quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Gupeva - III (Muitas luas se hão passado)

Maria Firmina dos Reis


Gupeva

III 


— Muitas luas se hão passado, mancebo, – continuou o cacique, em voz magoada, – muitas luas já, e tantas que nem vos sei dizer. Era uma tarde, bela como foi a de hoje; mais bela talvez, porque era então a lua das flores, e eu dela me recordo como se fora hoje...

   Sim, era uma tarde de enlevadora beleza; nela havia sedução, e poesia, nela havia amor, e saudade. Sabeis vós o que nós outros chamamos – lua das flores? É aquela em que um sol brando, e animador, rompendo as nuvens já menos densas, vem beijar os prados, que se aveludam, enamorar a flor, que se adorna de louçanias, vivificar os campos, que se revestem de primoroso ornato, afagar o homem, que se deleita com a beleza da natureza. É a lua em que os pássaros afinam seus cantos melodiosos, é a lua em que a cecém mimosa embalsama as margens dos nossos rios, em que as campinas se esmaltam de flores odorosas, em que o coração ama, em que a vida é mais suave, em que o homem é mais reconhecido ao seu Criador...
   Ele fez uma pequena pausa e continuou:

— Era pois na lua das flores, que à tarde um velho cacique e um mancebo índio, do cume deste mesmo outeiro, lançavam um olhar de saudosa despedida, sobre o navio normando, que levava destas praias uma formosa donzela. Era ela filha desse velho cacique, que com mágoa a via partir para as terras da Europa; mas a formosa Paraguaçu de há muito a havia distinguido entre as demais filhas de caciques; e sua afeição por ela era sincera, e imensa. Paraguaçu seguia para a França, onde devia receber o batismo, tomando por sua madrinha a célebre italiana, Catarina de Médicis, cujo nome tomou na pia batismal, e não podendo separar-se da amiga querida, levava-a consigo, arrancando-a dessarte ao coração de seu pai, e aos sonhos deleitosos do moço índio, que magoado via fugir-lhe a mulher de suas afeições. Épica, Sr., chamava-se essa jovem índia. Épica era o seu nome. A sua ausência não seria prolongada, o velho e o moço não o ignoravam; mas eles a amavam tanto, que foi-lhes preciso chorar. Seria um pressentimento a dor que os afligia? Foi talvez... choraram ambos: entretanto, o velho era um bravo, e o moço já um valente guerreiro.

   Ela, entanto, só concebia a dor do velho, as saudades paternas agravavam mais a mágoa. Seu coração ainda virgem desconhecia as delícias e as torturas do amor. O índio, pois, era-lhe indiferente, se é que indiferente se pode entender um homem que estava sempre a seu lado, e que tinha em suas veias o sangue de seu pai. Este mancebo índio era filho de um irmão do velho cacique, e seu íntimo amigo. Destinado desde a infância para esposo de Paraguaçu, este mancebo nunca pôde amar, nem tampouco inspirar-lhe amor. Entretanto Paraguaçu era bela! Ele amava perdidamente sua jovem parenta: Épica era mulher de suas doidas afeições, porém esse amor puro como a luz da estrela da manhã estava todo cuidadosamente guardado no santuário do seu coração; uma palavra, um gesto, não havia maculado ainda a pureza desse sentir mágico, e deleitoso. Épica era pura e inocente como a pomba que geme na floresta, seu coração conservava ainda o descuido enlevador dos dias da infância. Oh! Ela era como a açucena à margem do regato...
   O velho cacique atentou nas lágrimas do guerreiro jovem; e num transporte afetuoso, apertando-o contra seu coração, apontando para o extremo do horizonte, onde se perdia já o navio, disse-lhe:

— Sê sempre digno de mim, e de teu pai: quando ela voltar será tua. Oh! O juro.

   O moço ajoelhou-se aos pés do irmão de seu pai, e beijou-lhe as mãos com o entusiasmo do reconhecimento...

— França! França!... – exclamou o tupinambá depois de alguns momentos de amargurado silêncio – pudera eu esmagar-te em meus braços!!!

— Passaram vinte e quatro luas, – continuou serenando-se um pouco, – o mancebo as contara por séculos. Ao fim de cada dia vinha ele ao cimo deste outeiro, e daqui perscrutava os mares nus duma vela que viesse lá das partes do ocidente e, quando caía a noite, volvia triste e desconsolado aos lares do velho cacique. O mísero velho tinha cegado nesse curto espaço, e só da boca do mancebo esperava cada dia a nova feliz que o havia de lançar do fundo das suas trevas, no gozo da felicidade. Assim se passaram muitos dias... mais uma vez a lua veio estender seu lençol de prata sobre a superfície desta imensa baía, e confundir suas saudades às saudades do moço, que a contemplava com melancolia, e ainda assim a suspirada Épica não voltara às praias do seu país. A desesperança começava a lavrar no coração do moço guerreiro. O velho sentia maiores saudades; porém esperava com mais paciência.

   Um dia, porém, um navio alvejou ao longe; era ela; seu coração estremeceu de íntima satisfação; no coração do velho cacique o transporte não foi mais vivo. Seus olhos a viram ainda assim; ele mal podia acreditar em tanta ventura. Esse navio tão ansiosamente esperado chegara enfim, e com ele a vida, a felicidade do mancebo. Ao menos assim o acreditava ele, louco de alegria. O anjo dos seus sonhos, o encanto dos seus dias, o ídolo do seu coração, esse navio lhe acaba de restituir. O velho, tateando as trevas de sua noite eterna, correu pela mão do mancebo ao encontro da filha. Era um espetáculo bem tocante ver esse velho guerreiro chorar, e rir de prazer, com a ideia de tornar a abraçar aquela filha mimosa, que tocando-a, jamais a tornaria a ver. Épica, a jovem índia, trajava ricos vestidos à europeia. Apertava-lhe a cintura delgada, e flexível, como a palmeira do deserto, um cinto negro de veludo, e as amplas dobras do seu vestido branco envolviam-lhe o corpo mimoso, delgado, como a haste da açucena à beira-rio. As tranças negras do azeviche, que lhe molduravam as faces aveludadas, eram aqui e ali entremeadas de flores artificiais. Era todo artifício aquele trajar até então desconhecido do moço índio; ele sentiu repugnância em ver aquela, que era tão simples no meio da solidão, ornar-se agora de trajes, que faziam desmerecer sua beleza, e seus encantos...

 — Paraguaçu, de volta a sua pátria, – continuou o cacique após breve pausa, – parecia sentir na alma os efeitos desse inexprimível sentimento de suprema felicidade, que deleita, e enlouquece o infeliz proscrito, no dia em que, inda que com as vestes despedaçadas, e a fronte cuspida pelas vagas, uma delas, mais benéfica, o arremessa à praia, onde seus olhos viram a primeira vez a luz. Trazia nos lábios um sorriso, que levava facilmente a compreender o prazer que lhe enchia o coração. Pela mão dessa bela princesa, seguia, débil e abatida, melancólica e desconsolada, a jovem donzela brasiliense. Semelhava ela o lírio, crestado pela ardentia da calma; borboleta, que a luz da vela emurcheceu as asas.
 
   Contraste doloroso havia entre a fronte pálida e abatida da moça índia, e a fronte altiva, e risonha da jovem esposa de Caramuru.

— Perdoai-me, continuou o cacique, se insisto nestas particularidades; o que me resta a contar provar-vos-á que elas não são aqui inúteis.

   Um vago, mas doído pensamento, magoou o coração do moço guerreiro, à hora em que essa mulher, que há muito ele criara seu ídolo, lhe aparecia assim melancólica, e triste como a estátua do sofrimento. Que terá ela? Interrogava ele a si mesmo. Terá saudades desse país longínquo, que apenas viu, onde não pode contar um amigo, onde tudo lhe é estranho, linguagem, costumes, rostos e religião?!...
   Enquanto ele assim discorria, a moça aproximou-se de seu pai, e sorrindo-se por entre lágrimas, estreitou-o com ternura filial contra o coração. Foi um prolongado abraço: um profundo suspiro lhe rasgou o peito; e uma só palavra ela não proferiu. E tornava a apertar o velho; e as lágrimas lhe corriam pelas faces; e a moça parecia não se poder separar do pai, que chorava de alegria, sentindo-se abraçar por sua filha querida.
   Com indizível ansiedade aguardava o mancebo por uma só palavra da sua querida Épica; mas embalde. Ela parecia toda abstrata, não na contemplação de seu pai, mas numa ideia oculta, que dir-se-ia lhe amargurava a alma. Mas ele, vencendo o pensamento doloroso, que lhe atravessara a mente, aproximando-se dela, em voz de súplica, disse-lhe:

— Épica! Épica, nem uma palavra para o vosso irmão?... – Errou-lhe então nos lábios um mimoso sorriso, duas lágrimas ressaltaram-lhe dos olhos, e rolaram sobre as faces, e ela estendeu-lhe a mão amiga, que o moço beijou com reconhecimento. Essa mão, esse beijo, desfizeram o ponto negro, que assomara de improviso na alma do guerreiro brasiliense, como desfaz o vento a nuvem carregada à hora do meio-dia. Só o extremo do seu amor lhe representara Épica triste, pálida, e desconcertada. Épica era a mesma virgem das florestas, com a diferença única de uma inteligência cultivada pelo trato europeu. Esses trajes, que tanto haviam afligido ao mancebo, davam agora maior realce à beleza daquela que lhe sorria. Sua voz era mais melodiosa, mais doce, pareceu-lhe, ouvindo-a, melhor que a do sabiá, melhor que as notas da perdiz mimosa, que a própria pecuapá gemendo à noite. Ele acreditou que Tupã lhe havia arrebatado um instante para lhe restituir mais sedutora, mais bela, que os próprios anjos que lhe entoam hinos. O índio escutava com enlevo; e cada uma de suas palavras causava-lhe suavíssima impressão. Como Paraguaçu, Épica havia recebido o batismo. Conquanto a jovem princesa do Brasil não poupasse esforços em chamar os homens do seu país ao grêmio da igreja; conquanto sua voz fosse persuasiva, suas palavras insinuantes; todavia foi a voz de Épica que rendeu o moço índio. Ele abraçou o cristianismo, quando soube que Épica era cristã. Oh! Mancebo, – murmurou o tupinambá, – quanto pode o amor, quando ele é santo, como o que há no céu!...

   Raiou enfim o dia, em que a donzela brasiliense devia pertencer pelo matrimônio ao homem, que a idolatrava; e ele a levou pela mão aos pés do altar; e um sacerdote cristão abençoou os noivos que estavam ajoelhados, à face de grande multidão. À hora, porém em que Épica pronunciava os votos, a voz alterou-se-lhe; sua mão resfriada estremeceu convulsa na mão do esposo. Ele olhou-a surpreso. Épica era pálida como um cadáver. À última palavra do sacerdote, a moça caiu desalentada.
   O tupinambá levantou-se, deu alguns passos rápidos, e incertos. Fulguram-lhe os olhos na escuridão da noite, e um tremor convulso lhe agitou os beiços. Depois foi pouco, e pouco serenando, e reatou o fio de sua narração.

continua na página (166)162...
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Gupeva - III (Muitas luas se hão passado)
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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