terça-feira, 20 de setembro de 2022

Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Ópera Bufa (XIX)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo XIX

A ÓPERA BUFA


O how this spring of love resembleth
The uncertain glory of an April day;
Which now shows all the beauty of the sun,
And by and by a cloud takes all away!

SHAKESPEARE


OCUPADA COM O futuro e o papel singular que almejava, Mathilde logo chegou a sentir falta das discussões secas e metafísicas que mantinha seguidamente com Julien. Fatigada de tão altos pensamentos, às vezes também sentia falta dos momentos de felicidade que sentira junto dele; essas últimas lembranças não apareciam sem remorsos, que em alguns momentos a atormentavam.
Mas, se temos uma fraqueza, ela pensava, é digno de uma moça como eu somente esquecer seus deveres por um homem de mérito; ninguém dirá que foram seus belos bigodes ou sua graça em montar a cavalo que me seduziram, mas sim suas profundas discussões sobre o futuro que espera a França, suas ideias sobre a semelhança que os acontecimentos que vão se abater sobre nós podem ter com a revolução de 1688 na Inglaterra. Fui seduzida, ela respondia a seus remorsos, sou uma mulher fraca, mas ao menos não fui enganada como uma boneca pelas vantagens exteriores.
Se houver uma revolução, por que Julien Sorel não desempenharia o papel de Roland e eu o de madame Roland? Prefiro esse papel que o de Madame de Staël: a imoralidade da conduta será um obstáculo em nosso século. Certamente não me reprovarão uma segunda fraqueza; eu morreria de vergonha.
Os devaneios de Mathilde, é verdade, não eram todos assim tão graves quanto os pensamento que acabamos de transcrever.
Ela olhava Julien e descobria uma graça encantadora em seus menores atos.
Certamente, dizia a si mesma, consegui destruir nele até a menor ideia que ele faz dos direitos. O ar de infelicidade e de paixão com que o pobre rapaz disse-me aquela frase de amor, há oito dias, é aliás uma prova disso; é preciso convir que fui muito excêntrica em zangar-me com uma frase em que brilhavam tanto respeito, tanta paixão. Não sou a mulher dele? A frase era muito natural e, devo admitir, muito amável. Julien ainda me amava depois de longas conversas nas quais lhe falei apenas, e com muita crueldade, admito, das veleidades de amor que o tédio da vida que levo inspirou-me por esses jovens da sociedade dos quais ele é tão ciumento. Ah! Se ele soubesse como são pouco perigosos para mim! Como me parecem, perto dele, descorados e copiados uns dos outros!
Ao fazer essas reflexões, Mathilde riscava com o lápis, ao acaso, uma folha de seu álbum. Um dos perfis que ela desenhou a surpreendeu, a maravilhou: parecia-se com Julien de uma maneira impressionante. É a voz do céu! Eis um dos milagres do amor, ela exclamou com enlevo: sem dar-me conta, fiz seu retrato.
Encerrou-se em seu quarto e, com muita aplicação, procurou seriamente fazer o retrato de Julien, mas não conseguiu; o perfil traçado ao acaso continuou sendo o mais parecido. Mathilde ficou encantada, viu nisso uma prova evidente de grande paixão.
Ela só deixou seu álbum muito tarde, quando a marquesa mandou chamá-la para irem à ópera italiana. Ela só teve uma ideia, buscar Julien com os olhos para fazê-lo ser convidado pela mãe a acompanhá-las.
Ele não apareceu; as damas só tiveram pessoas vulgares em seu camarote. Durante todo o primeiro ato, Mathilde sonhou com o homem que ela amava com os transportes da mais viva paixão; mas, no segundo ato, uma máxima de amor cantada, cumpre reconhecer, sobre uma melodia digna de Cimarosa penetrou seu coração. A heroína da ópera dizia: Devo ser punida pelo excesso de adoração que sinto por ele, amo-o demais!
A partir do momento em que ouviu essa cantilena sublime, tudo que existia no mundo desapareceu para Mathilde. Falavam-lhe, e ela não respondia; sua mãe a repreendia, ela mal conseguia dirigir-lhe o olhar. Seu êxtase chegou a um estado de exaltação e de paixão comparável às emoções mais violentas que Julien vinha sentindo por ela há alguns dias. A cantilena, cheia de uma graça divina, sobre a qual era cantada a máxima que parecia aplicar-se de forma tão impressionante à sua situação, ocupava todos os instantes em que ela não pensava diretamente em Julien. Graças a seu amor pela música, ela sentiu nessa noite o que a sra. de Rênal sempre sentia ao pensar em Julien. O amor cerebral certamente tem mais espírito que o amor verdadeiro, mas tem apenas instantes de entusiasmo; ele examina-se demais, julga-se a todo momento; longe de desgarrar o pensamento, é construído à força de pensamentos.
De volta à casa, não importa o que dissesse a sra. de La Mole, Mathilde alegou ter febre e passou uma parte da noite a repetir essa cantilena em seu piano. Ela cantava as palavras da canção que a enfeitiçara:

Devo punirmi, devo punirmi,
Se troppo amai etc.

O resultado dessa noite de loucura foi que ela acreditou ter conseguido triunfar de seu amor.
(Esta página prejudicará em mais de uma maneira seu infeliz autor. As almas geladas o acusarão de indecência. Mas ele não comete a injúria, às jovens que brilham nos salões de Paris, de supor que somente uma delas seja suscetível dos movimentos de loucura que degradam o caráter de Mathilde. Essa personagem é totalmente imaginária, e inclusive imaginada fora dos hábitos sociais que entre todos os séculos assegurarão uma posição tão distinta à civilização do século XIX.
Não é de modo nenhum a prudência que falta às jovens que ornaram os bailes deste inverno.
Não penso tampouco que se possa acusá-las de desprezar uma brilhante fortuna, cavalos, belas terras e tudo que assegura uma posição agradável na sociedade. Longe de ver apenas o tédio em todas essas vantagens, estas são geralmente o objeto dos desejos mais constantes, e, se há paixão nos corações, é paixão por elas.
Não é tampouco o amor que governa a fortuna dos jovens dotados de algum talento como Julien; estes se apegam com um apego invencível a um grupo e, quando o grupo faz fortuna, todas as boas coisas da sociedade chovem sobre eles. Ai do homem de estudo que não pertence a nenhum grupo, reprovar-lhe-ão até pequenos sucessos muito incertos, e a alta virtude triunfará roubando-o. Pois é, senhores, um romance é um espelho que se leva por uma grande estrada. Ora ele reflete a vossos olhos o azul do céu, ora a imundície do lodaçal da estrada. E o homem que transporta o espelho nas costas será por vós acusado de ser imoral! Seu espelho mostra a imundície, e acusais o espelho! Acusai antes o grande caminho onde está o lodaçal, e mais ainda o inspetor de estradas que deixar a água empoçar-se e o lodaçal formar-se.
Agora que está bem entendido ser o caráter de Mathilde impossível em nosso século, não menos prudente que virtuoso, receio irritar menos ao continuar o relato das loucuras dessa encantadora jovem.)
Durante todo o dia seguinte, ela espreitou as oca siões de poder triunfar de sua louca paixão. Seu principal objetivo foi desagradar em tudo a Julien; mas nenhum dos movimentos dele lhe escapou.
Julien estava infeliz demais e sobretudo agitado demais para adivinhar uma manobra de paixão tão complicada, muito menos pôde perceber o que ela encerrava a seu favor: ele foi a vítima dessa manobra; talvez jamais sua infelicidade tenha sido tão excessiva. Suas ações estavam tão pouco sob a direção de seu espírito que, se um filósofo mal-humorado lhe dissesse: “Aproveite rapidamente as disposições que lhe forem favoráveis; nesse tipo de amor cerebral que vemos em Paris, a mesma maneira de ser não pode durar mais de dois dias”, ele não o teria compreendido. Mas, ainda que estivesse exaltado, Julien tinha honra. Compreendeu que seu primeiro dever era a discrição. Pedir conselho, contar seu suplício ao primeiro que aparecesse teria sido uma felicidade comparável à do desgraçado que, atravessando um deserto ardente, recebe do céu uma gota de água gelada. Ele percebeu o perigo, temeu responder por uma torrente de lágrimas ao indiscreto que o interrogasse, e encerrou-se em seu quarto.
Viu Mathilde passear um longo tempo no jardim; quando enfim ela o deixou, ele desceu até lá; aproximou-se de uma roseira onde ela colhera uma flor.
A noite estava escura, ele pôde entregar-se a toda a sua infelicidade sem o perigo de ser visto. Era evidente para ele que a srta. de La Mole amava um daqueles jovens oficiais com quem acabara de conversar tão alegremente. Ela o havia amado, mas descobrira seu pouco mérito.
E, de fato, tenho-o bem pouco!, dizia-se Julien com plena convicção; afinal de contas, sou uma criatura vulgar, muito enfadonha para os outros, muito insuportável para mim mesmo. Estava mortalmente aborrecido com todas as suas boas qualidades, com todas as coisas que amara com entusiasmo; e, nesse estado de imaginação invertida, quis julgar a vida com sua imaginação. Esse erro é o de um homem superior.
Várias vezes a ideia do suicídio lhe ocorreu; essa imagem era cheia de encantos, era como um repouso delicioso; era o copo de água gelada oferecido ao miserável que, no deserto, morre de sede e de calor.
Minha morte aumentará o desprezo que ela tem por mim!, exclamou. Que lembrança deixarei!
Caído nesse último abismo da infelicidade, um ser humano não tem outro recurso senão a coragem. Julien não teve gênio suficiente para dizer-se: é preciso ousar; mas, ao olhar a janela do quarto de Mathilde, viu através das persianas que ela apagava a luz: ele imaginou aquele quarto encantador que vira só uma vez na vida. Sua imaginação não ia mais longe.
Soou uma hora; ouvir o som do relógio e dizer-se: vou subir com a escada, foi questão de um segundo.
Foi o lampejo do gênio, as boas razões apresentaram-se em profusão. Posso ser mais infeliz?, pensou. Correu até a escada, o jardineiro a acorrentara. Com o auxílio da lingueta de uma de suas pistolas, que ele quebrou, Julien, animado nesse momento de uma força sobrehumana, torceu um dos elos da corrente que retinha a escada; em poucos minutos apoderou-se dela e colocou-a contra a janela de Mathilde.
Ela vai zangar-se, desprezar-me, mas que importa? Dou-lhe um beijo, um último beijo, subo até meu quarto e mato-me...: meus lábios tocarão sua face antes de eu morrer!
Ele voava ao subir a escada. Bate à persiana; alguns instantes depois Mathilde o escuta, ela quer abrir a persiana, a escada a impede: Julien agarra-se ao gancho de ferro destinado a manter a persiana aberta e, com o risco de pre cipitar-se para sempre, dá um violento empurrão na escada, deslocando-a um pouco. Mathilde consegue abrir a persiana.
Ele lança-se no quarto mais morto que vivo:

– Então és tu! diz ela, precipitando-se em seus braços...
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Quem poderá descrever o excesso de felicidade de Julien?
A de Mathilde foi quase igual. Ela falava-lhe contra si mesma, denunciando a si mesma.
               
– Castiga-me por meu orgulho atroz, dizia, estreitando-o nos braços até quase sufocá-lo; és meu senhor, sou tua escrava, devo pedir perdão de joelhos por ter querido revol tar-me. E deixava os braços dele para cair-lhe aos pés. Sim, és meu senhor, ela dizia ainda ébria de felicidade e de amor; reina para sempre sobre mim, pune severamente tua escrava quando ela quiser revoltar-se.

Num outro momento, ela arranca-se dos braços dele, acende a vela, e Julien tem a maior dificuldade do mundo para impedi-la de cortar todo um lado de seus cabelos.

– Quero lembrar-me, disse ela, que sou tua serva: se alguma vez um execrável orgulho vier desencaminhar-me, mostra-me esses cabelos e diz: não se trata mais de amor, não se trata da emoção que sua alma possa sentir neste momento, você jurou obedecer, obedeça então por honra.

Mas é mais sensato suprimir a descrição de tal grau de desgarramento e de bem-aventurança.
A virtude de Julien igualou-se à sua felicidade; devo descer pela escada, ele disse a Mathilde quando viu a aurora despontar sobre as chaminés distantes a oriente, mais além dos jardins. O sacrifício que me imponho é digno de você, privo-me de algumas horas da mais espantosa felicidade que uma alma humana pode sentir, é um sacrifício que faço por sua reputação: se conhece meu coração, compreenderá a violência que me imponho. Você será sempre para mim o que é neste momento? Mas a honra fala, isso basta. Saiba que, no nosso primeiro encontro, nem todas as suspeitas foram dirigidas contra os ladrões. O sr. de La Mole mandou montar guarda no jardim. O sr. de Croisenois está cercado de espiões, sabe-se o que ele faz toda noite...
A essa ideia, Mathilde soltou uma gargalhada. Sua mãe e uma criada foram despertadas, logo dirigiam-lhe a palavra através da porta. Julien fitou-a, ela empalideceu enquanto resmungava à camareira, e não se dignou dirigir a palavra à mãe.

– Mas, se elas tiverem a ideia de abrir a janela, verão a escada!, disse-lhe Julien.

Ele a apertou novamente nos braços, lançou-se à escada e mais deixou-se escorregar do que desceu; num instante chegou ao chão.
Três segundos depois, a escada estava sob a aleia de tílias, e a honra de Mathilde, salva. Julien, voltando a si, viu-se ensanguentado e quase nu: ferira-se ao deixar-se escorregar sem precaução.
O excesso de felicidade devolvera-lhe toda a energia de seu caráter: se vinte homens tivessem se apresentado, atacá-los sozinho, naquele instante, teria sido apenas um prazer a mais. Felizmente, sua virtude militar não foi posta à prova: pôs a escada no seu lugar de costume; recolocou a corrente que a prendia; não esqueceu de apagar a marca que a escada deixara no canteiro de flores exóticas sob a janela de Mathilde.
Enquanto na obscuridade passava a mão sobre a terra para assegurar-se que a marca fora completamente apagada, sentiu cair alguma coisa sobre suas mãos, era todo um lado dos cabelos de Mathilde, que ela cortara e lhe atirara.
Ela estava à janela.

– Eis o que te envia tua serva, disse, bastante alto; é o sinal de uma obediência eterna. Renuncio ao exercício de minha razão, sê meu mestre.

Julien, vencido, esteve a ponto de pegar de novo a escada e tornar a subir até o quarto dela. Mas a razão acabou prevalecendo.
Voltar do jardim à mansão não era uma coisa fácil. Ele conseguiu forçar a porta de uma adega; dentro da casa, foi obrigado a arrombar o mais silenciosamente possível a porta de seu quarto. Em sua perturbação, havia deixado, no quarto que acabava de abandonar tão rapidamente, até a chave que estava no bolso de seu traje. Tomara que ela se lembre de esconder esses despojos mortais!, pensou.
Por fim, a fadiga foi maior que a felicidade e, quando o sol despontava, caiu num sono profundo.
Acordou com dificuldade com a sineta do almoço e apareceu na sala de refeições. Logo depois Mathilde entrou. O orgulho de Julien teve um momento de felicidade ao ver o amor que brilhava nos olhos daquela pessoa tão bela e cercada de tantas homenagens; mas logo sua prudência teve motivos para se assustar.
Sob pretexto de que tivera pouco tempo para cuidar do penteado, Mathilde arranjara os cabelos de modo a que Julien pudesse perceber à primeira vista toda a extensão do sacrifício que fizera por ele, ao cortá-los na noite precedente. Se um rosto tão belo pudesse ser estragado por alguma coisa, Mathilde o teria conseguido; todo um lado de seus belos cabelos, de um louro cendrado, estava cortado a meia polegada do crânio.
No almoço, toda a maneira de ser de Mathilde cor respondeu a essa primeira imprudência. Dir-se-ia que ela se esforçava por fazer todos saberem da louca paixão que sentia por Julien. Felizmente, naquele dia, o sr. de La Mole e a marquesa estavam muito preocupados com uma sessão de condecorações na qual o sr. de Chaulnes não estava incluído. No final da refeição, Mathilde, que falava a Julien, chegou a chamá-lo meu mestre. Ele corou até à raiz dos cabelos.
Seja por acaso ou por ordem expressa da sra. de La Mole, Mathilde não esteve um instante a sós nesse dia. À noite, ao passar da sala de jantar para o salão, ela encontrou no entanto o momento de dizer a Julien:

– Acreditará que é um pretexto da minha parte? Mamãe acaba de decidir que uma de suas criadas ficará à noite em meus aposentos.

O dia passou como um raio. Julien estava no auge da felicidade. Já às sete horas, na manhã seguinte, estava instalado na biblioteca; esperava que a srta. de La Mole se dignasse aparecer ali; ele escrevera-lhe uma carta imensa.
Somente a viu muitas horas depois, no almoço. Nesse dia, estava penteada com o maior cuidado; uma arte maravilhosa encarregara-se de ocultar os cabelos cortados. Ela olhou uma ou duas vezes para Julien, mas com olhos polidos e calmos; não era mais o caso de chamá-lo meu mestre.
O espanto de Julien impedia-o de respirar... Mathilde reprovava-se quase tudo o que fizera por ele.
Pensando de forma mais madura, ela decidira que ele era, se não um indivíduo completamente comum, ao menos não suficientemente incomum para merecer as estranhas loucuras que ousara por ele. Em suma, ela não pensava mais em amor; naquele dia, estava cansada de amar.
Para Julien, os movimentos de seu coração foram os de um rapaz de dezesseis anos. A dúvida terrível, o espanto, o desespero ocuparam-no sucessivamente durante esse almoço, que lhe pareceu durar uma eternidade.
Assim que pôde deixar com decoro a mesa, precipitou-se, mais do que correu, até a estrebaria, selou ele próprio o cavalo e partiu a galope; temia desonrar-se por alguma fraqueza. Preciso matar meu coração à força de cansaço físico, dizia a si mesmo, galopando pelos bosques de Meudon. Que fiz, que disse para merecer tal desgraça?
Nada devo fazer nem dizer hoje, pensou, de volta à mansão; estar morto no físico como estou no moral. Julien não vive mais, é seu cadáver que ainda se agita.


continua página 253...

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro: A Ópera Bufa (XIX)

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