domingo, 18 de setembro de 2022

histórias davóinha: becos sem saída (III) 18bs – União Brasileira de Mães

becos sem saída


(III) o descolocado
18bs – União Brasileira de Mães

baitasar


naquela sexta-feira, dia nacional do cego e da santa luzia, memória acordou animada, rezou fervorosa, sem fanatismo ou furor, inspirada, sentia-se um arranjo de flores coloridas e cheirosas, abarrotada de generosidade na sua habitação precária daquele beco sem saídas, uma meia-água de porta e janelas, refúgio para as famílias pobres dos operários, ali, na beirada do mato cerrado da villa, Minha apreciada e benquista Santa Luzia ilumine o caminho dos cegos das vistas e do espírito cordial no Brasil, e no mundo, mas bem que podia começar por aqui. Temos doze dias até o Natal, um bom tempo pra iluminar a cabeça dos homens e das mulheres de boa vontade. Não deixe que o egoísmo e a fome, aqui no beco, entre e cegue nossos corações. Não me entenda mal, minha santinha da visão. É que, por aqui, a cegueira das vistas seria mais uma desgraça das tantas que precisamos enfrentar todos os dias, e a todo momento. A cegueira de não saber ver, mesmo enxergando, só faz crescer nossa vida de sacrifícios. A minha santinha entende, né? A vida já é cheia de jejum e sofrimento, como a senhora bem sabe, mesmo enxergando o que se vê, e ainda temos a pouca sorte que cada uma carrega nas costas. É preciso um conforto, um alívio vez que outra. Sei que a santinha sabe tudo, mas eu me sinto na obrigação de confessar: os meninos devoraram o seu prato de aipim. Eu vinha guardando o aipim pra oferecer pra santinha, no dia de hoje, mas a comida tava tão pouca e a fome era tanta. Eu também comi um bocadinho. É difícil seguir as pegadas da santinha, não tenho jeito pra sê santa, sou mais de ver, ouvir e fofocar, é o meu jeitão, me escondo quando apareço, memória sacode a cabeça, é o meneio que faz para escorraçar pensamentos atrapalhados e bagunçados

Salve o dia da Santa Luzia!

hoje, pelo menos, não quer confusão, não quer esse emaranhado de palavras embaraçadas, não quer surpresas nem atropelos, os dois miúdos já se foram à escola, maria futuro dorme o sono entranhado da barriga empanturrada, memória coloca-se em movimento pela casa com energia redobrada, tanta energia pra vizinha, bate palmas três vezes enquanto chama, Vizinha!

está pronta para o convite

Bom dia, memória se assusta com a boniteza de perto da saúva, Bom dia, Sim... em que posso ajudar, É que domingo vamos fazer um feijoada, Hum... é mesmo, memória se culpava daquele nervosismo todo que lhe fazia ser tão direta, Sim... e vocês estão convidados, Muita gentileza sua, Vocês virão, né, Infelizmente, não.

memória não estava preparada para aquele não, estava pronta para sorrir com as mão estendidas, a voz cantando, o corpo aprumado de satisfação pela acolhida e interesse pelo seu convite inusitado, afrouxou as vistas e a boca estremeceu levemente, na verdade, não quis sua voz ecoando como uma súplica, mas foi assim que pareceu chiar, Mas por que, vizinha, Eu não como feijoada, vizinha, o plano perfeito desmoronando com o empurrão de um não 

Se todo mundo come por que ela não come? Não acredito, aí tem angu, antes que perceba o que está acontecendo, pergunta toda retesada, Por que, minha querida? 

Pode parecer bobagem, a saúva se parou na explicação, não parecia segura para essa ou qualquer revelação de si mesma, Quem essa vizinha pensa que é para aparecer com esse convite tão repentino e estranho, estou pasma! 

memória está no ponto de pedir que a saúva termine sua resposta, Vai vizinha, desembucha! 

Não é nada demais... é que eu não como feijoada porque não gosto da ideia de comer os pés ou as orelhas do porco nem os bofes ou miúdos. 

memória suspira aliviada, É só isso, vizinha, Sim, não queria ser grosseira nem faltar com respeito, Não, não... de maneira nenhuma, memória sente seu corpo relaxar e se inclinar novamente para a vizinha 

E pimenta, tomate, cebola, a vizinha gosta, Sim, E salsa, óleo de dendê, costelinha defumada, Adoro, Então, nesta feijoada não teremos pé de porco nem as orelhas e os bofes, E os miúdos, Também não teremos, será uma feijoada pra desopilar o fígado, A vizinha não precisa se incomodar, Não é incomodação, vocês são nossos convidados, Muito agradecida... estou tão envergonhada. 

as duas sorriem, se dizem tudo de bem, sem olhar desconfiado ou sorriso de desprezo, Então, estamos combinadas, Sim, vou avisar Ogum, Será um prazer recebê-los, vizinha, A vizinha tem certeza, Claro, vocês serão muito bem-vindos, Por favor, vizinha, me chame de Flora Maria, Está bem, vizinha. Eu sou a Maria Memória, Um bonito nome, O seu também, vizinha. 

a conversa parecia se diluindo em trejeitos e caretas do faz de conta, o teatro das bocas e gestos, Ah, mais uma perguntinha, Flora, Sim, por favor, Alguma bebida preferida, Por favor, não. Não temos nenhuma bebida preferida, Então, farei uma batida de abacaxi com gergelim. Pode ser, Sim, claro, Estamos combinadas. Eu vou indo que a Futuro tá no tempo de acordar. 

Quem? 

Minha bebê, Maria Futuro, um anjo de criança, Um nome bonito que anima e encoraja, Obrigada, fui eu que escolhi. O futuro aqui no beco pode parecer um fantasma, e se a gente não reclamar... a Villa nem percebe que existimos, Eu sei, bem. Exigem que vivamos quietos e humilhados, Esperando o futuro que nunca virá, Bem isso, Flora, das bocas dessa gente só saem mentiras, gritos e ameaças, Isso quando não nos chamam de boçais e estúpidos, Isso mesmo, dizem essas barbaridades porque têm as armas, Mas são poucos e fracos, Não sei, não, Flora. A cavalaria e as estocadas de espadão estão com eles, Não sou de fazer arruaça, mas essa gente ainda vai ter o que merece. 

a conversa tomou um rumo inesperado de seriedade sem tagarelice, no modo de pensar da memória ficou perigosa e cheia de intenções carrancudas, achou melhor dar por encerrada aquela conversa que poderia levá-las do buraco para o abismo, Vou indo, a Futuro logo acorda pra mamada, A vizinha não dá leite em pó, Deus me livre, carrego muitas mamadas por aqui, Estou vendo, mas nas propagandas do rádio o leite em pó veio para salvar as mães e os bebês, Flora, isso é coisa pra vender esse leite, E se o leite da mãe é fraco ou o peito tá seco, Isso é outra coisa. Eu sou mãe de três e dei o peito até a secura. Acredito que a minha abundância não pode ser jogada fora, Eu conheço mães que não têm leite, Pois eu tenho pra dar e vender, A vizinha vende o seu leite, Não! É só maneira de falar. 

É tanta besteira dita que tem mãe que acredita que o leite em pó é melhor que o leite da teta, O jeito que eu vejo é assim, esse leite em pó não é uma coisa ruim, Também acho que não é, só não deveria ficar no lugar da mamada no peito cheio de leite, Isso, mas se a mãe não quer amamentar, Vai ser preciso dar o leite em pó até ela querer, Ou não, É... acho que sim. De qualquer maneira é só mais um caso pra União Brasileira de Mães, Pode ser ou pode não ser... 

memória hesitava no próximo passo a ser dado naquela conversa alongada além da sua vontade, A tagarelice tá boa, e pelo visto, essa tal união da mulherada tem muito serviço pela frente... e eu, também. A casa me chama, vizinha. 

A minha também. 

Até domingo, Flora, Muito agradecida pelo convite, Memória, Imagina, eu gostei da conversa, Continuamos a conversa no domingo, Isso, mesmo.

Bom dia, Bom dia.


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