Victor Hugo - Os Miseráveis
IV — O senhor Madelaine de luto
Digamo-lo de passagem, ser cego e ser amado, é com efeito, neste mundo, onde nada é completo, uma das formas mais estranhamente esquisitas da felicidade. Ter de contínuo ao pé de si uma mulher, uma filha, uma irmã, um ser encantador, que está ali porque lhe é preciso, porque não pode passar sem ele, saber que é indispensável ao ente que lhe é necessário, poder incessantemente medir a sua afeição pelas horas que o tem na sua presença e dizer consigo: «Uma vez que me consagra todo o seu tempo é porque possuo todo o seu coração». Ver-lhe o pensamento, à falta de lhe poder ver o rosto, ter a certeza da fidelidade de uma criatura no eclipse de um mundo, pressentir o roçagar de um veseido, como se fosse um ruído de asas, ouvi-la falar, cantar, andar de um lado para outro e pensar que é o centro daquelas falas, daquele cantar, daqueles passos; manifestar a todos os instantes a sua própria atração, sentir-se tanto mais poderoso quanto mais fraco é, e torna-se na escuridão e pela escuridão, o astro em torno do qual gravita aquele anjo; poucas felicidades há no mundo iguais a esta.
A suprema felicidade da vida é a convicção de que somos amados, mas amados por nós mesmos, ou antes, a despeito de nós mesmos; esta convicção tem-na o cego. No meio da sua desdita, ser servido é ser acariciado. Falta-lhe alguma coisa? Não. Quando se conserva o amor não se perde a luz. E que amor! Um amor inteiramente formado de virtudes. Não há cegueira onde exista certeza. A alma procura às apalpadelas a alma e encontra-a. E esta alma, que tem já passado por todas as provas, é uma mulher. Quando um cego sente a mão do seu guia, é a sua; os lábios que lhe tocam a fronte, sãos os seus lábios; a respiração que sente junto de si, pertence-lhe.
Receber dela tudo, desde o culto à compaixão, não ser nunca esquecido, ter sempre o socorro da sua doce fraqueza, apoiar-se num vime inabalável, tocar com as próprias mãos a Providência e poder tomá-la nos braços! Deus palpável! Que encanto! O coração, essa celeste flor obscura, entra então em misteriosa expansão. Ninguém trocaria uma tal sombra por toda a claridade! A alma anjo está sempre ali; se acaso se afasta é para voltar de novo; desvanece-se como o sonho e reaparece como a realidade.
É certa a sua presença, quando se sente a aproximação de um calor benéfico. O coração transborda de serenidade, de alegria e de êxtase; e o cego torna-se um esplendor no meio da noite. E depois, mil cuidadozinhos, mil desvelos. Nadas que são enormes num tal vácuo como a cegueira.
Os mais inefáveis sons da voz feminina empregam-se em embalar o cego e suprem para ele o Universo desaparecido. O cego é acariciado pela alma. Não vê, mas sente-se adorado. A cegueira é um paraíso de sombras. Fora deste paraíso que Monsenhor Bemvindo passara para o outro.
No dia seguinte ao da notícia em que a sua morte foi reproduzida pelo jornal da localidade, o senhor Madelaine apresentou-se vestido de preto e com fumo no chapéu.
Aquele luto tornou-se reparado na cidade, tirando daí cada um o tema para mais ou menos acertadas conjecturas.
— Este fato parecia vir deitar um raio de luz nas sombras em que se escondia a origem do senhor Madelaine. Concluiu-se daí que tinha algumas relações de parentesco com o venerável bispo. «Anda de luto pelo bispo de Digne», dizia-se nos salões. Este fato realçou muito o senhor Madelaine, dando-lhe subitamente certa consideração entre a nobreza de Montreuil-sur-mer O microscópico bairro Saint-Germain da localidade, lembrou-se então de pôr fim à quarentena do senhor Madelaine, tornado parente provável dum bispo.
O maire notou a consideração que obtivera pelos mais frequentes cumprimentos das senhoras velhas e pelo sorriso das novas. Um dia, uma decana daquela sociedadezinha aristocrata, curiosa por direito de antiguidade, arriscou-se a perguntar-lhe:
— O senhor maire era sem dúvida primo do falecido bispo de Digne?
— Não, minha senhora — respondeu ele.
— Mas — tornou a decana — como tomou luto por ele?
— É porque na minha mocidade fui lacaio da sua família.
Havia ainda quem notasse mais uma coisa e era que, todas as vezes que pela cidade passava algum jovem saboiano, oferecendo-se para limpar as chaminés, o senhor maire mandava-o chamar, perguntava-lhe o nome e dava-lhe dinheiro. Os saboianas que por ali passavam contavam isto aos outros e resultava daqui aparecerem muitos na cidade.
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine II — O abade Myriel torna-se Monsenhor Bem-vindo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine III — A bom bispo, mau bispado
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine IV — As palavras semelhantes às obras
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine V — Como Monsenhor Bem-vindo poupava as suas batinas
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VI — Quem guardava a casa do prelado
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VII — Gravatte, o salteador
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VIII — Filosofia de sobremesa
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine IX — O caráter do irmão descrito pela irmã
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine X — O bispo em presença de uma luz desconhecida 1
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine X — O bispo em presença de uma luz desconhecida 2
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XI — Restrição
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XII — Solidão de Monsenhor Bemvindo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XIII — Quais eram as crenças do bispo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XIV — O modo de pensar de Monsenhor Bemvindo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda I — No fim de um dia de marcha
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda I — No fim de um dia de marcha (2)
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda II — A prudência aconselha a sabedoria
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda III — Heroísmo da obediência passiva
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, IV — Pormenores sobre as queijeiras de Pontarlier
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, V — Tranquilidade
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, VI — Jean Valjean
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, VII — O interior do desespero
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, VIII — A onda e a sombra
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, IX — Novos agravos
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, X — O hóspede acordado
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XI — O que ele faz
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XII — O bispo trabalha
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XIII — O pequeno Gervásio
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, I — O ano de 1817
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, II — Quatro pares
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, III — A quatro e quatro
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, IV — A alegria de Tholomyés é tão grande que até canta uma canção espanhola
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, V — Em casa de Bombarda
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VI — Capítulo consagrado ao amor
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VII — Prudência de Tholomyés
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VIII — Morte dum cavalo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, IX — Alegre fim de festa
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - Confiar é por vezes abandonar — I
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - Confiar é por vezes abandonar — II
Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)