quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (n)

Paulo Freire 




“educação como prática da liberdade”: 
alfabetizar é conscientizar 







AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



4. A teoria da ação antidialógica


A TEORIA DA AÇÃO DIALÓGICA E SUAS
CARACTERÍSTICAS: A CO-LABORAÇÃO,
A UNIÃO, A ORGANIZAÇÃO E A SÍNTESE
CULTURAL


SÍNTESE CULTURAL


Em todo o corpo deste capítulo se encontra firmado, ora implícita, ora explicitamente, que toda ação cultural é sempre uma forma sistematizada e deliberada de ação que incide sobre a estrutura social, ora no sentido de mantê-la como está ou mais ou menos como está, ora no de transformá-la.

Por isto, como forma de ação deliberada e sistemática, toda ação cultural, segundo vimos, tem sua teoria, que determinando seus fins, delimita seus métodos.

A ação cultural, ou está, a serviço da dominação – consciente ou inconscientemente por parte de seus agentes – ou está a serviço da libertação dos homens.

Ambas, dialeticamente antagônicas, se processam, como afirmamos, na e sobre a estrutura social, que se constitui na dialeticidade permanência-mudança.

Isto é o que explica que a estrutura social, para ser, tenha de estar sendo ou, em outras palavras: estar sendo é o modo que tem a estrutura social de “durar”, na acepção bergsoniana do termo [1].


[1] Na verdade, o que faz que a estrutura seja estrutura social, portanto histórico- cultural, não é a permanência nem a mudança, tomadas absolutizadas, mas a dialetização de ambas. Em última análise, o que permanece na estrutura social nem é a permanência nem a mudança mas a “duração” da dialeticidade permanência-mudança.


O que pretende a ação cultural dialógica, cujas características estamos acabando de analisar, não pode ser o desaparecimento da dialeticidade permanência-mudança (o que seria impossível, pois que tal desaparecimento implicaria no desaparecimento da estrutura social mesma e o desta, no dos homens) mas superar as contradições antagônicas de que resulte a libertação dos homens.

Por outro lado, a ação cultural antidialógica o que pretende é mitificar o mundo destas contradições para, assim, evitar ou obstaculizar, tanto quanto possível, a radical transformação da realidade.

No fundo, o que se acha explícita ou implicitamente na ação antidialógica é a intenção de fazer permanecer, na “estrutura” social, as situações que favorecem a seus agentes.

Daí que estes, não aceitando jamais a transformação da estrutura, que supere as contradições antagônicas, aceitem as reformas que não atinjam a seu poder de decisão, de que decorre a sua força de prescrever suas finalidades às massas dominadas.

Este é o motivo por que esta modalidade de ação implica na conquista das massas populares, na sua divisão, na sua manipulação e na invasão cultural. E é também por isto que é sempre, como um todo, uma ação induzida, jamais podendo superar este caráter, que lhe é fundamental.

Pelo contrário, o que caracteriza, essencialmente, a ação cultural dialógica, como um todo também, é a superação de qualquer aspecto induzido.

No objetivo dominador da ação cultural antidialógica se encontra a impossibilidade de superação de seu caráter de ação induzida, assim como, no objetivo libertador da ação cultural dialógica, se acha a condição para superar a indução.

Enquanto na invasão cultural, como já salientamos, os atores retiram de seu marco valorativo e ideológico, necessariamente, o conteúdo temático para sua ação, partindo, assim, de seu mundo, do qual entram no dos invadidos, na síntese cultural, os atores, desde o momento mesmo em que chegam ao mundo popular, não o fazem como invasores.

E não o fazem como tais porque, ainda que cheguem de “outro mundo”, chegam para conhecê-lo com o povo e não para “ensinar”, ou transmitir, ou entregar nada ao povo.

Enquanto, na invasão cultural, os atores, que nem sequer necessitam de, pessoalmente, ir ao mundo invadido, sua ação é mediatizada cada vez mais pelos instrumentos tecnológicos – são sempre atore s que se superpõem, com sua ação, aos espectadores, seus objetos – na síntese cultural, os atores se integram com os homens do povo, atores, também, da ação que ambos exercem sobre o mundo.

Na invasão cultural, os espectadores e a realidade, que deve ser mantida como está, são a incidência da ação dos atores. Na síntese cultural, onde não há espectadores, a realidade a ser transformada para a libertação dos homens é a incidência da ação dos atores.

Isto implica em que a síntese cultural é a modalidade de aço com que, culturalmente, se fará frente à força da própria cultura, enquanto mantenedora das estruturas em que se forma.

Desta maneira, este modo de ação cultural, como ação histórica, se apresenta como instrumento de superação da própria cultura alienada e alienante.

Neste sentido é que toda revolução, se autêntica, tem de ser também revolução cultural.

A investigação dos “temas geradores” ou da temática significativa do povo, tendo como objetivo fundamental a captação dos seus temas básicos, só a partir de cujo conhecimento é possível a organização do conteúdo programático para qualquer ação com ele, se instaura como ponto de partida do processo da ação, como síntese cultural.

Daí que não seja possível dividir, em dois, os momentos deste processo: o da investigação temática e o da ação como síntese cultural.

Esta dicotomia implicaria em que o primeiro seria todo ele um momento em que o povo estaria sendo estudado, analisado, investigado, como objeto passivo dos investigadores, o que é próprio da ação antidialógica.

Deste modo, esta separação ingênua significaria que a ação, como síntese, partiria da ação como invasão.

Precisamente porque, na teoria dialógica, esta divisão não se pode dar, a investigação temática tem como sujeitos de seu processo, não apenas os investigadores profissionais, mas também os homens do povo, cujo universo temático se busca.

Neste momento primeiro da ação, como síntese cultural, que é a investigação, se vai constituindo o clima da criatividade, que já, não se deterá, e que tende a desenvolver-se nas etapas seguintes da ação.

Este clima inexiste na invasão cultural que, alienante, amortece o ânimo criador dos invadidos e os deixa, enquanto não lutam contra ela, desesperançados e temerosos de correr o risco de aventurar-se, sem o que não há, criatividade autêntica.

Por isto é que os invadidos, qualquer que seja o seu nível, dificilmente ultrapassam os modelos que lhes prescrevem os invasores.

Como, da síntese cultural, não há, invasores, não há modelos impostos, os atores, fazendo da realidade objeto de sua análise crítica, jamais dicotomizada da ação, se vão inserindo no processo hist6rico, como sujeitos.

Em lugar de esquemas prescritos, liderança e povo, identificados, criam juntos as pautas para sua ação. Uma e outro, na síntese, de certa forma renascem num saber e numa ação novas, que não são apenas o saber e a ação da liderança, mas dela e do povo. Saber da cultura alienada que, implicando na ação transformadora, dará, lugar à cultura que se desaliena.

O saber mais apurado da liderança se refaz no conhecimento empírico que o povo tem, enquanto o deste ganha mais sentido no daquela.

Isto tudo implica em que, na síntese cultural, se resolve – e somente nela – a contradição entre a visão do mundo da liderança e a do povo, com o enriquecimento de ambos.

A síntese cultural não nega as diferenças entre uma visão e outra, pelo contrário, se funda nelas. O que ela nega é a invasão de uma pela outra. O que ela afirma é o indiscutível aporte que uma dá à outra.

A liderança revolucionária não pode constituir-se fora do povo, deliberadamente, o que a conduz à invasão cultural inevitável.

Por isto mesmo é que, ainda quando a liderança, na hipótese referida neste capítulo, por certas condições históricas, aparece como contradição do povo, seu papel é resolver esta contradição acidental. Jamais poderá fazê-lo através da “invasão”, que aumentaria a contradição. 'Não há outro caminho senão a síntese cultural.

Muitos erros e equívocos comete a liderança ao não levar em conta esta coisa tão real, que é a visão do mundo que o povo tenha ou esteja tendo. Visão do mundo em que se vão encontrar explícitos e implícitos os seus anseios, as suas dúvidas, a sua esperança, a sua forma de ver a liderança, a sua percepção de si mesmo e do opressor, as suas crenças religiosas, quase sempre sincréticas, o seu fatalismo a sua reação rebelde. E tudo isto, como já afirmamos, não pode ser encarado separadamente, porque, em interação, se encontra compondo uma totalidade.

Para o opressor, o conhecimento desta totalidade só lhe interessa como muda à sua ação invasora, para dominar ou manter a dominação. Para a liderança revolucionária, o conhecimento desta totalidade lhe é indispensável à sua ação, como síntese cultural.

Esta, na teoria dialógica da ação, por isto mesmo que é síntese, não implica em que devem ficar os objetivos da ação revolucionária amarrados às aspirações contidas na visão do mundo do povo.

Ao ser assim, em nome do respeito à visão popular do mundo, respeito que realmente deve haver, terminaria a liderança revolucionária apassivada àquela visão.

Nem invasão da liderança na visão popular do mundo, nem adaptação da liderança às aspirações, muitas vezes ingênuas, do povo.

Concretizemos. Se, em um dado momento histórico, a aspiração básica do povo não ultrapassa a reivindicação salarial, a nosso ver, a liderança pode cometer dois erros. Restringir sua ação ao estimulo exclusivo desta reivindicação, ou sobrepor-se a esta aspiração, propondo algo que está mais além dela. Algo que não chegou a ser ainda para o povo um “destacado em si”.

No primeiro caso, incorreria a liderança revolucionária no que chamamos de adaptação ou docilidade à aspiração popular. No segundo, desrespeitando a aspiração do povo, cairia na invasão cultural.

A solução está, na síntese. De um lado, incorporar-se ao povo na aspiração reivindicativa. De outro, problematizar o significado da própria reivindicação.

Ao fazê-lo, estará problematizando a situação histórica real, concreta, que, em sua totalidade, tem, na reivindicação salarial, uma dimensão.

Deste modo, ficará, claro que a reivindicação salarial, sozinha, não encarna a solução definitiva. Que esta se encontra, como afirmou o bispo Split, no documento já citado dos Bispos do Terceiro Mundo, em que “se os trabalhadores não chegam, de alguma maneira, a ser proprietários de seu trabalho, todas as reformas estruturais serão ineficazes”.

O fundamental, por isto, insiste o bispo, é que eles devem chegar a ser “proprietários e não vendedores de seu trabalho”, porque “toda compra ou venda do trabalho é uma espécie de escravidão”.

Ter a consciência critica de que é preciso ser o proprietário de seu trabalho e de que “este constitui uma parte da pessoa humana” e que a “pessoa humana não pode ser vendida nem vender-se” é dar um passo mais além das soluções paliativas e enganosas. É inscrever-se numa ação de verdadeira transformação da realidade para, humanizando-a, humanizar os homens.

Finalmente, a invasão cultural, na teoria antidialógica da ação, serve à manipulação que, por sua vez, serve à conquista e esta à dominação, enquanto a síntese serve à organização e esta à libertação.



Todo o nosso esforço neste ensaio foi falar desta coisa óbvia: assim como o opressor, para oprimir, precisa de uma teoria da ação opressora, os oprimidos para se libertarem, igualmente necessitam de uma teoria de sua ação.

O opressor elabora a teoria de sua ação necessariamente sem o povo, pois que é contra ele.

O povo, por sua vez, enquanto esmagado e oprimido, introjetando o opressor, não pode, sozinho, constituir a teoria de sua ação libertadora. Somente no encontro dele com a liderança revolucionária, na comunhão de ambos, na práxis de ambos, é que esta teoria se faz e se re-faz.

A colocação que, em termos aproximativos, meramente introdutórios, tentamos fazer da questão da pedagogia do oprimido, nos trouxe à análise, também aproximativa e introdutória, da teoria da ação antidialógica, que serve à opressão e da teoria dialógica da ação, que serve à libertação.

Desta maneira, nos daremos por satisfeitos se, dos possíveis leitores deste ensaio, surjam criticas capazes de retificar erros e equívocos, de aprofundar afirmações e de apontar o que não vimos.

É possível que algumas destas críticas se façam pretendendo retirar de nós o direito de falar sobre matéria – a tratada neste capítulo – em torno de que nos falta uma experiência participante. Parece- nos, contudo, que o fato de não termos tido uma experiência no campo revolucionário, não nos retira a possibilidade de uma reflexão sobre o tema.

Mesmo porque, na relativa experiência que temos tido com massas populares, como educador, com uma educação dialógica e problematizante, vimos acumulando um material relativamente rico, que foi capaz de nos desafiar a correr o risco das afirmações que fizemos.

Se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar.



fim?

_______________




PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


___________________


Leia também:

Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (1)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (2)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (3)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (4)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (5)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (6)
Pedagogia do Oprimido - Primeiras Palavras
Pedagogia do Oprimido - 1. Justificativa da «pedagogia do oprimido»
Pedagogia do Oprimido - A Contradição Opressores-Oprimidos. Sua Superação (1)
Pedagogia do Oprimido - A Contradição Opressores-Oprimidos. Sua Superação (2)
Pedagogia do Oprimido - A Contradição Opressores-Oprimidos. Sua Superação (3)
Pedagogia do Oprimido - A Situação concreta de Opressão e os Opressores (4)
Pedagogia do Oprimido - A Situação concreta de Opressão e os Oprimidos (5)
Pedagogia do Oprimido - Ninguém Liberta Ninguém, Ninguém se Liberta Sozinho (6)
Pedagogia do Oprimido - 2. A concepção «bancária» da educação como instrumento da opressão.
Pedagogia do Oprimido -  A Contradição Problematizadora e Libertadora da Educação. Seus Pressupostos (1)
Pedagogia do Oprimido -  A Contradição Problematizadora e Libertadora da Educação. Seus Pressupostos (2)
Pedagogia do Oprimido -  Ninguém Educa Ninguém (3)
Pedagogia do Oprimido -  Ninguém Educa Ninguém (4)
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade...
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... Educação dialógica e diálogo
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... O diálogo começa na busca do conteúdo programático
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... As relações homem-mundo, os temas geradores
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... A investigação dos temas geradores e sua metodologia
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... A significação conscientizadora da investigação dos temas geradores (a)
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... A significação conscientizadora da investigação dos temas geradores (b)
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... A significação conscientizadora da investigação dos temas geradores (c)
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... A significação conscientizadora da investigação dos temas geradores (d)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (a)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (b)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (c)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (d)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (e)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (f)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (g)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (h)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (i)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (j)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (k)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (l)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (m)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (n)
___________________


© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)


Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetização – Métodos 2. Alfabetização – Teoria I. Título II. Série
CDD-374.012
-371.332
77-0064 CDD-371.3:376.76

___________________

Direitos adquiridos pela
EDITORA PAZ E TERRA S/A
Rua do Triunfo, 177
01212 – São Paulo, SP
Tel. (011) 223- 6522
Rua São José, 90 – 11º andar
20010 – Rio de Janeiro, RJ
Tel. (021) 221- 4066

Conselho Editorial
Antonio Candido
Fernando Gasparian
Fernando Henrique Cardoso
(licenciado)
1994

___________________


Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido


"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores." 

Nenhum comentário:

Postar um comentário