domingo, 22 de outubro de 2017

O Segundo Sexo - 15. Fatos e Mitos: A humanidade não é uma espécie animal: é uma realidade histórica

Simone de Beauvoir



15. Fatos e Mitos


Primeira Parte
Destino

CAPITULO III
O PONTO DE VISTA DO MATERIALISMO HISTÓRICO




 : A humanidade não é uma espécie animal: é uma realidade histórica




A TEORIA do materialismo histórico pôs em evidência muitas verdades importantes. A humanidade não é uma espécie animal: é uma realidade histórica. A sociedade humana é uma anti-phisis: ela não sofre passivamente a presença da Natureza, ela a retoma em mãos. Essa retomada de posse não é uma operação interior e subjetiva; efetua-se objetivamente na práxis. Assim, a mulher não poderia ser considerada apenas um organismo sexuado: entre os dados biológicos só têm importância os que assumem, na ação, um valor concreto; a consciência que a mulher adquire de si mesma não é definida unicamente pela sexualidade. Ela reflete uma situação que depende da estrutura econômica da sociedade, estrutura que traduz o grau de evolução técnica a que chegou a humanidade. 

Viu-se que, biologicamente, os dois traços que caracterizam a mulher são os seguintes: seu domínio sobre o mundo é menos extenso que o do homem; ela é mais estreitamente submetida à espécie. Mas esses fatos assumem uma valor inteiramente diferente segundo o seu contexto econômico e social. Na história humana, o domínio do mundo não se define nunca pelo corpo nu: a mão com seu polegar preensivo já se supera em direção ao instrumento que lhe multiplica o poder; desde os mais antigos documentos de pré-história o homem surge sempre armado. No tempo em que se tratava de brandir pesadas maças, de enfrentar animais selvagens, a fraqueza física da mulher constituía uma inferioridade flagrante; basta que o instrumento exija uma força ligeiramente superior à de que dispõe a mulher para que ela se apresente como radicalmente impotente. Mas pode acontecer, ao contrário, que a técnica anule a diferença muscular que separa o homem da mulher: a abundância só cria superioridade na perspectiva de uma necessidade; não é melhor ter demais do que não ter bastante. Assim, o manejo de numerosas máquinas modernas não exige mais do que uma parte dos recursos viris. Se o mínimo necessário não é superior às capacidades da mulher, ela torna-se igual ao homem no trabalho. Efetivamente, pode-se determinar hoje imensos desenvolvimentos de energia simplesmente apertando um botão. Quanto às servidões da maternidade, elas assumem, segundo os costumes, uma importância muito variável: são esmagadoras se se impõem à mulher muitas procriações e se ela deve alimentar e cuidar dos filhos sem mais ajuda; se procria livremente, se a sociedade a auxilia durante a gravidez e se se ocupa da criança, os encargos maternais são leves e podem ser facilmente compensados no campo do trabalho.

É de acordo com essa perspectiva que Engels retraça a história da mulher em A Origem da Família. Essa história dependeria essencialmente da história das técnicas. Na Idade da Pedra, quando a terra era comum a todos os membros do clã, o caráter rudimentar da pá, da enxada primitiva, limitava as possibilidades agrícolas: as forças femininas estavam na medida do trabalho exigido pelo cultivo dos jardins. Nessa divisão primitiva do trabalho, os dois sexos já constituem, até certo ponto, duas classes; entre elas há igualdade. Enquanto o homem caça e pesca, a mulher permanece no lar. Mas as tarefas domésticas comportam um trabalho produtivo: fabricação dos vasilhames, tecelagem, jardinagem, e com isso ela desempenha um papel importante na vida econômica. Com a descoberta do cobre, do estanho, do bronze, do ferro, com o aparecimento da charrua, a agricultura estende seus domínios. Um trabalho intensivo é exigido para desbravar florestas, tornar os campos produtivos. O homem recorre, então, ao serviço de outros homens que reduz à escravidão. A propriedade privada aparece: senhor dos escravos e da terra, o homem torna-se também proprietário da mulher. Nisso consiste "a grande derrota histórica do sexo feminino". Ela se explica pelo transtorno ocorrido na divisão do trabalho em conseqüência da invenção de novos instrumentos. "A mesma causa que assegurara à mulher sua autoridade anterior dentro da casa, seu confinamento nos trabalhos domésticos, essa mesma causa assegurava agora a preponderância do homem. O trabalho doméstico da mulher desaparecia, então, ao lado do trabalho produtivo do homem; o segundo era tudo, o primeiro um anexo insignificante". O direito paterno substituiu-se então ao direito materno; a transmissão da propriedade faz-se de pai a filho e não mais da mulher a seu clã. É o aparecimento da família patriarcal baseada na propriedade privada. Nessa família a mulher é oprimida. O homem, reinando soberanamente, permite-se, entre outros, o capricho sexual: dorme com escravas ou hetairas, é polígamo. A partir do momento em que os costumes tornam a reciprocidade possível, a mulher vinga-se pela infidelidade: o casamento completa-se naturalmente com o adultério. É a única defesa da mulher contra a servidão doméstica em que é mantida; a opressão social que sofre é a consequência de uma opressão econômica. A igualdade só se poderá restabelecer quando os dois sexos tiverem direitos juridicamente iguais, mas essa libertação exige a entrada de todo o sexo feminino na atividade pública. "A mulher só se emancipará quando puder participar em grande medida social na produção, e não for mais solicitada pelo trabalho doméstico senão numa medida insignificante. E isso só se tornou possível na grande indústria moderna, que não somente admite o trabalho da mulher em grande escala como ainda o exige formalmente..."

Deste modo, o destino da mulher e o socialismo estão intimamente ligados, como se vê igualmente na vasta obra consagrada por Bebel à mulher. "A mulher e o proletário, diz ele, são ambos oprimidos". É o mesmo desenvolvimento da economia a partir das modificações provocadas pelo maquinismo que os deve libertar uma e outro. O problema da mulher reduz-se ao de sua capacidade de trabalho. Forte na época em que as técnicas se adaptavam às suas possibilidades, destronada quando se tornou incapaz de explorá-las, ela volta a encontrar no mundo moderno sua igualdade com o homem. São as resistências do velho paternalismo capitalista que na maioria dos países impede que essa igualdade se realize: ela o será no dia em que tais resistências se quebrarem. Já o é na U.R.S.S., afirma a propaganda soviética. E quando a sociedade socialista tiver dominado o mundo inteiro, não haverá mais homens e mulheres, mas tão-somente trabalhadores iguais entre si.

Embora a síntese esboçada por Engels assinale um progresso sobre as que examinamos anteriormente, ela nos decepciona: os problemas mais importantes são escamoteados. O pivô de toda a história está na passagem do regime comunitário ao da propriedade privada: não se indica absolutamente de que maneira pôde efetuar-se; Engels, em A Origem da Família, confessa mesmo que "não o sabemos até o presente"; e não somente ele ignora o pormenor histórico como ainda não sugere nenhuma interpretação. Nem é claro, tampouco, que a propriedade privada tenha acarretado fatalmente a escravização da mulher. O materialismo histórico considera certos e verdadeiros fatos que fora preciso explicar. Afirma, sem discuti-lo, o lado de interesse que prende o homem à propriedade: mas onde esse interesse, mola das instituições sociais, tem, ele próprio, sua origem? A exposição de Engels permanece, portanto, superficial e as verdades que descobre parecem-nos contingentes. É que é impossível aprofundá-las sem sair fora do materialismo histórico. Este não pode fornecer soluções para os problemas que indicamos, porque tais problemas interessam o homem na sua totalidade e não essa abstração que se denomina homo oeconomicus.





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O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.


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