quarta-feira, 19 de abril de 2023

Marcel Proust - A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - c)

em busca do tempo perdido

volume VI
A Fugitiva



Capítulo I
Mágoa e Esquecimento


continuando...


Saint-Loup, que eu sabia estar em Paris, fora chamado por mim no mesmo instante; atendeu rápido e eficaz como o era antigamente em Doncieres, e concordou em partir logo para a Touraine. Submeti-lhe a seguinte combinação: ele desceria em Châtellerault, pediria que lhe indicassem a casa da Sra. Bontemps, esperaria que Albertine saísse, pois ela poderia reconhecê-lo. 

- Mas então a moça de quem falas me conhece? - perguntou-me ele. Disse-lhe que achava que não. O projeto me encheu de alegria infinda. Todavia, estava em absoluta contradição com aquilo que eu me prometera no começo: cuidar de não parecer que mandara procurar Albertine; e isto, inevitavelmente, acabava por ter esse ar; mas tinha também, sobre o que convinha fazer, a vantagem inestimável de que me permitia dizer a mim mesmo que alguém, enviado por mim, ia ver Albertine e, sem dúvida, trazê-la de volta. E se no começo eu soubesse ter visto claro em meu coração, teria podido prever que tal solução, escondida na sombra, e que eu achava deplorável, é que levaria de vencida as soluções de paciência, e era ela que eu decidira querer por falta de vontade mesmo. Saint-Loup já se mostrasse surpreso de que uma moça tivesse morado comigo um inverno sem que eu lhe houvesse dito nada, como, por outro lado, ele me voltasse a falar muitas vezes da moça de Balbec sem que eu jamais lhe dissesse: 

- Mas ela mora aqui-, ele poderia ter-se melindrado com minha falta de coerência. 

É verdade que a Sra. Bontemps talvez lhe falasse de Balbec. Mas eu me sentia por demais impaciente quanto à sua partida, à sua chegada, para querer ou para pensar nas possíveis consequências dessa viagem. Quanto a reconhecer (que aliás ele havia sistematicamente evitado olhar quando a encontrou em Doncieres), ela havia, conforme a opinião de todos, mudado e engordado isso era pouco provável. Ele me perguntou se eu não tinha um retrato de Albertine. Primeiro respondi que não, para que ele não pudesse, através da fotografia mais ou menos na época de Balbec, reconhecer Albertine, a quem no entanto, entrevira no vagão. Mas refleti que, no último retrato, ela já estaria tão diferente da Albertine de Balbec quanto o estava hoje a Albertine viva, que ele não a reconheceria no retrato nem na realidade. Enquanto eu procurava a foto, ele me passava levemente a mão pela testa, como para me consolar. Eu me sentia emocionado, pela mágoa que lhe causava a dor que adivinhava em mim. Em primeiro lugar se tivesse separado de Rachel, o que ele então sentira ainda não estava tão diferente do que ele não nutrisse uma simpatia, uma piedade especial por esse tipo de sofrimento, como nos sentimos mais próximos de alguém que sofre da mesma doença que nós. Depois, era tão afetuoso comigo que não suportava a simples ideia de sofrimento. Desse modo, concebia por aquele que os causava um misto de alegria e admiração. Achava que eu era um ser tão superior que imaginava ser preciso que eu me submetesse a outra criatura, que esta fosse simplesmente extraordinária. Eu pensava que ele acharia bonita a foto de Albertine, mas, como ainda considerasse que ela não lhe produziria a mesma impressão que Helena nos velhos troianos, disse-lhe modestamente, sempre em busca do retrato:

- Oh, não fiques esperando grande coisa: primeiro a foto é ruim, e depois ela não é extraordinária, não é uma beleza; sobretudo é muito gentil. 

- Oh, sim, ela é maravilhosa - respondeu ele com um entusiasmo ingênuo e sincero, de imaginar a criatura que podia lançar-me em semelhante desespero e agitação. - Tenho raiva dela, porque te fez tanto mal; mas também, era de se supor que é artista até a ponta dos dedos, como tu, que amas em tudo a beleza com tanto amor, estaria predestinado a sofrer mais que qualquer outro quando a encontrar em alguma mulher. -

Por fim, encontrei a fotografia.

- Com certeza ela é maravilhosa - continuou a dizer Robert, que não tinha visto que eu lhe estendia a fotografia. De repente a viu, segurou-a nas mãos por um momento. Seu rosto exprimiu um tom que chegou às raias da estupidez.

- É esta a moça a quem amas? - acabou por dizer com um tom em que a estupefação era matizada pelo receio de me aborrecer. Não fez nenhuma observação, assumira o ar sensato, cauteloso, forçosamente um tanto altivo, que temos diante de um enfermo ainda que tenha sido um homem notável e nosso amigo -, mas que não é mais nada disso, pois, acometido brancura furiosa, fala-nos de uma criatura celeste que lhe surgiu e continua a vê-la no local em que nós, pessoas saudáveis, só avistamos um edredom. Compreendi imediatamente o espanto de Robert, e que era o mesmo em que me lançara à vista de sua amante, com a única diferença de que eu encontrara nela uma mulher que já conhecia, ao passo que ele julgava nunca ter visto Albertine. Mas é claro que a diferença entre o que nós dois víamos acerca de uma mesma pessoa era bem grande. Ia longe o tempo em que eu, bem parcamente, começara em Balbec a acrescentar às sensações visuais, quando contemplava Albertine, sensações de gosto, de cheiro e de tato. Desde então se haviam acrescentado sensações mais profundas, mais doces, mais indefiníveis, e, depois, sensações dolorosas. Numa palavra, Albertine era apenas, como uma pedra a cujo redor nevou, o centro gerador de uma construção enorme que passava pelo plano do meu coração. Robert, para quem toda essa estratificação de sensações era invisível, só apanhava um resíduo que ela, ao contrário, impedia-me de perceber. O que havia perturbado Robert, ao ver a fotografia de Albertine, não fora a comoção dos velhos troianos vendo passar Helena e dizendo: Notre mal ne vaut pas un seul de ses regards,[Consald, Sonetos para Helena. Livro II, LXVII, verso 4: "Nosso mal não vale um só de seus olhares."(N. do T)]; mas exatamente a oposta e que faz dizer: "Como, foi por causa disso que ele se incomodou tanto, teve tantos aborrecimentos, praticou tantas loucuras!" É preciso confessar que esse tipo de reação à vista da pessoa que causou os sofrimentos, transtornou a vida, às vezes acarretando a morte de alguém que nós amamos, é infinitamente mais comum do que o dos velhos troianos e, para dizer tudo, habitual. O motivo não é apenas porque o amor é individual, nem porque, quando já não o sentimos, torna-se natural que o achemos evitável e nos ponhamos a filosofar sobre a loucura dos outros. Não, é porque, quando ele atinge o grau em que nos causa tais males, a construção das sensações interpostas entre o rosto da mulher e os olhos do amante - esse enorme ovo doloroso que o envolve e dissimula, tanto quanto uma camada de neve a uma fonte - já se estendeu para bem longe para que o ponto onde se fixa o olhar do amante, o ponto em que ele encontra o seu prazer e suas dores, esteja igualmente longe do ponto em que as outras pessoas o veem, como o sol verdadeiro está longe do ponto em que a sua luz condensada nos deixa percebê-lo no céu. E além do mais, durante esse tempo, sob a crisálida de dores e carinhos que torna invisível ao amante as piores metamorfoses da criatura amada, o rosto teve tempo de envelhecer e mudar. De forma que, se o rosto que o amante viu da primeira vez está bem distante do outro que ele vê desde que ama e sofre, está, em sentido inverso, igualmente distante daquele que o espectador indiferente pode ver agora. (Que teria acontecido se, em vez da fotografia desta que era uma moça, Robert tivesse visto o retrato de uma velha amante?) E temos necessidade de ver pela primeira vez aquela que causou tantos sofrimentos para sentirmos esse espanto.

Muitas vezes a conhecíamos, como o meu tio-avô conhecia Odette. Então a diferença de ótica se estende não só ao aspecto físico, ao caráter, à importância individual. Há muitas probabilidades de que a mulher que fez sofrer aquele que a ama tenha sido sempre boa moça para com alguém que preocupava com ela, como Odette, tão cruel com Swann, fora a delicada "dama de rosa" de meu tio-avô; ou então a criatura de quem toda decisão é uma mente calculada, com tanto medo quanto a de uma divindade, por aquele que ama, surge como uma pessoa inconsequente, muito feliz por fazer sempre a de alheia, aos olhos de quem não a ama, como a amante de Saint-Loup em mim, que nela só enxergava a "Rachel-quando-do-Senhor" que tantas vezes me haviam oferecido. Lembrava-me, na primeira vez em que a tinha visto com Loup, de minha estupefação diante da ideia de que alguém pudesse torturar, não saber o que uma tal mulher faria em tal noite, o que ela poderia ter dito a alguém, e por quem desejaria romper. Ora, eu sentia que todo esse passado de Albertine, para o qual toda fibra de meu coração, de minha vida, dirigia-se um sofrimento vibrátil e desajeitado, devia parecer tão insignificante a Saint como talvez a mim mesmo, um dia; que aos poucos eu passaria talvez, no tempo à gravidade ou à insignificância do passado de Albertine, do estado de espírito que me encontrava naquele momento ao de Saint-Loup, pois não me iludia o que Saint-Loup pudesse pensar, sobre o que pensaria todo aquele que não o conhece. E não sofria muito com isso. Deixemos as belas mulheres aos homens sem imaginação. Lembrava-me dessa trágica explicação de tantas vidas que é um retrato genial, e nada parecido, como o de Odette por Elstir, e que é menos o retrato de amante que do amor que forma. Nele só faltava-o que tantos retratos possam ser a um tempo de um grande pintor e de um amante (e ainda assim, diziam Elstir o fora de Odette). Essa dissemelhança, prova-a a vida inteira de um amante a quem ninguém compreende as loucuras, a vida inteira de um Swann. Mas que um amante se desdobra num pintor e então é proferida a palavra que restitui o enigma; temos enfim diante dos olhos esses lábios que o vulgo jamais percebe nessa mulher, esse nariz que ninguém lhe concedeu, esse porte insuspeito no retrato diz: "O que amei, o que me fez sofrer, o que vi sem cessar, é isto." Por ginástica oposta, eu que havia tentado, pelo pensamento, acrescentar à Raquel tudo o que Saint-Loup lhe acrescentara por conta própria, procurava retirar uma contribuição cardíaca e mental à composição de Albertine, e representá-la para tal e qual deveria aparecer a Saint-Loup, como Rachel a mim. Essas diferenças mesmo que as percebêssemos, que importância lhes daríamos? E, quando antigamente, em Balbec, Albertine me esperava sob as arcadas de Incarville, saltava para o meu carro, não somente ela ainda não "engordara", como, em consequência de excessos de exercício, emagrecera demais; seca, mais desfigurada ainda por causa de um chapéu horrível que só deixava aparecer a pontinha do nariz feio e duas faces brancas feito neve, era bem pouco o que eu enxergava nela, mas o bastante para que, pelo salto que ela dava para dentro do carro, eu soubesse que era ela, que ela comparecera pontualmente ao encontro e não fora a outro lugar; e isso basta; o que amamos está por demais no passado, consiste por demais no tempo que perdemos juntos para que tenhamos necessidade da mulher toda; desejamos apenas ter certeza de que se trata dela, de que não nos enganamos quanto à identidade, mais importante que a beleza para aqueles que amam; as faces podem ficar encovadas, o corpo emagrecer, mesmo para aqueles que, a princípio, mais se orgulhavam diante do próximo de seu domínio sobre uma beldade: esse palminho de cara, esse sinal em que se resume a personalidade permanente de uma mulher, essa fórmula algébrica, essa constante, basta isso para que um homem solicitado na mais alta sociedade, e que a estima, não possa dispor de uma só de suas noites porque passa o tempo a pentear e despentear a mulher amada, até a hora de dormir, ou simplesmente ficar junto dela, para estar com ela, ou para que ela esteja em sua companhia, ou apenas para que ela não esteja na companhia de outros. 

-Tens certeza? - perguntou Robert - de que posso oferecer uns trinta mil francos a essa mulher para o comitê eleitoral do marido? Ela é desonesta a esse ponto? Se não te enganas, três mil francos bastarão. 

- Não, peço-te, não economizes numa coisa que tanto me fala ao coração. Deves dizer isto, no que aliás há um fundo de verdade: "Meu amigo tinha pedido estes trinta mil francos a um parente para o comitê do tio de sua noiva. Foi por causa desse noivado que obteve o dinheiro. E me pediu que o entregasse à senhora para que Albertine não soubesse de nada. Aí então, Albertine o abandona. Ele já não sabe o que fazer. Tem obrigação de devolver os trinta mil francos se não casar com Albertine. E, se casar, seria preciso, ao menos para manter as aparências, que ela voltasse logo, pois se a fuga se prolongasse daria muito má impressão." Achas que parece inventado? 

- Absolutamente. - respondeu Saint-Loup por bondade, por discrição e, além disso, porque sabia que as circunstâncias são freqüentemente mais estranhas do que julgamos. Afinal de contas, havia alguma possibilidade de que, nessa história de trinta mil francos, houvesse, conforme eu lhe dizia, uma boa dose de verdade. Era possível, mas não era verdadeiro, e essa parte de verdade era precisamente uma mentira. Porém nós nos mentíamos, Robert e eu, como em todas as conversas em que um amigo deseja sinceramente auxiliar o outro, que se acha entregue a um desespero amoroso. O amigo conselheiro, apoio, consolo, pode lastimar a aflição do outro, mas não experimentá-la, e, quanto melhor for para o outro, mais lhe mentirá. E o outro lhe confessa o que for necessário para ser ajudado; mas, talvez justamente para ser ajudado, oculta muitas coisas. E o feliz, afinal, é aquele que faz o trabalho, que realiza uma viagem, cumpre uma missão, mas que não sofre interiormente. Eu era naquele momento o que havia sido Robert, em Doncieres, quando era abandonado por Rachel.

- Enfim, seja como quiseres; se receber um insulto, de antemão por ti. E depois, não interessa que isto me pareça um tanto divertido, esse comércio tão pouco disfarçado, sei perfeitamente que no nosso mundo tem duquesas, e até das mais beatas, que, por trinta mil francos, fariam coisas complicadas do que dizer às sobrinhas que não fiquem na Touraine. Enfim, duplamente satisfeito por te prestar um serviço, já que é necessário isto para que consintas em me ver. Se eu me casar - acrescentou -, será que não nos veremos mais, será que não farás da minha casa um pouco a tua?... -

Interrompeu de súbito, tendo pensado, conforme supus então, que, seu eu também me casasse com Albertine não poderia ser, para a sua mulher, uma relação muito chegada. Ele me lembrou o que os Cambremer me haviam falado sobre o seu provável casamento com a filha do príncipe de Guermantes. 

Tendo consultado o indicador, vi que Robert só poderia partir à noite. Françoise me perguntou:

- É preciso tirar a cama da Srta. Albertine do gabinete de trabalho? 

- Pelo contrário - retorqui -, é preciso fazê-la. - 

Eu esperava que Albertine voltasse a qualquer momento e, além disso, não desejava que Françoise pensasse haver alguma dúvida a respeito. Era preciso que a partida de Albertine parecesse uma coisa combinada entre nós dois, coisa que de modo algum significasse que ela me amava menos. Mas Françoise me olhou com um ar, se não de incredulidade pelo menos de dúvida. Ela também tinha suas duas hipóteses. Suas narinas dilatavam, ela farejava a briga, devia senti-la há muito tempo. E, se não estava absolutamente segura disso, era talvez só porque, como eu, evitava crer inteiramente naquilo que lhe teria dado imenso prazer. Agora, o peso do assunto já não remoía no meu espírito esgotado, mas em Saint-Loup. Uma alegria me penetrava porque tomara uma decisão, porque dizia comigo: "respondi taco a taco, fui enérgico.”


continua na página 14...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
Volume 6
A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - c)


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