quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (Combray, de longe - c)

em busca do tempo perdido

volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust



combray


II(c) 

continuando...

   Enquanto minha tia assim conversava com Françoise, eu acompanhava meus pais à missa. A nossa igreja, como eu a amava, que bem a vejo agora! O velho pórtico por onde entrávamos, negro, bexigoso como uma espumadeira, estava como desviado e cavado profundamente nos ângulos (da mesma forma que a pia de água-benta aonde nos conduzia), como se o leve roçar dos mantos das camponesas ao entrar na igreja e de seus dedos tímidos ao tomar água-benta pudesse, repetido durante séculos, adquirir uma força destrutiva, curvar a pedra e talhá-la de sulcos como os traça a roda dos carros no marco onde bate todos os dias. Suas pedras tumulares, debaixo das quais o nobre pó dos abades de Combray, ali enterrado, dava ao coro um como pavimento espiritual, já não eram tampouco matéria inerte e dura, pois o tempo as abrandara, fazendo-as escorrer, como um mel, além dos limites de sua própria esquadria, que aqui haviam ultrapassado em dourada onda, arrastando à deriva uma florida maiúscula gótica, afogando as violetas brancas do mármore; ou então se reabsorviam, em outras partes, contraindo ainda mais a elíptica inscrição latina, introduzindo mais um capricho na disposição dos caracteres abreviados, aproximando duas letras de uma palavra enquanto separavam desmesuradamente as restantes. Os seus vitrais nunca se irisavam tanto como nos dias de pouco sol, de sorte que, por sombrio que estivesse lá fora, tinha-se certeza de que fazia bom tempo na igreja; havia um, ocupado em todo o seu tamanho por uma única personagem semelhante a um rei de jogo de cartas, que vivia lá no alto, sob um dossel arquitetônico, entre o céu e a terra (e em cujo reflexo oblíquo e azul, às vezes, nos dias de semana, ao meio-dia, quando não havia ofício religioso — em um desses raros momentos em que a igreja, arejada, vazia, mais humana, luxuosa, com o sol sobre seu rico mobiliário, tinha um ar quase habitável, como o hall de pedra esculpida e de vidro pintado, de um hotel de estilo medieval —, via-se ajoelhar-se por um instante a sra. Sazerat, colocando em um genuflexório ao lado um embrulho bem amarrado de bolinhos que acabara de comprar na pastelaria em frente e que ia levar para o almoço); em outro vitral uma montanha de neve rósea, a cujo pé se travava um combate, parecia haver gelado o próprio vidro ao qual empolava com seu turvo granizo, como uma vidraça onde quedassem flocos alumiados por alguma aurora (pela mesma aurora sem dúvida que purpureava o retábulo do altar de uns tons tão frescos que antes pareciam postos ali momentaneamente por uma claridade vinda de fora e prestes a esvair-se do que pelas cores aderidas para sempre às pedras); e eram todos tão antigos que se via aqui e ali sua velhice argentada fulgurar dentre a poeira dos séculos e patentear, brilhante e gasta até o fio, a trama de sua suave tapeçaria de vidro. Havia um que era um alto compartimento dividido em uma centena de pequenos vitrais retangulares onde dominava o azul, como um grande jogo de cartas semelhante àqueles que deviam distrair o rei Carlos VI;[1] mas, ou porque houvesse brilhado um raio de sol, ou porque meu olhar, movendo-se, passeasse ao longo do vitral, que se apagava e reacendia, um movediço e precioso incêndio, logo após tomava ele o esplendor mutável de uma cauda de pavão, depois tremia e ondulava em uma flamejante e fantástica chuva que gotejava do alto da abóbada sombria e rochosa ao longo das paredes úmidas, como se eu seguisse meus pais, que levavam seu livro de orações, não por uma igreja, mas pela nave de alguma gruta irisada de sinuosas estalactites; um instante depois, os pequenos vitrais em losango tinham tomado a transparência profunda, a infrangível dureza de safiras que tivessem sido justapostas sobre algum imenso peitoral, mas por trás das quais se sentisse, mais amado que todas essas riquezas, um sorriso momentâneo de sol; e esse sorriso era tão reconhecível na onda azul e suave com que banhava as pedrarias como sobre as pedras da praça ou a palha do mercado; e, mesmo nos primeiros domingos quando chegávamos antes da Páscoa, ele me consolava de que a terra estivesse ainda nua e negra, distendendo, como em uma primavera histórica e que datasse dos sucessores de são Luís, aquele dourado e ofuscante tapete de miosótis de vidro.
   Duas tapeçarias de trama vertical representavam a coroação de Ester (a tradição emprestava a Assuero os traços de um rei de França e a Ester os de uma dama de Guermantes, de quem estava enamorado); suas cores se haviam fundido, acrescentando às figuras uma expressão, um relevo, uma iluminação peculiar: um pouco de cor-de-rosa flutuava nos lábios de Ester além do desenho de seu contorno, o amarelo de seu vestido se espalhava tão untuosamente, tão plenamente, que este adquiria uma espécie de consistência e se salientava vivamente por sobre a atmosfera recuada; e a verdura das árvores que permanecia viva na parte baixa do painel de seda e lá, mas que estava “passada” no alto, fazia destacarem-se em um tom mais pálido, acima dos troncos escuros, os altos ramos amarelecidos, dourados e como que meio apagados pela brusca e oblíqua iluminação de um sol invisível. Tudo aquilo e mais ainda os objetos preciosos, oriundos de personagens que para mim eram quase personagens de lenda (a cruz de ouro trabalhada, dizia-se, por santo Elói e doada por Dagoberto,[2] o túmulo dos filhos de Luís, o Germânico, de pórfiro e de cobre esmaltado[3]) e por causa das quais eu avançava pela igreja, quando nos dirigíamos a nossos lugares, como por um vale visitado pelas fadas, onde o campônio se maravilha de ver em um rochedo, em uma árvore, em um pântano o rastro palpável de sua passagem sobrenatural; tudo aquilo fazia da igreja, para mim, alguma coisa de inteiramente diverso do resto da cidade: um edifício que ocupava, por assim dizer, um espaço de quatro dimensões — a quarta era a do Tempo — e impelia através dos séculos sua nave que, de abóbada em abóbada, de capela em capela, parecia vencer e transpor não simplesmente alguns metros, mas épocas sucessivas de onde saía triunfante; que escondia na espessura de suas paredes o rude e feroz século xi, o qual apenas se entremostrava, com seus pesados arcos de abóbada, tapados e escurecidos por grosseiros silhares, na profunda cavidade que a escada do campanário abria junto do pórtico, e, ainda assim, dissimulado pelas graciosas arcadas góticas, que se alinhavam gentilmente diante dele, como irmãs mais velhas se colocam a sorrir diante de um irmãozinho rústico, rezingão e malvestido, para ocultá-lo aos estranhos; que elevava no céu, acima da praça, sua torre que contemplara são Luís e parecia ainda vê-lo; e que mergulhava com sua cripta em uma noite merovíngia,[4] por onde Teodoro e sua irmã, guiando-nos às apalpadelas sob a abóbada escura e fortemente nervada como a membrana de um imenso morcego de pedra, iam-nos alumiar com uma vela o túmulo da neta de Sigiberto, em cuja laje havia uma profunda amolgadura — como o rastro de um fóssil — e que fora cavada, diziam, “por uma lâmpada de cristal que, na noite do assassinato da princesa franca, se desprendera das correntes de ouro a que estava suspensa no lugar que ocupa hoje a abside, e, sem que o vidro se quebrasse, sem que a chama se extinguisse, afundara na pedra, fazendo-a ceder molemente sob seu peso”.[5]
   E a abside da igreja de Combray, acaso se poderá falar a seu respeito? Tão grosseira era, tão destituída de beleza artística e até de inspiração religiosa! Por fora, como o solo em que assentava fosse em declive, seu rude muro se erguia de um embasamento de silhares toscos, eriçados de pedras, e que nada tinha de particularmente eclesiástico; as janelas dos vitrais pareciam estar a demasiada altura, e o conjunto mais se assemelhava a um muro de cárcere que de igreja. E por certo, mais tarde, ao lembrar-me de todas as gloriosas absides que já vira, jamais me ocorreria comparar com elas a abside de Combray. Apenas, um dia, na virada de uma rua provinciana, descobri, defronte ao cruzamento de três ruelas, uma parede malfeita e muito elevada, de janelas abertas no alto, com o mesmo aspecto assimétrico da abside de Combray. Então não me admirei, como em Chartres ou em Reims, da pujança com que ali fora expresso o sentimento religioso, mas involuntariamente exclamei: “A igreja!”.
   A igreja! Familiar, parede-meia, na rua de Santo Hilário, para onde dava sua porta setentrional, com suas duas vizinhas, a farmácia do sr. Rapin e a casa da sra. Loiseau, nas quais tocava sem nenhuma separação: simples cidadã de Combray, que poderia ter seu número na rua, se as ruas de Combray tivessem números, e onde, parece, o carteiro deveria parar de manhã, ao fazer a distribuição, antes de entrar na casa da sra. Loiseau e depois de sair da farmácia do sr. Rapin; havia no entanto, entre ela e tudo que não fosse ela, uma demarcação que meu espírito jamais conseguiu franquear. Embalde a sra. Loiseau cultivava na janela umas fúcsias que tinham o mau costume de deixar seus ramos correrem às cegas por toda parte, e cujas folhas não tinham nada mais urgente que fazer, quando já crescidas, do que refrescar as faces roxas e congestionadas contra a sombria fachada da igreja: nem por isso aquelas fúcsias se tornaram mais sagradas para mim; entre as flores e as pedras enegrecidas a que se apoiavam, se meus olhos não distinguiam intervalo, meu espírito adivinhava um abismo.
   Desde muito longe já se reconhecia a torre de Santo Hilário, que imprimia seu vulto inesquecível no horizonte onde ainda não assomava Combray; na semana da Páscoa, quando meu pai avistava, do trem que nos trazia de Paris, aquela torre que deslizava por todos os campos do céu, fazendo correr em todos os sentidos seu pequeno galo de ferro, logo ia nos dizendo: “Andem, recolham as capas, que já chegamos”. E em um dos maiores passeios que dávamos em Combray, havia um trecho em que o estreito caminho desembocava de súbito em um imenso planalto delimitado no horizonte pelo recorte irregular de uns bosques, atrás dos quais somente emergia a fina agulha da torre de Santo Hilário, mas tão sutil, tão rósea, que parecia apenas riscada a unha sobre o céu, no intento de dar àquela paisagem, àquele quadro que era só natureza, esse pequenino toque de arte, essa única indicação humana. Quando a gente se aproximava e podia perceber o resto da torre quadrada e meio derruída que, menos alta que a do campanário, ainda subsistia a seu lado, impressionava, antes de tudo, o tom sombrio e avermelhado das pedras; e, por uma brumosa manhã de outono, dir-se-ia, elevando-se acima do roxo tempestuoso dos vinhedos, uma ruína de púrpura quase da cor da vinha virgem.
   Muitas vezes, na praça, de volta do passeio, minha avó me fazia parar para olhar o campanário.[6] Das janelas de sua torre, colocadas de duas em duas, umas acima das outras, com essa justa e original proporção das distâncias que não só aos rostos humanos empresta beleza e dignidade, o campanário soltava, deixava tombar, a intervalos regulares, revoadas de corvos que, durante um momento, voejavam grasnando, como se as velhas pedras que os deixavam à vontade sem dar mostras de vê-los, tornando-se de súbito inabitáveis e descarregando um elemento de agitação infinita, os tivessem batido e escorraçado. Afinal, depois de haverem riscado em todos os sentidos o veludo violáceo do céu crepuscular, logo se acalmavam e voltavam a absorver-se na torre, que passava de nefasta a propícia, e alguns, pousados aqui e ali, na ponta de um ornato, pareciam imóveis quando talvez estivessem apanhando um inseto, como uma gaivota parada com a imobilidade de um pescador na crista de uma vaga. Sem saber bem por que, minha avó apreciava na torre de Santo Hilário essa ausência de vulgaridade, de pretensão, de mesquinharia que a levava a estimar, e considerar pródigas de benéfica influência, tanto a natureza, sempre que a mão do homem não a tivesse apoucado, como o fazia o jardineiro de minha tia-avó, como as obras de gênio. E, sem dúvida, qualquer parte da igreja a distinguia de qualquer outro edifício por uma espécie de pensamento que lhe era infuso, mas no campanário é que ela parecia tomar consciência de si mesma, afirmar uma existência individual e responsável. Ele é que falava por ela. Creio que, confusamente, minha avó achava no campanário de Combray aquilo que tinha mais valor no mundo para ela: naturalidade e distinção. Ignorante em arquitetura, dizia: “Meus filhos, podem rir-se de mim, essa torre talvez não esteja dentro das regras, mas agrada-me esse seu velho ar esquisito. Se ela tocasse piano, estou certa de que não tocaria sem alma”. E enquanto fitava o campanário, seguindo com os olhos a suave tensão, a inclinação fervorosa de suas vertentes de pedra que se aproximavam, elevando-se, como mãos postas em prece, de tal modo se associava ela à efusão da agulha que seu olhar parecia lançar-se com esta para o alto; e ao mesmo tempo sorria amistosamente para as velhas pedras gastas, que o poente agora alumiava apenas no cimo e que, desde o momento em que entravam nessa zona ensolarada, abrandadas pela luz, pareciam erguer-se muito além, mais para cima, como um canto reiniciado em voz aguda, uma oitava mais alto.
   Era o campanário que dava a todas as ocupações, a todas as horas, a todos os pontos de mira da cidade, seu aspecto, seu remate, sua consagração. De meu quarto, eu só podia avistar-lhe a base, que fora recoberta de ardósias; mas quando, no domingo, por uma quente manhã de verão, via-as flamejar como um sol negro, logo dizia comigo: “Meu Deus! Nove horas! Tenho de me preparar para a missa, se quero ter tempo de ir dar antes um beijo na tia Léonie”, e sabia exatamente a cor que tinha o sol na praça, o calor e a poeira do mercado, a sombra que projetava o toldo da loja onde mamãe entraria talvez, antes da missa, em meio àquele cheiro peculiar de pano cru, para comprar algum lenço que lhe mostrava o patrão mesureiro, o qual, preparando-se para fechar, viera dos fundos da casa, onde fora envergar seu traje domingueiro e lavar as mãos, que costumava esfregar uma na outra a cada cinco minutos até nas circunstâncias mais melancólicas, com um ar de audácia, de esperteza e de triunfo.
   Quando, após a missa, entrávamos para dizer a Théodore que nos levasse um brioche maior que de costume, porque nossos primos tinham aproveitado o bom tempo para vir de Thiberzy almoçar conosco, tínhamos diante de nós o campanário que, também dourado e cozido como um enorme bolo bento, com escamas e gomosos borrifos de sol, espetava sua aguda ponta no céu azul. E à tarde, quando eu voltava do passeio, já pensando no próximo momento em que teria de dar boa-noite a minha mãe e não mais a ver, mostrava-se o campanário tão suave, ao findar do dia, que parecia colocado e afundado, como um almofadão de veludo escuro, no céu esmaecido que cedera sob sua pressão, cavando-se levemente para lhe dar espaço e refluindo nas bordas; e os gritos dos pássaros que lhe revoavam em torno pareciam aumentar seu silêncio, imprimir mais impulso a sua agulha e dar-lhe qualquer coisa de inefável.

continua na página 56...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, de longe - c)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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[1] Rei francês, no período de 1380 a 1422. Imaginava-se, no século xix, que um jogo de cartas de tarô italiano, pintado à mão, teria sido feito para divertir o rei. A ópera de Fromenthal Halévy intitulada Charles vi, representada em 1842, data da publicação de trabalhos sobre a questão. [n. e.]
[2] Santo Elói, padroeiro da ourivesaria, tesoureiro e conselheiro de Dagoberto i (600- 38). Proust parece aludir à cruz de ouro que desapareceu da basílica de Saint-Denis durante a Revolução, cruz que seu amigo Émile Mâle, em seu livro L’Art religieux du xiii e siècle en France, acreditava ser “um dos mais preciosos monumentos não apenas da arte mas do pensamento religioso da Idade Média”. [n. e.]
[3] Louis ii, o Germânico, era neto de Carlos Magno (c. 804-76). Dois de seus três filhos revoltaram-se contra ele por ter favorecido o filho mais velho na divisão do reino. Proust consulta passagens do Dictionnaire raisonné de l’architecture française du xi e au xvi e siècle, do tantas vezes citado e discutido Viollet-le-Duc, em particular os itens “Relicário”, “Túmulo” e “Vitral”. [n. e.]
[4] Primeira dinastia de reis francos, iniciada por Mérovée (morto em 458) e terminada em 751 com a deposição de Chilpéric iii por Pepino, o Breve, filho de Carlos Martel, que funda a dinastia carolíngia. [n. e.]
[5] Citação aproximada, extraída do livro Récits des temps mérovingiens, de Augustin Thiéry (1840). [n. e.]
[6] A esse contato muito íntimo com a igreja de Combray se oporá sua destruição durante a Primeira Guerra Mundial, mencionada no último volume do livro. [n. e.]

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