domingo, 7 de janeiro de 2024

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (55)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1

1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas


SEGUNDA PARTE

LIV – A SRA. GASTÃO À CONDESSA DE L’ESTORADE

25 de maio

   No dia seguinte, cerca das seis horas, vesti meu traje de montar e, às sete horas, apresentei-me no estabelecimento de Verdier, onde vi várias chibatas do mesmo modelo. Um caixeiro reconheceu a minha que lhe mostrei. 

— Nós a vendemos ontem a um moço — disse-me. 

   E, ante a descrição que lhe fiz do meu tratante Gastão, não houve mais dúvida. Poupo-te as palpitações de coração que me despedaçaram o peito ao ir a Paris e durante essa pequena cena em que se decidia a minha vida. De volta, às sete e meia, Gastão encontrou-me, pimpona, em toilette matinal, passeando com uma enganadora despreocupação, e certa de que nada traíra a minha ausência, em cujo segredo eu só pusera o meu velho Felipe. 

— Gastão — disse-lhe eu, enquanto caminhávamos à margem do açude —, conheço a diferença que existe entre uma obra de arte única, feita com amor para uma única pessoa, e a que sai de um molde. 

   Gastão empalideceu e olhou para mim, que lhe apresentava a terrível peça de convicção. 

— Meu amigo — disse-lhe —, não é um chicote, e sim um biombo por trás do qual você oculta um segredo. 

   Ai, querida, concedi-me o prazer de vê-lo enredar-se nas sendas da mentira e nos labirintos dos enganos, sem deles poder sair e desenvolvendo uma arte prodigiosa para tentar encontrar um muro que pudesse transpor, mas forçado a permanecer na arena diante de um adversário, que consentiu afinal em se deixar iludir. Essa complacência sobreveio muito tarde, como sempre acontece nessa espécie de cena. Aliás eu cometera o erro contra o qual minha mãe tentara premunir-me. Ao mostrar-se a nu, meu ciúme estabelecia o estado de guerra, com seus estratagemas, entre mim e Gastão. O ciúme, querida, é essencialmente estúpido e brutal. A mim mesma prometi, então, sofrer em silêncio, tudo espionar, adquirir uma certeza e romper com Gastão, ou senão conformar-me com a minha desgraça: para uma mulher bem-educada não há outro procedimento. Que me oculta ele? Pois é certo que me oculta um segredo. Esse segredo concerne a uma mulher. Será uma aventura da mocidade da qual se envergonha? Que será? Esse Que será, querida, está gravado em letras de fogo sobre todas as coisas. Leio essas fatais palavras ao olhar o espelho de meu açude, através dos meus bosquetes, nas nuvens do céu, nos tetos, na mesa, nas flores de meus tapetes. No meio do meu sono uma voz me brada: “Que será?”. A partir dessa manhã houve em nossa vida um interesse cruel, e conheci o mais acre dentre os pensamentos que possam corroer o nosso coração: pertencer a um homem que julgamos infiel. Oh! Minha querida, esta vida participa do inferno e do paraíso. Eu ainda não pousara o pé nessa fornalha, eu, que até então fora tão santamente adorada. 

— Ah! Desejavas um dia penetrar nos sombrios e ardentes palácios do sofrimento? — a mim mesma dizia. — Pois bem, os demônios ouviram o teu voto fatal: marcha, desgraçada! 



30 de maio

   Desde esse dia, Gastão, em vez de trabalhar frouxamente e com a despreocupação do artista rico, que burila sua obra, entrega-se à tarefa como o escritor que vive da pena. Emprega, todos os dias, quatro horas para terminar duas peças de teatro.

— Está precisando de dinheiro!

   Esse pensamento me foi sussurrado por uma voz interior. Ele não gasta quase nada; e, como vivemos em absoluta confiança, não existe um cantinho de seu gabinete que meus olhos e meus dedos não possam revistar; sua despesa por ano não vai a dois mil francos, sei de trinta mil francos que estão menos amontoados do que guardados numa gaveta. Adivinhas-me. No meio da noite, fui durante seu sono ver se a quantia lá estava. Que arrepio glacial me percorreu o corpo ao verificar que a gaveta estava vazia! Na mesma semana, descobri que ele vai buscar cartas em Sèvres, e deve rasgá-las logo depois de as ler, porque, apesar dos meus ardis de Fígaro, não pude achar vestígios. Ai de mim! Meu anjo, apesar das minhas promessas e de todos os belos juramentos que a mim mesma fizera a respeito do chicote, um impulso da alma, que se deve classificar de loucura, impeliu-me, e eu o segui, numa das suas rápidas excursões à agência do correio. Gastão ficou aterrorizado ao se ver surpreendido a cavalo, franqueando uma carta que tinha na mão. Após ter-me olhado fixamente, pôs Fedelta a galope num movimento tão rápido que me senti exausta ao chegar à entrada do bosque, num momento em que julgava não poder sentir nenhuma fadiga corporal, de tanto que minha alma sofria! Gastão nada me disse, tocou a sineta e esperou, sem falar-me. Eu estava mais morta do que viva. Ou tinha razão ou estava em erro; mas, nos dois casos, minha espionagem era indigna de Armanda Luísa Maria de Chaulieu. Chafurdava no lodo social, abaixo da grisette, da rapariga mal-educada, lado a lado com as cortesãs, as atrizes, as criaturas sem educação. Que sofrimento! Finalmente a porta se abriu, ele entregou a égua ao groom, e eu também desci, mas nos seus braços que ele me estendia; sustentando minha amazona no braço esquerdo, dei-lhe o braço direito e seguimos... sempre silenciosos. Os cem passos que demos assim podem ser contados para mim como cem anos de purgatório. A cada passo, milhares de pensamentos, quase visíveis, volteavam como línguas de fogo sob meus olhos, saltavam sobre minha alma, tendo cada qual um dardo, um espinho, um veneno diferente! Quando o groom e os cavalos estiveram afastados, detive Gastão, olhei-o e, com um movimento que deves adivinhar, disse-lhe, apontando para a fatal carta que ele continuava a segurar:

— Deixas que eu a leia?

Ele deu-me, eu a abri e li uma carta na qual Nathan,[1] o autor dramático, lhe dizia que uma das nossas peças, aceita, estudada e ensaiada, ia ser representada no próximo sábado. A carta continha uma senha de camarote. Embora para mim aquilo fosse subir do martírio ao céu, o demônio gritava-me sempre para perturbar minha alegria: “Onde estão os trinta mil francos?”. E a dignidade, a honra, todo o meu antigo eu impediam-me de fazer uma pergunta; tinha-a nos lábios; sabia que se meu pensamento se concretizasse em palavras, seria de atirar-me no açude, e dificilmente resistia ao desejo de falar. Querida, não ultrapassavam meus sofrimentos as forças de uma mulher?

— Tu te aborreces, meu pobre Gastão — disse, ao lhe restituir a carta. — Se queres, iremos para Paris.

— Para Paris, por quê? — perguntou. — Eu quis saber se tinha talento e provar o ponche do triunfo!

   No momento em que ele estiver trabalhando, poderei fingir espanto, ao remexer na gaveta sem achar os trinta mil francos; mas não é isso provocar a resposta: “Emprestei a um amigo”, que um homem de espírito como Gastão não deixará de dar?
   Minha querida, a moral de tudo isso é que o belo sucesso da peça a que toda Paris acorre neste momento é devido a nós, embora Nathan recolha todas as glórias. Sou uma das duas estrelas dessa palavras: E os Srs.**. Vi a primeira representação, escondida no fundo de um camarote do proscênio, na primeira fila.


1° de julho

   Gastão continua trabalhando e vai sempre a Paris; ele trabalha em novas peças para ter o pretexto de ir a Paris e ganhar dinheiro. Temos três peças aceitas e mais duas pedidas. Oh! Querida, estou perdida, movo-me nas trevas. Incendiaria minha casa para ver claro. Que significa semelhante procedimento? Terá ele vergonha de ter recebido a fortuna de mim? Ele tem a alma demasiado grande para preocupar-se com essa tolice. De resto, quando um homem começa a ter desses escrúpulos, é que estes lhe são inspirados por um interesse sentimental. Aceita-se tudo da esposa, mas nada se quer dever à mulher que se cogita abandonar e a quem não mais se ama. Se ele quer tanto dinheiro, é que sem dúvida precisa gastá-lo com uma mulher. Se se tratasse dele, não iria ele buscá-lo sem cerimônia na minha bolsa? Temos cem mil francos de economias! Enfim, minha bela corça, percorri todo o mundo das hipóteses e, tudo bem pesado, tenho certeza de ter uma rival. Ele me deixa, por quem? Quero vê-la. 


10 de julho

   Vi claro, estou perdida. Sim, Renata, aos trinta anos, em toda a glória da beleza, rica dos recursos de meu espírito, ataviada com as seduções da toilette sempre fresca e elegante, sou traída e por quem? Por uma inglesa que tem enormes pés, ossos reforçados, um peito largo, alguma vaca britânica. Não posso mais ter dúvidas. Eis o que me aconteceu nestes últimos dias.
   Cansada de duvidar, pensando que Gastão mo haveria de dizer se tivesse auxiliado algum amigo, vendo-o acusar-se por seu silêncio e solicitado para o trabalho por uma contínua sede de dinheiro, inquieta com as suas perpétuas idas a Paris, tomei as medidas do caso, e essas medidas me fizeram descer tão baixo que nada te posso dizer. Faz três dias soube que Gastão vai, nas suas idas a Paris, à rue de Ville-l’Évèque, numa casa onde seus amores são acobertados com uma discrição sem exemplo em Paris. O porteiro, nada conversador, disse pouca coisa, mas o bastante para desesperar-me. Fiz então o sacrifício de minha vida e quis unicamente saber toda a verdade. Fui a Paris, tomei um apartamento na casa que fica em frente àquela onde ia Gastão e pude vê-lo, com os meus olhos, entrando a cavalo no pátio. Oh! Tive demasiado cedo uma horrível e espantosa revelação. Aquela inglesa, que me pareceu ter trinta e seis anos, fez-se chamar de sra. Gastão. Essa descoberta foi para mim o golpe de misericórdia. Enfim, vi-a dirigir-se para as Tulherias com duas crianças... Oh! Minha querida, duas crianças que são as vivas miniaturas de Gastão. É impossível não ficar impressionado com tão escandalosa parecença... E que lindas crianças! E vestidas faustosamente como as inglesas as sabem preparar. Ela lhe deu filhos! Tudo se explica. Essa inglesa é uma espécie de estátua grega descida de algum monumento; tem a alvura e a frieza do mármore, marcha solenemente como mãe feliz. É forçoso convir que ela é bela, mas é pesada como um vaso de guerra. Nada tem de fino nem de distinto; não é certamente uma lady, deve ser filha de algum granjeiro de uma aldeia qualquer de um condado distante, ou a décima primeira filha de algum pobre pastor protestante. Voltei de Paris moribunda. No caminho, mil pensamentos me assaltaram como outros tantos demônios. Seria ela casada? Conhecia-a ele antes de me desposar? Foi ela amante de algum ricaço que a abandonou e teria voltado novamente a pesar sobre Gastão? Formulei hipóteses a não acabar mais, como se ante a evidência das crianças houvesse necessidade de suposições. No dia seguinte, voltei novamente a Paris e dei bastante dinheiro ao porteiro da casa para que à minha pergunta: “a sra. Gastão é casada legalmente?” ele me respondesse: “Sim, senhorita”.


15 de julho

   Depois dessa manhã, querida, redobrei de amor por Gastão e achei-o mais apaixonado do que nunca; ele é tão moço! Vinte vezes, ao nos levantarmos, estive a ponto de dizer-lhe: “Amas-me mais do que a essa da rue Ville-l’Évêque?”.
   Mas não me animo a explicar-me o mistério da minha abnegação.

— Gostas muito de crianças? — perguntei-lhe.

— Oh! Sim — respondeu-me. — Mas teremos filhos.

— E como?

— Consultei os mais sábios médicos, e todos me aconselharam que fizesse uma viagem de dois meses.

— Gastão — disse-lhe eu —, se pudesse amar um ausente, eu teria ficado no convento até o fim dos meus dias.

   Ele pôs-se a rir, e eu, querida, com a palavra viagem, senti-me morrer. Oh! Certamente prefiro saltar pela janela a deixar-me rolar escada abaixo, procurando reter-me de degrau em degrau. Adeus, meu anjo; tornei minha morte suave, elegante, mas infalível. Ontem fiz meu testamento. Podes agora vir visitar-me, está suspensa a proibição. Vem receber minhas despedidas. Minha morte será como minha vida, cheia de distinção e de graça: morrerei integralmente.
   Adeus, querido espírito de irmã, tu, cuja afeição não teve nem querelas, nem altos, nem baixos, e que, semelhante à uniforme claridade da lua, sempre acariciaste meu coração; não conheceste as vivacidades, mas tampouco experimentaste a venenosa amargura do amor. Viste a vida sensatamente. Adeus!

continua pág 379...
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[1] Nathan, o autor dramático: um dos personagens mais frequentemente encontrados em A comédia humana, tipo representativo da boêmia balzaquiana. Ver Uma filha de Eva, Esplendores e misérias das cortesãs etc.
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.

(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843

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