sábado, 24 de setembro de 2022

A Montanha Mágica - A Chegada

Thomas Mann

A Montanha Mágica 


Capítulo 1


A Chegada

Um jovem singelo viajava, em pleno verão, de Hamburgo, sua cidade natal, a Davos-Platz, no cantão dos Grisões. Ia de visita, por três semanas. 
 Mas de Hamburgo até essas alturas a viagem é longa, demasiado longa, na verdade, para uma estada tão curta. É preciso atravessar diversos estados, subindo e descendo, do planalto da Alemanha meridional até a beira do lago de Constança, cujas ondas saltitantes são transpostas de navio, por sobre abismos outrora considerados insondáveis. A partir dali torna-se demorada a viagem que até esse ponto se realizava rapidamente, em linha quase reta. Há delongas e complicações. Na localidade de Rorschach, já em território suíço, voltamos a confiar-nos à viação férrea; mas, por enquanto não se progride além de Landquart, pequena estação alpina, onde se precisa fazer baldeação. É um trem de bitola estreita o que ali tomamos depois de prolongada espera numa paisagem varrida pelo vento e desprovida de encantos. No momento em que se põe em movimento a locomotiva de pequeno porte, mas evidentemente de extraordinária força de tração, começa a parte deveras aventurosa da viagem, uma escalada brusca e penosa que parece não ter fim. A estação de Landquart acha-se situada a uma altura relativamente moderada. A partir dela, porém, entra-se na própria montanha, por uma estrada rochosa, áspera, angustiante. 
 Hans Castorp – eis o nome do referido jovem – estava sozinho num pequeno compartimento forrado de cinza, onde também se encontravam sua maleta de couro de crocodilo (presente de seu tio e pai de criação, o cônsul Tienappel, cujo nome convém mencionar desde já), bem como o casaco de inverno, a balouçar suspenso num gancho, e o cobertor de viagem enrolado. Estava sentado junto à janela aberta, e como a tarde se vinha tornando cada vez mais fresca, levantara rapaz mimado e franzino que era a gola do sobretudo de verão, forrado de seda e de corte amplo e moderno. A seu lado, no assento, jazia uma brochura intitulada Ocean Steamships, na qual Hans Castorp, durante as primeiras horas de viagem, de vez em quando lançara um olhar; agora, porém, o livro permanecia ali abandonado, enquanto o hálito da locomotiva arquejante, ao entrar pela janela, salpicava-lhe a capa de partículas de carvão. 
 Dois dias de viagem apartam um homem e especialmente um jovem que ainda não criou raízes firmes na vida do seu mundo cotidiano, de tudo quanto ele costuma chamar seus deveres, interesses, cuidados e projetos; apartam-no muito mais do que esse jovem imaginava, enquanto um fiacre o levava à estação. O espaço que, girando e fugindo, se roja de permeio entre ele e seu lugar de origem, revela forças que geralmente se julgam privilégio do tempo; produz de hora em hora novas metamorfoses íntimas, muito parecidas com aquelas que o tempo origina, mas em certo sentido mais intensas ainda. Tal qual o tempo, o espaço gera o olvido; porém o faz, desligando o indivíduo das suas relações e pondo-o num estado livre, primitivo; chega até mesmo a transformar, num só golpe, um pedante ou um burguesote numa espécie de vagabundo. Dizem que o tempo é como o rio Letes; mas também o ar de paragens longínquas representa uma poção semelhante, e seu efeito, conquanto menos radical, não deixa de ser mais rápido. 
 Hans Castorp ia passando por experiências análogas. Não tivera a intenção de levar essa viagem muito a sério e de entregar-se totalmente a ela. Propusera-se liquidá-la depressa, porque tinha que ser feita, depois regressar para casa tal como partira, e retomar a sua vida anterior exatamente no ponto em que a abandonara por um instante. Ainda ontem se movimentara dentro do costumeiro círculo de idéias; ocupara-se com os acontecimentos mais recentes – o seu exame final – e com o futuro imediato – sua entrada na vida prática, como funcionário da firma Tunder & Wilms (Estaleiros, Fábrica de Máquinas e Caldeiras). Com o máximo de impaciência que seu temperamento lhe permitia, procurara olhar para além das semanas vindouras. Nesse momento, porém, parecia-lhe que as circunstâncias exigiam dele plena atenção, não lhe sendo licito menosprezá-las. Essa sensação de ser alçado a regiões cujos ares nunca respirara, e onde, como sabia, reinavam condições de vida particularmente rarefeitas e reduzidas, a que em absoluto não estava acostumado – essa sensação começava a excitá-lo, a enchê-lo de certa angústia. O torrão natal e a rotina de sempre haviam ficado não somente para trás, muito para trás, mas sobretudo a grande profundidade abaixo dele; e a ascensão continuava a afastá-los mais ainda. Pairando entre eles e o desconhecido, Hans Castorp perguntava-se como passaria lá em cima. Talvez fosse imprudente e prejudicial para ele, que nascera a poucos metros acima do mar e se habituara ao ar da sua terra, deixar-se transportar tão subitamente a esses sítios extremos, sem pelo menos se demorar por alguns dias num lugar de altitude média. Ansiava por chegar ao fim da viagem; pois, uma vez lá em cima – pensava –, devia-se viver como em toda parte, sem que lhe fossem recordadas, como agora, durante a escalada, as esferas impróprias em que se encontrava. Hans Castorp olhou pela janela. O trem serpenteava, sinuoso, através de um desfiladeiro estreito. Viam-se os primeiros vagões, via-se a locomotiva vomitando, no seu esforço, golfadas de fumaça parda, esverdeada e negra que logo se dissipavam. Nas profundidades, à direita, murmuravam cursos d'água; à esquerda, pinheiros escuros buscavam por entre os rochedos as alturas de um céu cinzento como pedra. Túneis tenebrosos iam desfilando, e quando reaparecia a luz, rasgavam-se dilatados abismos com povoados no seu fundo. Logo se fechavam os abismos, seguidos por novos desfiladeiros com restos de neve nas gretas e fendas. Havia paradas diante das casinhas miseráveis de estações pequenas; surgiam desvios onde o trem dava marcha à ré, o que produzia um efeito desnorteante, já que era difícil saber em que direção se ia e recordar os pontos cardeais. Abriam-se grandiosos panoramas do universo de cumes alpinos, um amontoado solene e fantasmagórico, que o trem procurava alcançar e galgar; e logo no próximo meandro da estrada voltavam a subtrair-se ao olhar reverente. Hans Castorp notou que deixara para trás a zona das árvores frondosas e, se não se enganava, também a dos pássaros canoros. Esta ideia de cessação e empobrecimento fez com que ele, acometido de um ligeiro acesso de vertigem e mal-estar, cobrisse por dois segundos os olhos com a mão. Mas isso passou. Viu então que terminara a ascensão; estava vencido o ponto culminante do passo. O trem corria confortavelmente no fundo plano de um vale. 
 Eram aproximadamente oito horas. Ainda havia luz. Na paisagem longínqua apareceu um lago de águas cinzentas. Das suas margens subiam pinheirais negros pelas encostas das montanhas adjacentes, tornando-os mais ralos a maior altura, acabando-se aos poucos e dando lugar à rocha calva, envolta em brumas. O trem parou numa estaçãozinha; era Davos-Dorf, segundo Hans Castorp ouviu gritar. Dentro em pouco chegaria ao seu destino. De repente, porém, ressoou a seu lado a voz de Joachim Ziemssen, a voz displicente, hamburguesa, de seu primo, que dizia: 

 – Boa tarde! Pode descer, vamos. – Olhando pela janela, viu na plataforma Joachim em pessoa, trajando um sobretudo marrom, sem chapéu, e de um aspecto tão sadio como nunca lhe vira. Joachim riu-se e tornou: – Vamos, pode sair, não faça cerimônia. 

 – Mas se ainda nem cheguei! – exclamou Hans Castorp estupefato e permanecendo sentado. 

 – Não, senhor, já chegou. Estamos na aldeia. Daqui, o sanatório fica muito mais perto. Tomei um carro. Passe-me a bagagem. 

 Rindo, um tanto confuso pelo imprevisto da chegada e do encontro com o primo, Hans Castorp entregou-lhe a maleta e o casaco de inverno, o cobertor enrolado em volta da bengala e do guarda-chuva, e finalmente o Ocean Steamships. A seguir percorreu o estreito corredor do vagão e saltou para a plataforma, a fim de trocar com o primo saudações propriamente ditas, de caráter mais íntimo, que, entretanto, se efetuaram sem exuberância, como convém a pessoas de maneiras frias e reservadas. Parece estranho, mas desde cedo ambos haviam evitado chamar-se pelos prenomes, exclusivamente porque temiam uma cordialidade excessiva. Como, porém, não ficava bem tratarem-se pelo nome de família, limitavam-se ao você, e esse hábito se arraigara em ambos os primos. 
 Um homem de libré e boné agaloado observou como eles se apertavam as mãos – o jovem Ziemssen em atitude militar – depressa e com algum acanhamento. Aproximou-se então para pedir o certificado da bagagem de Hans Castorp. Era o porteiro do Sanatório Internacional Berghof. Prontificou-se a buscar na estação de Davos-Platz a mala do hóspede, enquanto os dois senhores com o carro se dirigissem diretamente ao sanatório, para jantar. O homem coxeava fortemente, de modo que a primeira pergunta que Hans Castorp fez a Joachim Ziemssen foi esta: 

 – É um veterano de guerra? Por que coxeia assim? 

 – É o que você pensa – retrucou Joachim com certa amargura. – Um veterano de guerra! O homem tem, ou pelo menos teve, o mal no joelho. Foi por isso que lhe extraíram a rótula. 

 Hans Castorp procurou refletir o mais rápido possível. 

 – Ah, sim – disse. Enquanto prosseguia no caminho, ergueu a cabeça e lançou um rápido olhar para trás. – Mas – acrescentou – você não me fará acreditar que ainda sofre daquela coisa. Até parece que já usa galões e acaba de voltar das manobras. – E olhou o primo de soslaio. 

 Joaquim era mais alto e mais espadaúdo do que ele, um modelo de força juvenil e como que talhado para a farda. Representava aquele tipo bem trigueiro que sua loura pátria não raro produz. Sua tez, já por natureza bastante morena, estava tostada pelo sol e adquirira uma cor quase brônzea. Com os grandes olhos negros e o bigodinho escuro sobre os lábios cheios, bem conformados, seria positivamente belo, não fossem as orelhas muito despegadas. Essas orelhas haviam sido seu único desgosto, a grande dor da sua vida até certo momento. Agora tinha outras preocupações. Hans Castorp continuou: 

 – Você vai regressar comigo, não é? Não vejo nada que o possa impedir. 

 – Regressar com você? – perguntou o primo, fitando-o com os olhos grandes que sempre haviam sido suaves, mas durante esses cinco meses tinham assumido uma expressão um tanto cansada, quase melancólica. – Com você? Quando? 

 – Ora, daqui a três semanas. 

 – Compreendo, você já pensa em regressar – respondeu Joachim. – Espere um pouco; mal acaba de chegar. Três semanas representam quase nada para nós aqui em cima, mas para você que vem de visita e tenciona demorar-se só três semanas, é uma porção de tempo. Trate de se aclimatar primeiro. Não tardará a notar que não é assim tão fácil. E o clima não é a única coisa estranha que existe aqui. Você encontrará muita coisa nova, sabe? Comigo, isso não vai tão depressa como você imagina. “Regressar daqui a três semanas” é uma idéia lá de baixo. Tenho a pele tostada, sim senhor, mas isto vem principalmente do sol refletido pela neve e não significa grande coisa, como Behrens sempre afirma. No último exame geral, ele disse ter quase certeza que eu teria de ficar ainda uns seis meses. 

 – Seis meses? Está louco? – gritou Hans Castorp. Diante da estação que não era muito mais que uma espécie de telheiro, instalaram-se no cabriolé amarelo que os esperava numa praça pedregosa. Enquanto os dois baios se punham em movimento, Hans Castorp remexia-se, cheio de indignação, no assento mal estofado. -seis meses? Mas já faz quase seis meses que você está aqui. Não se tem tanto tempo assim... 

 – Pois é, o tempo... – disse Joachim, olhando para a frente e meneando a cabeça repetidas vezes, sem se preocupar com o sincero agastamento do primo. – Aqui não fazem muita cerimônia com o tempo da gente. Você não tem ideia. Três semanas são para eles como um dia, vai ver. Tudo isso se aprende e... – acrescentou – ...aqui se modificam todas as nossas concepções. 

 Hans Castorp não cessava de contemplar-lhe o perfil. 

 – Mas você se restabeleceu maravilhosamente – disse, dando de ombros. 

 – Acha? – respondeu Joachim. – Não é mesmo? Também o creio continuou, encostando-se no espaldar, para logo voltar à posição anterior. – Vou melhor sim – explicou –, mas ainda não estou bem. À esquerda, em cima, onde antes se ouviam estalidos, nota-se agora apenas uma respiração um pouco rude, que não inspira cuidados. Mas aqui, mais para baixo, percebe-se um ronco muito forte, e no segundo espaço intercostal há também ruídos. 

 – Que grande cientista se tornou você! – disse Hans Castorp. 

 – Pois é. Sabe Deus que é uma triste ciência. Quem me dera te-la esquecido no serviço militar – replicou Joachim. – Mas, por enquanto ainda expectoro esputo – acrescentou, dando de ombros, com um gesto ao mesmo tempo resignado e veemente que não lhe ficava bem. A seguir mostrou ao primo um objeto que tirou pela metade do bolso interior do sobretudo, para logo guardá-lo novamente; era um frasco chato, bojudo, de vidro azul, com um fecho de metal. – A maioria de nós, aqui em cima, usa isto. Batizaram-no até com um nome especial, um apelido bem engraçado. Está olhando a paisagem? 

 Era o que Hans Castorp fazia. Deu sua opinião: 

 – Magnífica. 

 – Acha? – perguntou Joachim. 

 Haviam seguido na direção do eixo do vale, por um trecho de caminho espaçadamente ladeado de habitações e paralelo ao leito da via férrea. Depois, dobrando à esquerda, tinham cruzado os trilhos de bitola estreita e atravessado um curso d'água. Nesse instante subiam a trote um atalho pouco íngreme, rumo a uma encosta coberta de bosques. Ali, numa meseta um tanto proeminente, de pouca altura, destacava-se um edifício comprido, encimado por uma torre em cúpula, com a fachada dirigida para sudeste. Numerosas varandas davam-lhe de longe um aspecto esburacado, poroso como uma esponja. As primeiras luzes acabavam de ser acesas, enquanto o crepúsculo avançava rapidamente. Já se esvaíra um suave arrebol, que durante algum tempo animara o céu toldado. Reinava na natureza aquele estado de transição, descolorido, melancólico, desprovido de vida, que precede imediatamente o anoitecer definitivo. O vale povoado, extenso e levemente sinuoso, iluminava-se em toda parte, tanto no fundo como nas bordas, sobretudo na direita que formava uma saliência, com os terraços da encosta salpicados de construções. A esquerda, algumas veredas subiam através dos prados, para se perderem na baça negrura dos pinheirais. Os bastidores mais distantes das montanhas, próximos da saída do vale, que ali se estreitava, exibiam-se num frio azul de ardósia. Com o vento que acabava de levantar-se, o frescor da noite começava a se fazer sentir. 

 – Não! Para falar com franqueza, não acho a paisagem assim tão formidável – disse Hans Castorp. – Onde estão as geleiras, os picos brancos e as cordilheiras gigantescas? Não me parece que essas montanhas aí sejam muito altas. 

 – Pelo contrário, são bem altas – retrucou Joachim. – Você nota quase em toda parte o limite das árvores. Ele se delineia com absoluta nitidez. Terminam os pinheiros, e com isso acaba-se toda a vegetação. Como você vê, é pura rocha. Por ali, à direita desse pico que é o Schwarzhorn, aparece até uma geleira. Você enxerga uma coisa azul? Não é lá muito grande, mas é uma geleira em regra, a Scaletta. O Pico Michel e o Tinzenhorn, naquela abertura (não se pode vê-los daqui), também ficam cobertos de neve durante o ano inteiro. 

 – De neve eterna – disse Hans Castorp. 

 – Pois é, neve eterna, se assim o quer. Não se pode negar que tudo isso é bastante alto. E não se esqueça que nós mesmos nos achamos a uma altura espantosa. Mil e seiscentos metros acima do nível do mar. Assim, as elevações não nos impressionam tanto. 

 – Sim senhor, que ascensão! Fiquei com uma angústia, que lhe conto! Mil e seiscentos metros! São mais ou menos cinco mil pés, se não me engano. Nunca na vida estive a tal altura. – E cheio de curiosidade, Hans Castorp aspirou profundamente aquele ar estranho, como que para prová-lo. Era fresco, e nada mais. Carecia de aroma, de sabor, de umidade. Tragava-se facilmente e nada dizia à alma. 

 – Ótimo! – exclamou Hans Castorp cortesmente. 

 – Sim, esse ar tem grande fama. De resto, a paisagem não se apresenta, esta noite, sob o seu aspecto mais favorável. Às vezes está muito mais bonita, sobretudo com neve. Mas a gente acaba por se cansar dela. Nós todos, aqui em cima, pode acreditar, estamos fartos dela, indizivelmente fartos – disse Joachim, e sua boca torceu-se numa expressão de nojo, que parecia exagerada e violenta, e novamente não lhe ficava bem. 

 – Você tem um jeito tão esquisito de falar! – disse Hans Castorp. 

 – Esquisito? – perguntou Joachim com certa apreensão, voltando-se para o primo. 

 – Não, não! Desculpe! Tive essa impressão só por um momento – apressou-se Hans Castorp a dizer. Ele se referira à expressão “Nós, aqui em cima”, que Joachim já empregara umas quatro ou cinco vezes, e que de certa forma lhe causava impressão deprimente e chocante. 

 – Como vê, o nosso sanatório está situado ainda mais alto que a aldeia – continuou Joachim. – Cinquenta metros. O prospecto diz “cem”, mas são apenas cinquenta. O sanatório que fica mais alto é o Schatzalp, lá do outro lado. Não se vê daqui. No inverno, eles têm de transportar os cadáveres em trenós, porque os caminhos se tornam impraticáveis... 

 – Os cadáveres? Ah sim!... Vejam só! – exclamou Hans Castorp, e de repente rebentou em riso, um riso violento, irreprimível, que lhe sacudia o peito e fez com que o rosto enrijecido pelo vento frio se contraísse num trejeito dolorido. – Em trenós? E você me conta essas coisas assim, sem mais nem menos? Parece que se tornou muito cínico nesses cinco meses. 

 – Qual cínico! – replicou Joachim, dando de ombros. – Que é que você quer? Os cadáveres pouco se importam com isso... De resto, pode ser que a gente chegue mesmo a ficar cínico, neste nosso meio. O próprio Behrens também é um velho cínico; um sujeito de classe, seja dito de passagem; na universidade pertencia a uma corporação das mais finas; e dizem que é ótimo cirurgião. Acho que ele vai agradar a você. Além dele há o Krokowski, seu assistente, um tipo muito capaz. No prospecto fala-se especialmente da sua atividade. E que ele pratica a dissecação psíquica dos pacientes. 

 – O quê? A dissecação psíquica? Que coisa nojenta! – gritou Hans Castorp, e com isso, a hilaridade tomou conta dele. Já não conseguia dominá-la. Depois de tudo quanto ouvira, a dissecação psíquica lhe encheu as medidas. Riu-se tanto, que as lágrimas lhe brotavam por entre a mão, com a qual, inclinando-se para a frente, cobria os olhos. Também Joachim riu de todo coração, o que parecia fazer-lhe bem. Assim, o humor dos dois jovens era excelente, ao descerem do carro, que terminara por conduzi-los lentamente através de uma rampa íngreme e serpeante até o portal do Sanatório Internacional Berghof. 


continua pág 008...

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Leia também:

A Montanha Mágica - Propósito
A Montanha Mágica - A Chegada
A Montanha Mágica - Número 34
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.



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