domingo, 25 de setembro de 2022

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (7.1) - O Coronel Gerineldo Márquez

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(7.1)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío




O CORONEL GERINELDO MÁRQUEZ foi o primeiro que percebeu o vazio da guerra. Na sua condição de chefe civil e militar de Macondo, mantinha duas vezes por semana conversas telegráficas com o Coronel Aureliano Buendía. No princípio, essas entrevistas determinavam o curso de uma guerra de carne e osso, cujos contornos perfeitamente definidos permitiam estabelecer a qualquer momento o ponto exato em que se encontrava e prever os seus rumos futuros. Embora nunca se deixasse arrastar para o terreno das confidências, nem sequer pelos seus amigos mais íntimos, o Coronel Aureliano Buendía conservava na época o tom familiar que permitia identificá-lo no outro extremo da linha. Muitas vezes prolongou a conversa além do tempo previsto e a deixou derivar para comentários de caráter doméstico. Pouco a pouco, no entanto, e à medida a guerra ia se intensificando e estendendo, a sua imagem foi se apagando num universo de irrealidade. Os pontos e traços da sua voz eram cada vez mais remotos e incertos, e se uniam e se combinavam para formar palavras que paulatinamente foram perdendo todo o sentido. O Coronel Gerineldo limitava-se então a escutar, assustado pela impressão de estar em contato telegráfico com um desconhecido do outro mundo.

— Entendido, Aureliano — concluía no manipulador. — Viva o Partido Liberal!

Acabou por perder todo o contato com a guerra. O que em outros tempos fora uma atividade real, uma paixão irresistível da sua juventude, converteu-se para ele numa referência remota: um vácuo. O seu único refúgio era o quarto de costura de Amaranta. Visitava-a todas as tardes. Gostava de contemplar as suas mãos enquanto franzia babados de cambraia na máquina de manivela que Remedios, a bela, fazia girar. Ficavam muitas horas sem falar, satisfeitos com a companhia recíproca, mas enquanto Amaranta se alegrava intimamente por manter vivo o fogo da sua devoção, ele ignorava quais eram os secretos desígnios daquele coração indecifrável. Quando se teve notícia da sua volta, Amaranta sufocou de ansiedade. Quando o viu entrar em casa, porém, confundido com a ruidosa escolta do Coronel Aureliano Buendia, e o viu maltratado pelo rigor do desterro, envelhecido pela idade e pelo esquecimento, sujo de suor e poeira, cheirando a estábulo, feio, com o braço esquerdo na tipoia, sentiu-se desfalecer de desilusão. “Meu Deus”, pensou, “não era este que eu esperava.” No dia seguinte, entretanto, ele voltou à casa barbeado e limpo, com o bigode perfumado de água de alfazema e sem a tipoia ensanguentada. Trazia-lhe um breviário de capa nacarada.

— Como os homens são esquisitos! — ela disse, porque não encontrava outra coisa para dizer. — Levam a vida lutando contra os padres e dão livros de oração de presente.

A partir de então, mesmo nos dias mais críticos da guerra, ele a visitava todas as tardes. Muitas vezes, quando Remedios, a bela, não estava presente, era ele quem tocava a máquina de costura. Amaranta se sentia perturbada pela perseverança, pela lealdade, pela submissão daquele homem investido de tanta autoridade e que no entanto se despojava das armas na sala para entrar indefeso no quarto de costura. Mas durante quatro anos ele lhe reiterou o seu amor, e ela encontrou sempre a maneira de recusá-lo sem feri-lo, porque, embora não conseguisse amá-lo, já não podia viver sem ele. Remedios, a bela, que parecia indiferente a tudo, e de quem se pensava que era débil mental, não foi insensível a tanta devoção, e interveio em favor do Coronel Gerineldo Márquez. Amaranta descobriu de repente que aquela menina que havia criado, que mal despertava para a adolescência, já era a criatura mais bela que se havia visto em Macondo. Sentiu renascer no seu coração o rancor que em outra época experimentara contra Rebeca, e rogando a Deus que não a arrastasse até o extremo de lhe desejar a morte, expulsou-a do quarto de costura. Foi por essa época que o Coronel Gerineldo Márquez começou a sentir o fastio da guerra. Apelou para as suas reservas de persuasão, para a sua imensa e reprimida ternura, disposto a renunciar por Amaranta a uma glória que lhe tinha custado o sacrifício dos seus melhores anos. Mas não conseguiu convencê-la. Uma tarde de agosto, agoniada pelo peso insuportável da sua própria obstinação, Amaranta se trancou no quarto para chorar a sua solidão até morrer, depois de dar a resposta definitiva ao seu pretendente tenaz:

— Vamos esquecer isso para sempre — disse a ele — já somos velhos demais para estas coisas.

O Coronel Gerineldo Márquez atendeu naquela tarde a um chamado telegráfico do Coronel Aureliano Buendía. Foi uma conversa de rotina que não havia de abrir nenhuma brecha para a guerra estancada. Ao terminar, o Coronel Gerineldo Márquez contemplou as ruas desoladas, a água cristalizada nas amendoeiras, e se encontrou perdido na solidão.

— Aureliano — disse tristemente no manipulador — está chovendo em Macondo.

Houve um longo silêncio na linha. De repente, os aparelhos saltaram com os signos desapiedados do Coronel Aureliano Buendia.

— Não seja boboca, Gerineldo — disseram os signos. -É natural que esteja chovendo em agosto.

Fazia tanto tempo que não se viam que o Coronel Gerineldo Márquez se desconcertou com a agressividade daquela reação. Entretanto, dois meses depois, quando o Coronel Aureliano Buendía voltou a Macondo, o desconcerto se transformou em espanto. Até Úrsula se surpreendeu com o quanto havia mudado. Chegou na calada, sem escolta, embrulhado numa manta apesar do calor, e com três amantes que instalou numa mesma casa, onde passava a maior parte do tempo estendido numa rede. Mal lia os informes telegráficos que falavam de operações de rotina. Certa ocasião o Coronel Gerineldo Márquez lhe pediu instruções para a evacuação de uma localidade fronteiriça que ameaçava se converter num conflito internacional.

— Não me aborreça com coisinhas miúdas — ordenou ele. — Consulte a Divina Providência.

Era talvez o momento mais crítico da guerra. Os proprietários de terra liberais, que no princípio apoiavam a revolução, entraram em aliança secreta com os proprietários de terra conservadores para impedir a revisão dos títulos de propriedade. Os políticos que capitalizavam a guerra já desde o exílio haviam repudiado publicamente as determinações drásticas do Coronel Aureliano Buendía, mas até mesmo essa desautorização parecia deixá-lo sem preocupações. Não voltara a ler os seus versos, que ocupavam mais de cinco tomos e que permaneciam esquecidos no fundo do baú. De noite, ou na hora da sesta, chamava à rede uma das suas mulheres e obtinha dela uma satisfação rudimentar, e logo dormia com um sono de pedra que não era perturbado pelo mais leve indício de preocupação. Só ele sabia, naquele tempo, que o seu aturdido coração estava condenado para sempre à incerteza. A princípio, embriagado pela glória do regresso, pelas vitórias inverossímeis, bordejara o abismo da grandeza. Satisfazia-se com trazer à cabeceira o Duque de Marlborough, seu grande mestre nas artes da guerra, cujo aparato de peles e unhas de tigre produzia o respeito dos adultos e o assombro das crianças. Foi então que decidiu que nenhum ser humano se aproximasse dele a menos de três metros. No centro do círculo de giz que os seus ajudantes de campo traçavam onde quer que ele chegasse, e no qual apenas ele podia entrar, decidia com ordens breves e inapeláveis o destino do mundo. Na primeira vez em que esteve em Manaure depois do fuzilamento do General Moncada, apressou-se em cumprir a última vontade da sua vítima, e a viúva recebeu os óculos, a medalha, o relógio e a aliança, mas não lhe permitiu passar da porta de entrada.

— Não entre, coronel — disse a ele. — O senhor pode mandar na sua guerra, mas na minha casa mando eu.

O Coronel Aureliano Buendía não deu mostras de rancor, mas o seu espírito só encontrou sossego quando a sua guarda pessoal saqueou e reduziu a cinzas a casa da viúva. “Cuide do coração, Aureliano”, dizia-lhe então o Coronel Gerineldo Márquez.
“Você está apodrecendo vivo.” Por essa época, convocou uma segunda assembléia dos principais comandantes rebeldes. Encontrou de tudo: idealistas, ambiciosos, aventureiros, ressentidos sociais e até delinqüentes comuns. Havia inclusive um antigo funcionário conservador, refugiado na revolta para fugir a um julgamento por desvio de fundos. Muitos não sabiam sequer por que lutavam. No meio daquela multidão heterogênea, cujas diferenças de critério estiveram a ponto de provocar uma explosão interna, destacava-se uma autoridade tenebrosa: o General Teófilo Vargas. Era um índio puro, selvagem, analfabeto, dotado de uma malícia taciturna e de uma vocação messiânica que provocava nos seus homens um fanatismo demente. O Coronel Aureliano Buendía convocou a reunião com o propósito de unificar o poder rebelde contra as manobras dos políticos. O General Teófilo Vargas adiantou-se às suas intenções: em poucas horas desbaratou a coligação dos comandantes melhor qualificados e se apoderou do poder central. “E uma fera digna de cuidado”, disse o Coronel Aureliano Buendía aos seus oficiais. “Para nós, esse homem é mais perigoso que o Ministro da Guerra.” Então, um capitão muito jovem que sempre se havia distinguido pela timidez levantou o dedo cauteloso:

— É muito simples, coronel — propôs — nós temos de matá-lo.

O Coronel Aureliano Buendía não se assustou com a frieza da proposta, e sim com a forma como ela se antecipou uma fração de segundo ao seu próprio pensamento.

— Não esperem que eu dê essa ordem — disse. E não a deu, realmente.

Mas quinze dias depois o General Teófilo Vargas foi despedaçado a golpes de facão numa emboscada, e o Coronel Aureliano Buendía assumiu o poder central. Na mesma noite em que a sua autoridade foi reconhecida por todos os comandos rebeldes, acordou sobressaltado, pedindo aos gritos uma manta. Um frio interior que lhe rachava os ossos e o mortificava inclusive em pleno sol impediu-lhe de dormir bem por vários meses, até que se transformou num hábito. A embriaguez do poder começou a se decompor em faixas de tédio. Procurando um remédio contra o frio, mandou fuzilar o jovem oficial que propôs o assassinato do General Teófilo Vargas. As suas ordens eram cumpridas antes de serem anunciadas, mesmo antes que ele as concebesse, e sempre iam muito mais longe do que ele se atreveria a fazê-las chegar. Extraviado na solidão do seu imenso poder, começou a perder o rumo. Incomodava-o o povo que o aclamava nas aldeias vencidas, e que lhe parecia o mesmo que aclamava o inimigo. Em toda parte encontrava adolescentes que o olhavam com os próprios olhos, que falavam com a sua própria voz, que o cumprimentavam com a mesma desconfiança com que ele os cumprimentava, e que diziam ser seus filhos. Sentiu-se jogado, repelido, e mais solitário do que nunca. Teve a certeza de que os seus próprios oficiais lhe mentiam. Brigou com o Duque de Marlborough. “O melhor amigo,” costumava dizer então, “é o que acaba de morrer.” Cansou-se da incerteza, do círculo vicioso daquela guerra eterna que sempre o encontrava no mesmo lugar, só que cada vez mais velho, mais acabado, mais sem saber por que, nem como, nem até quando. Sempre havia alguém fora do círculo de giz. Alguém que precisava de dinheiro, que tinha um filho com coqueluche ou que queria ir dormir para sempre porque já não podia suportar na boca o gosto de merda da guerra e que, entretanto, reunia as suas últimas reservas de energia para informar: “Tudo normal, coronel.” E a normalidade era precisamente o mais terrível daquela guerra infinita: não acontecia nada. Sozinho, abandonado pelos presságios, fugindo do frio que havia de acompanhá-lo até a morte, procurou um último refúgio em Macondo, ao calor das recordações mais antigas. Era tão grave a sua inércia que quando lhe anunciaram a chegada de uma comissão do seu partido, credenciada para discutir a encruzilhada da guerra, ele se mexeu na rede sem acordar de todo.

— Levem-nos às putas — disse.

continua página 107...

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