sábado, 8 de abril de 2023

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (49)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1

1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas


SEGUNDA PARTE


XLIX – MARIA-GASTÃO A DANIEL D’ARTHEZ


Outubro de 1834 


Meu caro Daniel, necessito de duas testemunhas para o meu casamento; peço-lhe vir à minha casa amanhã de tarde e traga consigo o nosso amigo, o bom e grande José Bridau. A intenção da que será minha mulher é viver longe da sociedade e perfeitamente ignorada: ela pressentiu o mais caro de meus desejos. Você, que suavizou as misérias de minha vida pobre, nada soube dos meus amores, mas, como pode compreender, esse segredo absoluto foi uma necessidade. Eis o motivo pelo qual, faz um ano, tão pouco nos vimos. No dia seguinte ao meu casamento, estaremos separados por muito tempo. Daniel, você tem alma feita para me compreender: a amizade subsistirá sem o amigo. Eu terei, talvez, necessidade de você, mas não o verei, pelo menos em minha casa. Ela também nisso se antecipou aos nossos desejos. Fez-me o sacrifício da amizade que dedicava a uma companheira de infância, e que para ela era uma verdadeira irmã; tive de lhe imolar o amigo. O que aqui lhe digo o fará perceber não uma paixão, mas um amor integral, completo, divino, baseado no íntimo conhecimento de dois seres que assim se unem. Minha felicidade é pura, infinita; como, porém, existe uma lei secreta que nos proíbe ter uma felicidade sem sombras, no fundo de minha alma e sepultado sob o último recesso, oculto um pensamento pelo qual sou o único atingido e que ela ignora. Você sempre me auxiliou na minha constante miséria para ignorar a horrível situação na qual eu me encontrava. Onde ia eu buscar a coragem para viver, quando a esperança se extinguia tão frequentemente? No seu passado, meu amigo, na sua casa, onde encontrava tanto consolo e auxílios delicados. Enfim, meu caro, minhas dívidas esmagadoras, ela as pagou. Ela é rica, eu nada tenho. Quantas vezes, nos meus acessos de preguiça, não disse eu: “Ah! Se alguma mulher rica me quisesse!”. Pois bem, ante os fatos, os gracejos da mocidade despreocupada, as resoluções dos infelizes sem escrúpulos, tudo se evaporou. Sinto-me humilhado, apesar da mais engenhosa ternura. Sinto-me humilhado, apesar da certeza quanto à nobreza de sua alma. Sinto-me humilhado, embora saiba que minha humilhação é uma prova de meu amor. Enfim, ela viu que não recuei diante dessa degradação. Há um ponto em que, longe de ser um protetor, sou o protegido. Essa dor eu a confio a você. Fora disso, meu caro Daniel, as menores coisas realizam meus sonhos. Encontrei o belo sem mácula, o bem sem defeitos. Enfim, conforme dizem, a noiva é demasiado bela: tem espírito na ternura, tem essa sedução e essa graça que põem variedade no amor, é instruída e tudo compreende; é bonita, loura, miúda e ligeiramente rechonchuda, a ponto de acreditar que Rafael e Rubens se combinaram para compor uma mulher! Não sei se me teria sido possível amar a uma mulher morena tanto quanto a uma loura: sempre me pareceu que a mulher morena era um homem frustrado. É viúva, não tem filhos, tem vinte e sete anos. Embora viva, alerta, incansável, sabe apesar disso comprazer-se nas meditações da melancolia. Esses dons maravilhosos não excluem nela nem a dignidade, nem a nobreza: é imponente. Embora pertença a uma das mais velhas famílias mais encasquetadas da nobreza, ama-me o suficiente para passar por cima das desgraças da minha origem. Nossos amores secretos duraram muito tempo. Nós nos experimentamos um ao outro; somos igualmente ciumentos: nossos pensamentos são bem os relâmpagos do mesmo raio. Amamos os dois pela primeira vez, e essa deliciosa primavera encerrou nas suas alegrias todas as cenas que a imaginação enfeitou com as suas mais risonhas, mais doces e mais profundas concepções. O sentimento prodigalizou-nos as suas flores. Cada um desses dias foi cheio, e, quando nos separávamos, escrevíamos poemas um ao outro. Jamais tive o pensamento de ensombrecer essa brilhante temporada por um desejo, conquanto minha alma se visse incessantemente perturbada por eles. Ela era viúva e livre, compreendeu maravilhosamente o que havia de lisonjeiro naquela contínua reserva; muitas vezes isso a comoveu até as lágrimas. Poderás, pois, entrever, meu caro Daniel, uma criatura verdadeiramente superior. Não houve nem mesmo um primeiro beijo de amor: temíamos um ao outro.

— Cada um de nós tem uma miséria a censurar-se — disse-me ela.

— Não vejo qual a sua.

— Meu casamento — respondeu-me.

A você que é um grande homem e ama uma das mais extraordinárias mulheres dessa aristocracia [1] onde encontrei a minha Armanda, basta-lhe essa palavra para compreender aquela alma e prever qual será a felicidade de

seu amigo
MARIA-GASTÃO


continua pág 358...

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[1] Uma das mais extraordinárias mulheres dessa aristocracia: alusão a Diana de Maufrigneuse, princesa de Cadignan, uma das personagens mais notáveis de A comédia humana, tipo da “mulher fatal”, como se diria hoje, com inúmeros casos. Nesse momento, já em plena maturidade (tinha seus trinta e oito anos), era amante de Daniel d’Arthez. Ver Os segredos da princesa de Cadignan, O deputado de Arcis etc.

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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (49)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (50)

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