domingo, 30 de abril de 2023

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (9.2) - O pacto

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(9.2)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío




O pacto, entretanto, não fez com que Fernanda se incorporasse à família. Em vão Úrsula insistiu para que ela tirasse a gola de lã com que se levantava quando tinha feito amor e que provocava os cochichos dos vizinhos. Não conseguiu convencê-la a se utilizar do banheiro, ou do vaso noturno, e a vender o seu peniquinho de ouro ao Coronel Aureliano Buendía para que o transformasse em peixinhos. Amaranta se sentiu tão incomodada com a sua dicção viciosa e com o seu hábito de usar um eufemismo para designar cada coisa, que diante dela sempre falava na língua do p.

Espetapá — dizia — épé daspas quepê têmpêm nopojopô dapa própopriapá merperdapá.

Um dia, irritada com a brincadeira, Fernanda quis saber o que é que Amaranta estava dizendo e ela não usou de eufemismos para lhe responder.

— Estou dizendo — disse — que você é das que confundem o cu com as têmporas.

A partir daquele dia não tornaram a se falar. Quando as circunstâncias obrigavam, mandavam-se recados ou se diziam as coisas indiretamente. Apesar da visível hostilidade da família, Fernanda não renunciou à vontade de impor os hábitos de seus antepassados. Acabou com o costume de comer na cozinha e quando cada um tinha fome, e impôs a obrigação de o fazer em horas certas, na mesa grande da saia de jantar arrumada com toalhas de linho e com os candelabros e a baixela de prata. A solenidade de um ato que Úrsula sempre tinha considerado como o mais simples da vida cotidiana criou um ambiente de formalidade contra o qual se rebelou primeiro que ninguém o calado José Arcadio Segundo. Mas o costume se impôs, assim como o de rezar o rosário antes do jantar, e chamou tanto a atenção dos vizinhos que muito em breve correu o boato de que os Buendía não se sentavam à mesa como os outros mortais, mas que tinham transformado o ato de comer numa missa solene. Até as superstições de Úrsula, surgidas mais por inspiração momentânea que da tradição, entraram em conflito com as que Fernanda herdara dos pais e que estavam perfeitamente definidas e catalogadas para cada ocasião. Enquanto Úrsula desfrutou do pleno domínio das suas faculdades, subsistiram alguns dos antigos hábitos e a vida da família conservou uma certa influência das suas intuições, mas quando perdeu a vista e o peso dos anos a desterrou para um canto, o círculo de rigidez iniciado por Fernanda desde o momento em que chegara terminou por se fechar completamente, e ninguém mais além dela determinou o destino da família. O negócio de doces e animaizinhos de caramelo, que Santa Sofía de la Piedad mantinha por vontade de Úrsula, era considerado por Fernanda como uma atividade indigna, e não tardou em liquidá-lo. As portas da casa, abertas de par em par desde o amanhecer até a hora de dormir, foram fechadas durante a sesta, com o pretexto de que o sol esquentava os quartos, e finalmente se fecharam para sempre. O ramo de babosa e o pão que estavam pendurados no marco desde os tempos da fundação foram substituídos por um nicho do Coração de Jesus. O Coronel Aureliano Buendía chegou a perceber aquelas mudanças e previu as suas consequências. “Estamos virando gente fina”, protestava. 

“Neste ritmo, vamos acabar lutando outra vez contra o regime conservador, mas agora para colocar um rei no lugar.” Fernanda, com muito tato, procurou não ir de encontro a ele. Incomodava-a no íntimo o seu espírito independente, a sua resistência a toda forma de rigidez social. Exasperavam-na as suas canecas de café às cinco da manhã, a desordem da sua oficina, a sua manta esfiapada e o seu costume de se sentar na porta da rua ao entardecer. Teve que permitir, porém, essa peça solta do mecanismo familiar, porque tinha a certeza de que o velho coronel era um animal apaziguado pelos anos e pela desilusão, que num assomo de rebeldia senil poderia arrancar os cimentos da casa. Quando o marido decidiu pôr no primeiro filho o nome do bisavô, ela não se atreveu a fazer oposição, porque só tinha chegado há um ano. Mas quando nasceu a primeira filha, expressou sem reservas a sua determinação de que se chamasse Renata, como a sua mãe. Úrsula tinha resolvido se chamaria Remedios. Ao fim de uma tensa controvérsia qual Aureliano Segundo atuou como mediador divertido batizaram-na com o nome de Renata Remedios, mas Fernanda continuou chamando a menina de Renata puramente quanto que a família do marido e todo o povo continuou a chamá-la de Meme, apelido de Remedios.

No princípio, Fernanda não falava da sua família, com o tempo começou a idealizar o pai. Falava dele na como de um ser excepcional que havia renunciado a toda espécie de vaidade e que se estava transformando em santo. Aureliano Segundo, espantado com o endeusamento repentino do sogro, não resistia à tentação de fazer pequenas zombarias pelas costas da esposa. O resto da família seguiu o exemplo. A própria Úrsula, que era extremamente zelosa da monja familiar e que sofria em segredo com os atritos domésticos, permitiu-se dizer certa vez que o pequeno tataraneto tinha assegurado o seu futuro pontifical, porque era “neto de santo e filho de rainha com criador de gados”. Apesar daquela sorridente conspiração, as crianças se acostumaram a pensar no avô como num ser lendário, que lhes transcrevia versos piedosos nas cartas e lhes mandava em cada Natal caixote de presentes que mal passava na porta da rua para entrar. Eram, realmente, os últimos restos do patrimônio senhorial. Com eles se construiu, no quarto das crianças, um altar com santos de tamanho natural, cujos olhos de vidro lhes imprimiam uma inquietante aparência de vida e cujas roupas de fazenda, artisticamente bordadas, eram melhores que as usadas em qualquer circunstância por qualquer habitante de Macondo. Pouco a pouco, o esplendor funerário da antiga e gelada mansão se foi trasladando para a luminosa casa dos Buendía. “Já nos mandaram todo o cemitério familiar”, comentou Aureliano Segundo em certa ocasião. “Agora só estão faltando os salgueiros e as lousas sepulcrais.” Embora nos caixotes nunca tivesse chegado nada que servisse para as crianças brincarem, estas passavam o ano inteiro esperando dezembro, porque afinal os antiquados e sempre imprevisíveis presentes constituíam uma novidade na casa. No décimo Natal, quando o pequeno José Arcadio já se preparava para viajar para o seminário, chegou com maior antecedência do que nos anos anteriores o enorme caixote do avô, muito bem pregado e impermeabilizado com breu e endereçado com o habitual letreiro de caracteres góticos à mui ilustre senhora dona Fernanda del Carpio de Buendía. Enquanto ela lia a carta no quarto, as crianças se apressaram em abrir a caixa. Ajudados como de costume por Aureliano Segundo, rasparam os lacres de breu, despregaram a tampa, tiraram a serragem protetora e encontraram dentro uma comprida arca de chumbo fechada com parafusos de cobre. Aureliano Segundo tirou os oito parafusos diante da impaciência das crianças e mal teve tempo de soltar um grito e afastá-las para o lado quando levantou a tampa de chumbo e viu D. Fernando vestido de preto e com um crucifixo no peito, com a pele arrebentada em bolhas fedorentas e se cozinhando a fogo lento num espumoso e borbulhante caldo de pérolas vivas. Pouco depois do nascimento da menina, anunciou-se o inesperado jubileu do Coronel Aureliano Buendía, ordenado pelo Governo para celebrar um novo aniversário do Tratado de Neerlândia. Foi uma determinação tão incongruente com a política oficial que o coronel se pronunciou violentamente contra ela e recusou a homenagem. 

“É a primeira vez que ouço a palavra jubileu”, dizia. “Mas seja o que for que ela signifique, não pode deixar de ser zombaria.” A estreita oficina de ourivesaria se encheu de emissários. Voltaram, muito mais velhos e muito mais solenes, os advogados de terno escuro que em outra época esvoaçavam como corvos em torno do coronel. Quando este os viu aparecer, já que em outros tempos chegavam para atrapalhar a guerra, não pôde suportar o cinismo dos seus panegíricos. Ordenou-lhes que o deixassem em paz, insistiu no fato de ele não ser um prócer da nação como eles diziam, e sim um artesão sem recordações, cujo único sonho era morrer de cansaço no esquecimento e na miséria dos seus peixinhos de ouro. O que mais o indignou foi a notícia de que o próprio Presidente da República pensava em assistir aos atos de Macondo para lhe oferecer a Ordem do Mérito. O Coronel Aureliano Buendía mandou-lhe dizer, palavra por palavra, que esperava com verdadeira ansiedade aquela tardia mas merecida ocasião de lhe dar um tiro, não para cobrar as arbitrariedades e anacronismos do seu regime, mas por faltar com o respeito a um velho que não fazia mal a ninguém. Foi tal a veemência com que pronunciou a ameaça que o Presidente da República cancelou a viagem na última hora e mandou a condecoração por um representante pessoal. O Coronel Gerineldo Márquez, assediado por pressões de toda espécie, abandonou o seu leito de paralítico para persuadir o seu antigo companheiro de armas. Quando este viu aparecer a cadeira de balanço carregada por quatro homens e viu sentado nela, entre grandes almofadas, o amigo que partilhara das suas vitórias e infortúnios desde a juventude, não duvidou por um só instante de que fazia aquele esforço para lhe expressar a sua solidariedade. Mas quando soube do verdadeiro propósito daquela visita, fez com que o retirassem da oficina. “Tarde demais eu me convenço, disse a ele, de que teria feito um grande favor a você se tivesse deixado que o fuzilassem.”

De modo que o jubileu se realizou sem a presença de nenhum dos membros da família. Foi por acaso que coincidiu com a semana do carnaval, mas ninguém conseguiu tirar da cabeça do Coronel Aureliano Buendía a ideia obstinada de que também aquela coincidência tinha sido prevista pelo governo para reforçar a crueldade da zombaria. Da oficina solitária ouviu as músicas marciais, as salvas de artilharia, os sinos de Te Deum e algumas frases dos discursos pronunciados defronte da casa quando batizaram a rua com o seu nome. Seus olhos se umedeceram de indignação, de raivosa impotência, e pela primeira vez desde a derrota doeu-lhe não possuir mais os arroubos da juventude para promover uma guerra sangrenta que apagasse até o último vestígio do regime conservador. Ainda não se haviam extinguido os ecos da homenagem quando Úrsula bateu na porta da oficina. 

— Não aborreçam — ele disse. — Estou ocupado. 

— Abra — Úrsula insistiu com voz cotidiana. — Isto não tem nada que ver com a festa.

Então o Coronel Aureliano Buendía tirou a tranca e viu na porta dezessete homens dos mais variados aspectos, de todos os tipos e cores, mas todos com um ar solitário que teria bastado para identificá-los em qualquer lugar da terra. Eram os seus filhos. Sem combinar nada, sem se conhecerem, tinham chegado dos mais distantes lugares do litoral, cativados pelo barulho do jubileu. Todos usavam com orgulho o nome de Aureliano e o sobrenome da mãe. Durante os três dias que permaneceram na casa, para a satisfação de Úrsula e o escândalo de Fernanda, ocasionaram transtornos incríveis. Amaranta procurou entre antigos papéis a caderneta de contas onde Úrsula anotara os nomes e as datas de nascimento e batismo de todos, e acrescentou no espaço correspondente a cada um o domicílio atual. Aquela lista teria permitido fazer uma recapitulação de vinte anos de guerra. Poder-se-iam reconstituir com ela os itinerários noturnos do coronel, desde a madrugada em que saiu de Macondo à frente de vinte e um homens para uma rebelião quimérica até que regressou pela última vez embrulhado na manta dura de sangue. Aureliano Segundo não perdeu a ocasião de festejar os primos com uma estrondosa farra de champanha e acordeão que se interpretou como um atrasado ajuste de contas com o carnaval malogrado pelo jubileu. Reduziram a cacos metade da louça, quebraram as roseiras perseguindo um touro para o mantear, mataram galinhas a tiros, obrigaram Amaranta a dançar as valsas tristes de Pietro Crespi, conseguiram fazer Remedios, a bela, vestir calças de homem para subir no pau-de-sebo e soltaram na sala de jantar um leitão lambuzado de gordura que nauseou Fernanda, mas ninguém lamentou a sua indisposição porque a casa estremeceu com um terremoto de boa saúde. O Coronel Aureliano Buendía, que a princípio os recebeu com desconfiança, e até pôs em dúvida a filiação de alguns, divertiu-se com as suas loucuras e antes que fossem embora presenteou cada um com um peixinho de ouro. Até o esquivo José Arcadio Segundo lhes ofereceu uma tarde de rinha, que esteve quase por terminar em tragédia, porque vários dos Aurelianos eram tão experimentados em transações de galos que descobriram no primeiro golpe de vista as trapaças do Padre Antonio Isabel. Aureliano Segundo, que viu as ilimitadas perspectivas de farra que oferecia aquela animada parentela, decidiu que todos ficariam para trabalhar com ele. O único que aceitou foi Aureliano Triste, um mulato grande, com os ímpetos e o espírito explorador do avô, que já havia tentado a sorte em meio mundo e para quem tanto fazia ficar em qualquer parte. Os outros, embora ainda fossem solteiros, consideravam resolvido o seu destino. Eram todos artesãos hábeis, homens de suas casas, gente de paz. Na quarta-feira de cinzas, antes que voltassem a se dispersar pelo litoral, Amaranta conseguiu que vestissem roupas de domingo e a acompanhassem à igreja. Mais divertidos que piedosos, deixaram-se conduzir até o altar onde o Padre Antonio Isabel lhes pôs na testa a cruz de cinza. De volta a casa, quando o menor quis limpar a testa, descobriu que a mancha era indelével e que também o eram as de seus irmãos. Experimentaram com água e sabão, com terra e bucha, e por último com pedra-pomes e água sanitária, e não conseguiram apagar a cruz. Em compensação, Amaranta e os outros que foram à missa tiraram-na sem dificuldade. “Assim vão melhor”, despediu-os Úrsula. “De agora em diante ninguém poderá confundi-los.” Foram a galope, precedidos pela banda de música e soltando foguetes, e deixaram no povo a impressão de que a estirpe dos Buendía tinha sementes para muitos séculos. Aureliano Triste, com a sua cruz de cinza na testa, instalou nos arrabaldes do povoado a fábrica de gelo com que sonhara José Arcadio Buendía nos seus delírios de inventor.

Meses depois da sua chegada, quando já era conhecido e apreciado, Aureliano Triste andava procurando uma casa para mandar vir sua mãe e uma irmã solteira (que não era filha do coronel) e se interessou por um casarão decrépito que parecia abandonado numa esquina da praça. Perguntou de quem era. Alguém lhe disse que era uma casa sem dono, onde em outros tempos vivera uma viúva solitária que se alimentava de terra e cal das paredes e que nos seus últimos anos só fora vista duas vezes na rua, com um chapéu de minúsculas flores artificiais e uns sapatos cor de prata antiga, quando atravessava a praça até a agência do correio para enviar cartas para o Bispo. Disseram-lhe que a sua única companhia fora uma criada desalmada que matava cães e gatos e quanto animal penetrava na casa, e jogava os cadáveres no meio da rua para aborrecer o povo com a fedentina da putrefação. Tanto tempo passou desde que o sol mumificara a carcaça vazia do último animal que todo mundo dava por certo que a dona da casa e a criada haviam morrido muito antes de que terminassem as guerras e que se a casa ainda estava de pé era porque não tinham tido nos últimos anos um inverno rigoroso ou um vento demolidor. As dobradiças partidas pela ferrugem, as portas mal sustentadas pelo acúmulo de teias de aranha, as janelas soldadas pela umidade e o chão arrebentado pelo mato e pelas flores silvestres, em cujas gretas se aninhavam os lagartos e toda espécie de insetos, pareciam confirmar a versão de que ali não estivera um ser humano pelo menos há meio século. Ao impulsivo Aureliano Triste não eram necessárias tantas provas para agir. Forçou com o ombro a porta principal e a carcomida armação de madeira caiu sem estrépito, num calado cataclismo de pó e terra de ninhos de cupim. Aureliano Triste permaneceu no umbral, esperando que se desvanecesse a névoa, e então viu no centro da sala a esquálida mulher ainda vestida com roupas do século anterior, com umas poucas fibras amarelas no crânio pelado e com uns olhos grandes, ainda belos, nos quais se haviam apagado as últimas estrelas da esperança, e a pele do rosto gretada pela aridez da solidão. Comovido pela visão do outro mundo, Aureliano Triste mal percebeu que a mulher estava apontando para ele uma antiquada pistola militar. 

— Perdão — murmurou.

Ela permaneceu imóvel no centro da sala entulhada de trastes, examinando palmo a palmo o gigante de ombros quadrados com uma tatuagem de cinza na testa e através da neblina da poeira viu-o na neblina de outros tempos, com uma espingarda de dois canos trançada nas costas e uma fieira de coelhos na mão. 

— Pelo amor de Deus — exclamou em voz baixa — não é justo que agora me venham com esta lembrança!

— Quero alugar a casa — disse Aureliano Triste.

A mulher então levantou a pistola, apontando com pulso firme a cruz de cinza e armou o gatilho com uma determinação inapelável.

— Vá embora — ordenou. 

Naquela noite, durante o jantar, Aureliano Triste contou o episódio à família e Úrsula chorou de consternação. “Santo Deus”, exclamou apertando a cabeça entre as mãos. “Ainda está viva!” O tempo, as guerras, as incontáveis desgraças cotidianas tinham feito com que se esquecesse de Rebeca. A única que não tinha perdido por um só instante a consciência de que estava viva, apodrecendo na sua sopa de larvas, era a implacável e envelhecida Amaranta. Pensava nela ao amanhecer, quando o gelo do coração a acordava na cama solitária, e pensava nela quando ensaboava os seios murchos e o ventre macilento, e quando vestia as brancas anáguas e camisetas de cambraia da velhice, e quando trocava na mão a venda negra da terrível expiação. Sempre, a toda hora, adormecida e acordada, nos momentos mais sublimes e nos mais abjetos, Amaranta pensava em Rebeca, porque a sua solidão havia selecionado as lembranças e incinerado as entorpecentes montanhas de lixo nostálgico que a vida acumulara no seu coração e havia purificado, magnificado e eternizado as outras, as mais amargas. Por ela é que Remedios, a bela, sabia da existência de Rebeca. Cada vez que passavam pela casa decrépita, contava-lhe um incidente ingrato, uma fábula de opróbrio, tentando desta forma fazer com que o seu extenuante rancor fosse partilhado pela sobrinha e, por conseguinte, prolongado além da morte, mas não conseguiu realizar os seus propósitos porque Remedios era imune a todo tipo de sentimentos apaixonados e mais ainda aos alheios. Úrsula, em compensação, que sofrera um processo contrário ao de Amaranta, evocou Rebeca com uma memória limpa de impurezas, pois a imagem da pobre criatura que trouxeram à sua casa com o saco dos ossos dos seus pais prevaleceu sobre a ofensa que a fez indigna de continuar vinculada ao tronco familiar. Aureliano Segundo resolveu que era preciso trazê-la para casa e protegê-la, mas o seu bom propósito foi frustrado pela inquebrantável intransigência de Rebeca, que tinha necessitado de muitos anos de sofrimento e miséria para conquistar os privilégios da solidão e não estava disposta a renunciar a eles em troca de uma velhice perturbada pelos falsos encantos da misericórdia. Em fevereiro, quando voltaram os dezesseis filhos do Coronel Aureliano Buendía, ainda marcados com a cruz de cinza, Aureliano Triste lhes falou de Rebeca no barulho da farra e em meio dia restauraram a aparência da casa, trocaram portas e janelas, pintaram a fachada de cores alegres, reforçaram as paredes e espalharam cimento novo no chão, mas não obtiveram autorização para continuar as reformas no interior. Rebeca nem sequer apareceu na porta. Deixou que terminassem a aturdida restauração e logo fez um cálculo dos custos e mandou para eles por Argénida, a velha criada que continuava a lhe fazer companhia, um punhado de moedas tiradas de circulação desde a última guerra, e que Rebeca acreditava que continuassem válidas. Foi então que se percebeu a que ponto inconcebível chegara a sua desvinculação com o mundo e se compreendeu que seria impossível resgatá-la da sua obstinada clausura enquanto lhe restasse um sopro de vida. 

Na segunda visita que os filhos do Coronel Aureliano Buendía fizeram a Macondo, outro deles, Aureliano Centeno, ficou trabalhando com Aureliano Triste. Era um dos primeiros que tinham vindo à casa para o batismo, e Úrsula e Amaranta se lembravam muito bem dele, porque tinha espedaçado em poucas horas quantos objetos quebráveis haviam passado pelas suas mãos. O tempo tinha moderado o seu primitivo impulso de crescimento e era um homem de estatura mediana marcado com cicatrizes de varíola, mas o seu assombroso poder de destruição manual continuava intacto. Tantos pratos quebrou, inclusive sem tocá-los, que Fernanda optou por comprar para ele um serviço de folha-de-flandres antes que liquidasse com as últimas peças da sua louça cara, e mesmo os resistentes pratos metálicos em pouco tempo já estavam sem brilho e desbeiçados. Compensando, porém, aquele poder irremediável, exasperante inclusive para ele mesmo, possuía uma cordialidade que despertava a confiança imediata e uma estupenda capacidade de trabalho. Em pouco tempo incrementou de tal modo a produção de gelo que estourou o mercado local e Aureliano Triste teve que pensar na possibilidade de estender o negócio para as outras povoações do pantanal. Foi então que imaginou o passo decisivo não só para a modernização da sua indústria, como também para vincular a população ao resto do mundo. 

— E preciso trazer a estrada de ferro — disse. 

Era a primeira vez que se ouvia a expressão em Macondo. Diante do desenho que Aureliano Triste traçou na mesa, e que era um descendente direto dos esquemas com que José Arcadio Buendía ilustrou o projeto da guerra solar, Úrsula confirmou a sua impressão de que o tempo estava dando voltas num círculo vicioso. Mas ao contrário do avô, Aureliano Triste não perdia o sono nem o apetite, nem atormentava ninguém com crises de mau humor, mas concebia os projetos mais desatinados como possibilidades imediatas, elaborava cálculos racionais sobre custo e prazo e os levava a cabo sem intervalos de exasperação. Aureliano Segundo, que se tinha alguma coisa do bisavô e não tinha do Coronel Aureliano Buendía era uma absoluta impermeabilidade para o desengano, soltou o dinheiro para trazer a estrada de ferro com a mesma leviandade com que o soltara para a absurda companhia de navegação do irmão. Aureliano Triste consultou o calendário e partiu na quarta-feira seguinte para estar de volta quando passassem as chuvas. Não se teve mais notícias dele. Aureliano Centeno, transbordado pelas abundâncias da fábrica, já tinha começado a experimentar a elaboração do gelo com base em sucos de frutas no lugar da água, e sem o saber, sem programar, imaginou os fundamentos essenciais da invenção dos sorvetes, pensando desta forma diversificar a produção de uma empresa que supunha sua, porque o irmão não dava sinais de regresso depois de passarem as chuvas e transcorrer um verão inteiro sem notícias. No início do outro inverno, entretanto, uma mulher que lavava roupa no rio na hora de mais calor atravessou a rua principal fazendo alarido, num alarmante estado de comoção.

— Vem aí — conseguiu explicar — um negócio horrível como uma cozinha arrastando uma aldeia.

Nesse momento a população foi sacudida por um apito de ressonâncias pavorosas e uma descomunal respiração ofegante. Nas semanas anteriores viram-se grupos de trabalhadores que colocavam dormentes e trilhos, mas ninguém prestou atenção porque pensaram que era um novo artifício dos ciganos, que voltavam com a sua secular e desprestigiada teimosia de apitos e chocalhos apregoando as excelências de sabe Deus que miserável panaceia dos xaroposos gênios hierosolimitanos. Mas quando se recuperaram do espanto dos assovios e bufos, todos os habitantes correram para a rua e viram Aureliano Triste acenando, com a mão, da locomotiva, e viram assombrados o trem enfeitado de flores que, já da primeira vez, chegava com oito meses de atraso. O inocente trem amarelo que tantas incertezas e evidencias, e tantos deleites e desventuras, e tantas mudanças, calamidades e saudades haveria de trazer para Macondo.

continua página 141...

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