domingo, 8 de outubro de 2017

O Segundo Sexo - 14. Fatos e Mitos: o próprio Freud admite que o prestígio do pênis explica-se pela soberania do pai

Simone de Beauvoir



14. Fatos e Mitos


Primeira Parte
Destino

CAPITULO II
O PONTO DE VISTA PSICANALÍTICO




 : 
o próprio Freud admite que o prestígio do pênis explica-se pela soberania do pai




ASSIM COMO NÃO BASTA dizer que a mulher é uma fêmea, não se pode defini-la pela consciência que tem de sua feminilidade; toma consciência desta no seio da sociedade de que é membro. Interiorizando o inconsciente de toda a vida psíquica, a própria linguagem da psicanálise sugere que o drama do indivíduo desenrola-se nele: as palavras "complexo", "tendência" etc. implicam-no. Mas uma vida é uma relação com o mundo; é escoIhendo-se através do mundo que o indivíduo se define; é para o mundo que nos devemos voltar a fim de responder às questões que nos preocupam. Em particular, a psicanálise malogra em explicar por que a mulher é o Outro, pois o próprio Freud admite que o prestígio do pênis explica-se pela soberania do pai e confessa que ignora a origem da supremacia do macho. 

Sem rejeitar em bloco as contribuições da psicanálise, algumas das quais são fecundas, recusaremos contudo seu método. Primeiramente não nos restringiremos a considerar a sexualidade um dado: que essa atitude seja limitada é o que demonstra a pobreza das descrições relativas à libido feminina. Já dissemos que jamais os psicanalistas a estudaram de frente, mas tão-somente a partir da libido masculina; parecem ignorar a atração fundamental que o macho exerce sobre a fêmea. Freudianos e adlerianos explicam a angústia experimentada pela mulher ante o sexo masculino como a inversão de um desejo frustrado. Stekel viu melhor que há uma reação original, mas ele a explica de maneira superficial: a mulher teria medo do defloramento, da penetração, da gravidez, da dor e esse medo lhe frearia o desejo. A explicação é por demais racional. Ao invés de admitir que o desejo se disfarça em angústia ou é combatido pelo temor, fora preciso encarar como um dado original essa espécie de apelo a um tempo urgente e amedrontado que é o desejo da fêmea; é a síntese indissolúvel da atração e da repulsa que o caracteriza. É notável que muitas fêmeas animais fogem do coito no próprio momento em que o solicitam: tacham-nas de faceiras, de hipócritas, mas é absurdo pretender explicar comportamentos primitivos assimilando-os a condutas complexas. São eles, ao contrário, que se encontram na base das atitudes do que se denomina na mulher faceirice, hipocrisia. A ideia de uma "libido passiva" desnorteia porque se definiu a libido a partir do macho como impulso, energia; mas não se conceberia tampouco a priori que uma luz pudesse ser a um tempo amarela e azul: é preciso ter a intuição do verde. Limitar-se-ia ainda mais a realidade, se em lugar de definir a libido em termos vagos de energia, se confundisse a significação da sexualidade com outras atitudes humanas: pegar, captar, comer, fazer, suportar etc; porque ela é um dos modos singulares de apreender um objeto; fora preciso estudar também as qualidades do objeto erótico tal qual se apresenta não apenas no ato sexual mas ainda na percepção em geral. Esse exame sai do quadro da psicanálise que apresenta o erotismo como irredutível.

Por outro lado, situaremos de maneira inteiramente diferente o problema do destino feminino: colocaremos a mulher num mundo de valores e atribuiremos a suas condutas uma dimensão de liberdade. Pensamos que ela tem a escolher entre a afirmação de sua transcendência e sua alienação como objeto; ela não é o joguete de impulsos contraditórios, ela inventa soluções entre as quais existe uma hierarquia ética. Substituindo ao valor a autoridade, à escolha o impulso, a psicanálise propõe um ersatz da moral: é a ideia de normalidade. Essa ideia é por certo muito útil em terapêutica, mas adquiriu, na psicanálise em geral, uma inquietante extensão. O esquema descritivo propõe-se como uma lei, e seguramente uma psicologia mecanicista não poderia aceitar a noção de invenção moral: pode, quando muito, explicar o menos, nunca o mais. A rigor, admite malogros, nunca criações. Se um sujeito não reproduz em sua totalidade a evolução considerada normal, dir-se-á que a evolução se deteve no caminho, interpretar-se-á essa parada como uma falha, uma negação, nunca como uma decisão positiva. E o que torna, entre outras coisas, tão chocante a psicanálise dos grandes homens. Dizem-nos que tal transferência, tal sublimação, não conseguiu efetuar-se neles. Não se supõe que talvez o tenham recusado e que talvez tivessem boas razões para tanto; não se quer considerar que suas condutas possam ter sido motivadas por objetivos livremente postos; é sempre em sua ligação com o passado e não em função de um futuro para o qual se projeta que explicam o indivíduo. Por isso mesmo, dele não apresentam senão uma imagem inautêntica e na inautenticidade não se poderia encontrar outro critério que não o da normalidade.

A descrição do destino feminino é, desse ponto de vista, impressionante. No sentido em que os psicanalistas o entendem, "identificar-se" à mãe ou ao pai é alienar-se em um modelo, é preferir ao movimento espontâneo de sua própria existência uma imagem alheia, é fingir ser. Mostram-nos a mulher solicitada por dois modos de alienação; é evidente que fingir ser homem seria para ela fonte de malogro, mas fingir ser mulher é também ilusão. Ser mulher seria ser o objeto, o Outro, e o Outro permanece sujeito no seio de sua demissão. O verdadeiro problema para a mulher está, em recusando essas fugas, realizar-se como transcendência; trata-se de ver, então, que possibilidades lhe abrem o que se chama atitude viril e atitude feminina; quando uma criança segue o caminho indicado por tal ou qual de seus pais, é talvez porque retoma livremente os projetos deles. Sua conduta pode ser o resultado de uma escolha motivada por certos fins. Mesmo em Adler, a vontade de potência não passa de uma espécie de energia absurda; ele denomina "protesto viril" todo projeto em que se encarna a transcendência. Quando uma menina sobe a uma árvore é, a seu ver, para igualar-se aos meninos: não imagina que subir numa árvore lhe agrade; para a mãe, a criança é algo diferente do "equivalente do pênis"; pintar, escrever, fazer política não são apenas "boas sublimações". Há, nessas atividades, fins que são desejados em si: negá-lo é falsear toda a história humana. Pode-se observar certo paralelismo entre nossas descrições e as dos psicanalistas. É porque do ponto de vista dos homens — e é o que adotam os psicanalistas de ambos os sexos — consideram-se femininas as condutas de alienação, e viris aquelas em que o sujeito afirma sua transcendência. Um historiador da mulher, Donaldson, observava que as definições: "O homem é um ser humano macho, a mulher é um ser humano fêmeo", foram assimètricamente mutiladas; é particularmente entre os psicanalistas que o homem é definido como ser humano e a mulher como fêmea: todas as vezes que ela se conduz como ser humano, afirma-se que ela imita o macho.

O psicanalista descreve-nos a criança e a moça solicitadas a identificar-se com o pai ou a mãe, hesitantes entre as tendências "virilóides" e "femininas"; ao passo que nós concebemos a mulher hesitando entre o papel de objeto, de Outro que lhe é proposto, e a reivindicação de sua liberdade. Assim, concordaremos a respeito de certo número de fatos, em particular quando consideramos os caminhos de fuga inautêntica que se oferecem à mulher, mas não lhes emprestaremos, em absoluto, a mesma significação que o freudiano ou o adleriano. Para nós, a mulher define-se como ser humano em busca de valores no seio de um mundo de valores, mundo cuja estrutura econômica e social é indispensável conhecer; nós a estudaremos numa perspectiva existencial através de sua situação total.



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O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.


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Leia também:

O Segundo Sexo - 12. Fatos e Mitos: a mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea


O Segundo Sexo - 13. Fatos e Mitos: quando a observação descobre tantas anomalias quantos casos normais


O Segundo Sexo - 15. Fatos e Mitos: A humanidade não é uma espécie animal: é uma realidade histórica


O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?




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