quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - O que teríamos feito de dia... )

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes


Primeira Parte


continuando...


     O que teríamos feito de dia, ao vir o sono, efetivamente ocorre que somente o realizamos sonhando, isto é, após a inflexão do adormecimento, conforme um outro caminho, diverso do que percorreríamos despertos. A mesma história se desvia e tem outro fim. Apesar de tudo, o mundo em que se vive durante o sono é de tal modo diferente que aqueles que têm dificuldade de adormecer procuram, antes de tudo, sair do nosso. Depois de terem desesperadamente, durante horas, de olhos fechados, revolvido pensamentos semelhantes aos que teriam tido de olhos abertos, retomam coragem se perceberem que o minuto anterior esteve carregado de um raciocínio em formal contradição com as leis da lógica e a evidência do presente; essa breve "ausência" significa que está aberta a porta pela qual talvez possam fugir logo à percepção do real, ir fazer algo mais ou menos longe dele, o que lhes dará um sono mais ou menos "bom". Mas já se deu um grande passo quando se volta as costas ao real, quando se atingem os primeiros antros onde as "autossugestões" preparam, como feiticeiras, a bebida infernal das doenças imaginárias ou a recrudescência das moléstias nervosas, e espiam a hora em que as crises que vêm à tona durante o sono inconsciente se manifestarão com força bastante para fazê-lo cessar.
     Não longe dali está o jardim reservado onde crescem, como flores desconhecidas, os sonos tão diferentes uns dos outros, o sono do estramônio, o sono do cânhamo-da-índia, os múltiplos extratos do éter, o sono da beladona, do ópio, da valeriana, flores que permanecem cerradas até o dia em que o desconhecido predestinado vier tocá-las, fazer com que se abram, e, durante longas horas, vertam o aroma de seus sonhos particulares em uma criatura maravilhada e surpresa. No fundo do jardim fica o convento de janelas abertas onde se ouve repetir as lições aprendidas antes de dormir e que só serão sabidas ao despertar; enquanto que, presságio deste, faz ressoar o seu tique-taque esse despertador interno que a nossa preocupação regulou tão bem que, quando nossa caseira vier dizer-nos: "são sete horas!", já nos achará prontos. Das paredes escuras desse quarto que se abre sobre os sonhos, e onde trabalha sem cessar o esquecimento dos desgostos amorosos, do qual é às vezes interrompida e desfeita por um pesadelo cheio de reminiscências a tarefa de imediato reiniciada, pendem, mesmo depois que despertamos, as lembranças dos sonhos, porém tão ensombrecidas que muitas vezes só as percebemos pela primeira vez em plena tarde, quando o raio de uma idéia semelhante vem tocá-las por acaso; alguns já harmoniosamente claros, enquanto dormimos, mas tornados tão irreconhecíveis que, não os tendo reconhecido, só podemos apressar-nos em devolvê-los à terra, como a cadáveres que se decompõem com muita rapidez, ou como objetos tão gravemente estragados e quase reduzidos a pó que nem o restaurador mais hábil poderia devolver-lhes a forma ou deles tirar alguma coisa. Perto da grade está a pedreira em que os sonos profundos vão procurar substâncias que impregnam a cabeça de camadas tão duras que, para despertar o adormecido, sua própria vontade se vê obrigada, mesmo numa manhã de ouro, a desferir enormes machadadas como um jovem Siegfried. Mais além ficam os pesadelos, que os médicos estupidamente supõem serem mais cansativos que as insônias, quando, muito pelo contrário, permitem ao pensador escapar-se da atenção; os pesadelos, com seus álbuns fantasistas, onde nossos parentes já mortos acabam de sofrer um grave acidente que não exclui uma cura próxima. Enquanto esperamos, conservamo-los numa pequena gaiola para ratos, onde eles são menores que ratinhos brancos e, cobertos de grandes botões vermelhos, cada qual ornado de uma pena, dirigem-nos discursos ciceronianos. Ao lado desse álbum, está o disco giratório do despertar, graças ao qual sofremos por um momento o tédio de ter de voltar imediatamente a uma casa que está destruída há cinquenta anos, e cuja imagem é apagada por várias outras à medida que o sono foi se afastando, antes que chegássemos àquela a que só se apresenta uma única vez o disco ao parar, e que coincide com a que havemos de ver de olhos abertos.
     Algumas vezes eu nada ouvia, estando num desses sonos em que a gente cai como num poço, do qual nos sentimos muito felizes por ser tirados um pouco mais tarde, pesados, superalimentados, digerindo tudo o que nos trouxeram, parecidos com as ninfas que nutriam Hércules, essas ágeis potências vegetativas cuja atividade redobra enquanto dormimos.
     Chama-se a isto um sono de chumbo, e parece que nós mesmos nos tornamos, durante alguns momentos depois que um tal sono terminou, simples bonecos de chumbo. Não somos mais ninguém. Como, então, buscando sua personalidade, seu pensamento, como se busca um objeto perdido, acaba-se por encontrar o seu próprio eu antes que qualquer outro? Por que, quando recomeçamos a pensar, não é então uma outra personalidade, em vez da anterior, que se encarna em nós? Não se percebe o que é que dita a escolha e por que, entre os milhões de seres humanos que poderíamos ser, pomos a mão justamente sobre aquele que éramos na véspera. O que é que nos guia, quando verdadeiramente ocorreu uma interrupção (seja porque o sono tenha sido completo, ou os sonhos inteiramente diversos de nós)? Na verdade houve morte, como quando o coração deixa de bater e somos reanimados por exercícios rítmicos da língua. É claro que o quarto, ainda que o tenhamos visto uma só vez, desperta recordações das quais pendem outras mais antigas; ou em nós dormiam algumas de que tomamos consciência. A ressurreição ao despertar após esse benéfico acesso de alienação mental que é o sono deve, no fundo, assemelhar-se ao que ocorre quando se reencontra um nome, um verso ou um refrão esquecidos. E talvez a ressurreição da alma após a morte seja concebível como um fenômeno de memória.
     Quando acabara de dormir, atraído pelo céu ensolarado, mas retido pelo frio das derradeiras manhãs, tão luminosas e gélidas, em que principia o inverno, eu, para contemplar as árvores em que as folhas estavam indicadas apenas por um ou dois toques de ouro ou de rosa que pareciam ter ficado no ar, numa trama invisível, erguia a cabeça e esticava o pescoço enquanto mantinha o corpo meio escondido nos cobertores; como uma crisálida em vias de metamorfose, eu era uma criatura dupla cujas diversas partes não convinham ao mesmo ambiente; a meu ver, bastava a cor, sem calor; ao contrário, o meu peito se preocupava com o calor, e não com a cor. Só me levantava quando o fogo estava aceso e contemplava o quadro tão suave e transparente da manhã cor-de-malva e de ouro, à qual acabava de acrescentar artificialmente as partes de calor que lhe faltavam, atiçando o fogo que ardia e fumegava como um bom cachimbo e que me dava, como este o faria, um prazer a um tempo grosseiro, pois repousava num bem-estar material, e delicado, porque atrás dele se desvanecia uma pura visão. Meu gabinete de toalete era forrado de um papel vermelho violento, recamado de flores negras e brancas, às quais parece que teria alguma dificuldade de me habituar. Mas nada mais fizeram que me parecer novas, que me obrigar a entrar não em conflito mas em contato com elas, modificar a alegria e os cânticos de meu despertar; não fizeram mais que me prender à força no âmago de uma espécie de papoula para contemplar o mundo, que eu via bem diferente do que em Paris, desse alegre biombo que era essa nova casa, diversamente orientada da de meus pais e para onde afluía um ar puro. Em certos dias eu estava agitado pela vontade de rever minha avó ou pelo medo de que ela estivesse doente; ou então era a lembrança de algum negócio deixado em andamento em Paris, e que não caminhava; às vezes, também, alguma dificuldade em que, mesmo ali, arranjara um meio de meter-me. Qualquer dessas preocupações me impedira de dormir, e eu não tinha forças contra a tristeza, que, num instante, enchia toda a minha existência. Então, do hotel, eu enviava alguém ao quartel com um bilhete para Saint-Loup: dizia-lhe que, se lhe fosse materialmente possível sabia que era muito difícil -, tivesse ele a bondade de passar um instante pelo meu quarto. Dentro de uma hora ele chegava; e, ao ouvir o toque da campainha, eu me sentia liberado de minhas preocupações. Sabia que, se eram mais fortes que eu, ele era mais forte que elas e minha atenção se desligava delas e se voltava para ele, que decidiria tudo. Saint-Loup acabava de entrar e já espalhava a meu redor o ar livre em que desenvolvia tanta atividade desde a manhã, meio vital bem diverso do meu quarto, e ao qual eu me adaptava imediatamente devido a reações adequadas.

- Espero que não me queira mal por tê-lo incomodado; alguma coisa me atormenta, e você com certeza o adivinhou.

- Claro que não; pensei simplesmente que tinha vontade de me ver e achei isso muito gentil. Estava encantado que tivesse mandado me chamar. Mas afinal o que tem? Algo não está certo? Que posso fazer por você?

     Ouvia as minhas explicações, respondia com precisão; mas, antes mesmo que tivesse falado, Saint-Loup já me tornara semelhante a si próprio; além das ocupações importantes que o tornavam tão apressado, tão alerta, tão contente, os aborrecimentos que me impediam mesmo agora de ficar um instante sem sofrer me pareciam, como também a ele, desprezíveis. Eu era como um homem que, não podendo abrir os olhos há vários dias, manda chamar um médico, o qual, com jeito e suavidade, lhe levanta a pálpebra, lhe tira e mostra um grão de areia; o doente está curado e fica tranquilo. Todas as minhas dificuldades se resolveriam com um telegrama que Saint-Loup se encarregaria de expedir. A vida me parecia tão diferente, tão bonita, sentia-me inundado de um tal excesso de energia que queria agir logo.

- Que vai fazer agora? - perguntei à Saint-Loup.

- Vou deixá-lo, pois saímos em marcha daqui a três quartos de hora e precisam de mim.

- Então foi muito incômodo ter de vir?

- De jeito nenhum; o capitão se mostrou muito gentil; disse que, se era por sua causa, eu tinha mesmo de vir; mas enfim não quero parecer que estou abusando. 

- Mas, se eu me levantasse depressa e fosse por minha vez ao local em que vocês fazem as manobras, isso me interessaria muito e talvez pudesse conversar com você nos intervalos.

- Não lhe aconselho isso; você ficou acordado, quebrando a cabeça por uma coisa que, esteja certo, não tem a menor importância; mas agora que isso não o incomoda mais, volte ao travesseiro e durma, o que será excelente contra a desmineralização de suas células nervosas; não adormeça rápido demais porque a nossa maldita banda vai passar debaixo das suas janelas; mas logo depois, acho que terá sossego, e nos encontraremos esta noite para jantar.

     Porém, pouco mais tarde, fui assistir com frequência aos exercícios do regimento no campo, quando comecei a me interessar pelas teorias militares que os amigos de Saint-Loup expunham ao jantar; e tornou-se o desejo de meus dias ver mais de perto seus diferentes chefes, como alguém que faz da música o seu principal estudo, e vive nos concertos, sente prazer em frequentar os cafés onde se mistura à vida dos músicos da orquestra. Para chegar ao campo das manobras, precisava dar grandes caminhadas. À noite, após o jantar, a vontade de dormir me fazia às vezes tombar a cabeça, como se tivesse uma vertigem. No dia seguinte, eu me dava conta de que não ouvira a fanfarra, assim como, em Balbec, nos dias seguintes às noites em que Saint-Loup me levara a Rivebelle para jantar, não ouvira o concerto na praia. E, no momento em que desejava me levantar, experimentava a deliciosa incapacidade de fazê-lo; sentia-me ligado a um solo invisível e profundo pelas articulações, que o cansaço me fazia sensíveis, de radículas musculosas e nutritivas. Sentia-me cheio de forças, a vida se estendia mais longa diante de mim; e que eu recuara até as boas fadigas de minha infância em Combray, no dia seguinte àquele em que tínhamos ido passear no caminho de Guermantes. Os poetas pretendem que reencontremos por um momento aquilo que fomos outrora, quando entramos em determinada casa, determinado jardim, onde vivemos na juventude. Trata-se de peregrinações muito arriscadas essas em cujo término se colhem tanto decepções como sucessos. Os locais fixos, contemporâneos de anos diferentes, vale mais encontrá-los em nós mesmos. É para isso que podem servir, em certa medida, as canseiras seguidas de uma boa noite. Mas estas, para nos fazerem descer às galerias mais subterrâneas do sono, onde nenhum reflexo da vigília, nenhum clarão de memória vem mais iluminar o monólogo interior, se é verdade que ele mesmo aí não cessa, revolvem tão bem o solo e o tufo do nosso corpo que nos fazem reencontrar, lá onde os nossos músculos mergulham e retorcem suas ramificações, e haurindo a vida nova, o jardim em que vivemos quando crianças. Não há necessidade de viajar para revê-lo, é preciso descer para encontrá-lo. O que cobriu a terra não está mais sobre ela, mas abaixo; a excursão basta para visitar a cidade morta, é necessário proceder à escavações. Porém, já se verá como certas impressões fugidias e casuais levam muito melhor ainda ao passado, com uma precisão mais aguda, um voo mais leve, mais imaterial, mais vertiginoso, mais infalível, mais imortal, do que esses deslocamentos orgânicos.
     Às vezes o meu cansaço era ainda maior: sem poder me deitar, eu seguia as manobras durante vários dias. Como era então abençoado o rei deitando na cama, parecia-me ter enfim escapado a egresso cantadores, a feiticeiros, como os que povoam os "romances" amados do século XVII. Meu sono e minha manhã opulenta do dia seguinte não passavam de um delicioso conto de fadas. Encantador; talvez também benéfico. Dizia para mim mesmo que os piores sofrimentos têm o seu asilo, que sempre é possível, à falta de coisa melhor, encontrar repouso. Tais pensamentos me levavam muito longe.
     Nos dias de descanso, e em que Saint-Loup, entretanto, não podia sair, ia eu com frequência vê-lo no quartel. Era longe; precisava deixar a cidade, transpor o viaduto, de cujos dois lados eu desfrutava um panorama amplo. Uma brisa moderada soprava quase sempre naquelas alturas, enchendo os prédios erguidos dos três lados do pátio, que ecoavam sem parar como um antro de ventos. E, quando Saint-Loup estava ocupado com algum serviço, eu o esperava diante da porta do seu quarto, ou no refeitório, conversando com alguns de seus amigos a quem me apresentara (e que depois cheguei a ver algumas vezes, mesmo quando ele se achava ausente), vendo pela janela, a cem metros abaixo, a campina desnuda, mas onde, aqui e ali, sementeiras novas, muitas vezes ainda molhadas da chuva e iluminadas pelo sol, ostentavam algumas faixas verdes de um brilho e de uma limpidez translúcida de esmalte, acontecia-me ouvir falar nele; e bem cedo pude perceber o quanto ele era querido e popular. Entre muitos voluntários, que pertenciam a outros esquadrões, jovens burgueses ricos que só viam a alta sociedade aristocrática de fora, e sem nela penetrar, a simpatia que excitava neles o que sabiam do caráter de Saint-Loup era duplicada pelo prestígio que a seus olhos possuía aquele moço que muitas vezes, nas noites de sábado, quando vinham a Paris de licença, tinham visto ceando com o duque de Uzes e o príncipe de Orléans, no Café de La Paix. Por causa disso, em seu belo rosto, no seu modo despreocupado de andar, de cumprimentar, no perpétuo balançar de seu monóculo, na fantasia de seus quepes por demais altos, de suas calças de um pano muito fino e rosado, haviam eles introduzido a ideia de um "chique" de que afirmavam serem destituídos os oficiais mais elegantes do regimento, e até o soberbo capitão a quem devera eu o fato de ter dormido no quartel, e que parecia, comparativamente, solene demais e quase vulgar.
     Um dizia que o capitão comprara um novo cavalo. - Ele pode comprar todos os cavalos que quiser. Domingo de manhã me encontrei com Saint-Loup na Alameda das Acácias; ele monta com outro porte! dizia outro; e com conhecimento de causa; pois esses jovens pertenciam a uma classe que, se não frequenta o mesmo pessoal mundano, não é diferente, no entanto, graças ao dinheiro e ao lazer, da aristocracia, na experiência de todas aquelas elegâncias que podem ser compradas. Quando muito, a elegância deles, no que respeita ao vestuário, por exemplo, possuía algo de mais aplicado, de mais impecável, do que aquela negligente e livre elegância de Saint Loup, que tanto agradava à minha avó. Era emocionante para aqueles filhos de grandes banqueiros ou de corretores, ao comerem ostras após a sessão teatral, verem numa mesa vizinha o suboficial Saint-Loup. E quantos relatos feitos, segunda-feira no quartel, ao voltar da licença, por um deles que pertencia ao mesmo esquadrão de Saint-Loup e a quem este cumprimentara "muito amavelmente"; ou por um outro que não era do mesmo esquadrão, mas que acreditava que, apesar disso, Saint-Loup o reconhecera, pois duas ou três vezes acertara o monóculo em sua direção.

- Sim, meu irmão o viu no La Paix. - dizia um outro que passara o dia na casa da amante -; parece até que usava um fraque meio folgado e que não lhe caía bem.

- Como era o seu colete?

- Não estava de colete branco, e sim cor-de-malva, com um tipo de palmas; estupendo!

     Quanto aos veteranos (homens do povo que ignoravam o Jockey e que simplesmente incluíam Saint-Loup na categoria dos suboficiais muito ricos, à qual faziam entrar todos aqueles que, arruinados ou não, mantinham um certo nível de vida, possuíam uma cifra bem elevada de rendimentos ou de dívidas e eram generosos para com os soldados), se não viam nada de aristocrático no modo de andar, no monóculo, nas calças e nos quepes de Saint-Loup, nem por isso, no entanto, tais coisas lhe eram destituídas de importância e significação. Em tais particularidades reconheciam eles o caráter, o gênero que de uma vez por todas haviam conferido ao mais popular dos graduados do regimento maneiras que não eram idênticas às de ninguém, descaso pelo que pudessem pensar os chefes, e que se lhes afigurava a consequência natural de sua bondade para com os soldados. O café da manhã no dormitório, ou o repouso na cama à tarde, parecia melhor quando algum veterano servia ao grupo guloso e dorminhoco um saboroso detalhe sobre um quepe de Saint-Loup.  

- Era tão alto como a minha mochila.

- Ora, velho! Não me venha com histórias para boi dormir. Não podia ser tão alto assim. interrompia um jovem licenciado em letras que procurava, usando essa expressão popular, não parecer um recruta e se arriscando, com essa contradita, a fazer confirmar um fato que o encantava.

- Ah, não era então da altura da minha mochila? Você mesmo a mediu, talvez? Pois afirmo que o tenente-coronel olhava-o como se o desejasse pôr na solitária. E o nosso famoso Saint Loup nem se importava! Ia, vinha, baixava a cabeça, erguia a cabeça, e sempre com aquele jogo do monóculo. O que não vai dizer o capitão! Ah, é bem possível que não diga nada, mas por certo aquilo não vai lhe agradar. Mas esse quepe ainda não é nada. Dizem que tem mais de trinta desses em casa. 

- Como é que sabe disso, velho? Pelo nosso maldito cabo? -perguntava o jovem licenciado com pedantismo, exibindo os novos modos de dizer que aprendera recentemente e com os quais gostava de ornamentar a conversa.

- Como é que sei? Pelo seu ordenança, ora!

- Eis aí um sujeito que não deve ser nada infeliz. 

- Compreendo. Tem mais sorte que eu, é claro! E ainda lhe dá as suas coisas, e tudo o mais. Não lhe bastava o que recebia da cantina. E vai daí, o nosso Saint-Loup recomenda, o furriel que o diga: "Quero que ele seja bem alimentado, custe o que custar."

     E o veterano compensava a insignificância das palavras com a energia do tom, numa imitação medíocre que obtinha o maior êxito. 
 
continua na página 41...
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