma letra agradável, nem muito grande nem muito pequena; no cursivo, destaco-me mesmo no meio dos copistas; mas em qualquer dos tipos, sou regular. De todos os empregados do ministério, talvez haja apenas um — Ivan Prokofievitch — com letra igual à minha, ou antes, que se aproxima da minha. Envelheci no serviço e não me lembro de ter cometido qualquer falta digna de registo. Faltas ligeiras, claro, quem nunca as cometeu? Todos pecamos, minha amiga, até você própria. Mas não me pesa na consciência qualquer delito importante, nem mesmo um ato consciente de insubordinação como, por exemplo, perturbar a tranquilidade pública ou qualquer coisa no gênero. Não tenho nada disso a censurar-me, nunca me ralharam por nada parecido. Pelo contrário, concederam-me até uma cruz de mérito. Mas a que vêm estas coisas? Já deve saber tudo isto, e o autor também; antes de principiar a descrição, decerto pôs-se ao corrente de tudo. Não, nunca a julgaria capaz de tal coisa, querida Bárbara, nunca esperara isto de si. 

Mas quê? Não poderão deixar-nos viver em paz no nosso cantinho, por mais humilde que este seja, sem incomodar ninguém, sem turvar as águas, como diz o ditado, possuídos do temor de Deus? Será que terão sempre de nos incomodar, quando nós não queremos causar incômodo a quem quer que seja, devassando sempre a nossa vida particular, penetrando-nos em casa, para espiar o que por lá vai e verificar, por exemplo, se o colete se encontra em bom estado, se carecemos de roupa interior, se temos botas e que tais as solas, o que comemos, o que bebemos e o que andamos a copiar? Lá porque uma pessoa às vezes tenha falta de dinheiro e não tome chá, será razão para lhe assoalhar a vida no papel? Como se todos os mortais, sem exceção, tivessem de tomar chá! Alguma vez, porventura, examinei a boca de alguém para ver o que come? A quem é que eu fiz tal ofensa? Não, meu amor; não devemos fazer mal a quem nos não ofende! Tem aqui um exemplo; um homem serve conscienciosamente, cumpre com zelo os seus deveres, e goza mesmo da estima dos seus superiores — digam os outros o que quiserem; o certo é que o estimam —, e de repente surge um maduro que, sem qualquer motivo e inopinadamente, começa a escrevinhar um folheto atentatório da dignidade desse empregado, uma sátira como a desse livro! 

Bem sei que todo aquele que cria alguma coisa de novo, fica orgulhoso e, com a alegria, quase não dorme. Sucede ordinariamente assim; se uma pessoa, por exemplo, compra umas botas novas, o gosto que sente quando as calça! É verdade, já se passou comigo, pois torna-se sumamente agradável enfiar os pés numas botas finas. O livro descreve isto muito bem. Todavia, confesso muito sinceramente que estou espantado de Fédor Fedrovitch o ter lido sem se mostrar ofendido. 

É certo que esse funcionário é um simples oficial, ainda jovem, e às vezes gosta de fazer valer os seus direitos e barafustar com os subordinados. Mas porque não havia de se insurgir quando se torna necessário? Porque não havia de o fazer, dado que, de outro modo, nada se pode conseguir? Bom; aqui para nós, querida Bárbara, isso é necessário, embora não passe de uma simples formalidade. Devem segurar-se bem as rédeas, tem de se mostrar energia, porque senão, meu amor, sem energia, sem severidade, não conseguem nada de nós. O que cada um quer é conservar o seu emprego e poder dizer: «Estou empregado aqui ou ali»; quanto a trabalho, cada qual procura fugir-lhe o mais que pode. Mas como há várias categorias na hierarquia burocrática, e cada uma delas uma vez ou outra merece ser repreendida, sucede que o chefe tem de servir-se, nas suas reprimendas, de diversos tons, de acordo com a categoria a que se dirige; e isso está muito bem! 

De resto, para que o mundo possa subsistir, tem de haver sempre uns que mandem nos outros e lhes retesem as rédeas... Se assim não fosse, o mundo perderia o equilíbrio e não se aguentaria, transformar-se-ia num verdadeiro caos. Na verdade, admira-me Fédor Fedrovich não haver notado semelhante ofensa. 

Mas para quê escrever todas estas coisas? Alguém lucrará com isso? Dar-me-á, porventura, algum leitor alguma capa ou umas botas novas? Não, querida Bárbara; o leitor limita-se a ler a história e fica ansioso pela continuação da mesma. O resultado de tal escrito é que a gente tem de se esconder, ocultar-se, acobardar-se, sentir medo até de deitar o nariz fora da porta, com receio de ser escarnecido, pois, como se sabe, o difamador serve-se de tudo. Se qualquer se lembra de exibir, em letra de forma, toda a sua vida, tanto a pública como a particular, de modo a provocar sarcasmos e risos a quem a ler, já não poderá mais aparecer nas ruas! Mas, no livro a que me refiro, a descrição atinge tal minuciosidade, que o protagonista pode ser reconhecido até pelo modo de andar! Se ao menos o autor, para o fim, fosse mudando um pouco, suavizando as cores, dizendo, por exemplo, que o herói, apesar de tudo, foi sempre um honrado e virtuoso cidadão e que nada fez para merecer tal tratamento da parte dos seus colegas; que era obediente para com os superiores e cumpria escrupulosamente os seus deveres (podendo, neste ponto, apontar um caso elucidativo do que afirmava); que nunca desejou mal a quem quer que fosse; que cria em Deus e quando morreu (se é que por força tinha de morrer), todos o prantearam... 

Mas não seria preferível, em vez de deixar morrer esse pobre infeliz, arranjar as coisas de modo a que a capa aparecesse e Fédor Fedrovitch, o chefe da repartição, estivesse mais bem informado acerca das virtudes do seu subordinado e lhe desse emprego no seu gabinete, promovendo-o e aumentando-lhe o ordenado? Desta forma, o mal seria castigado e a virtude conseguiria o triunfo. Se assim procedesse, os seus companheiros ficariam cheios de inveja! 

Era este o desenlace que eu imaginaria; de outro modo, a novela apresenta um caso dos mais vulgares da vida corrente, destituído de qualquer beleza; não se vê nela mais que um simples exemplo do humilde dia a dia. E como pôde lembrar-se de me enviar semelhante livro? É uma obra mal intencionada, prejudicial, querida Bárbara! Falta-lhe verdade, verosimilhança, pois é de todo impossível encontrar, seja onde for, um empregado como este! Não, querida Bárbara; tenho de me queixar, vou apresentar uma queixa em forma! 

Seu fiel servidor



Makar Dievuchkin





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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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