A Hora da Estrela
continuando...
– Você sabe, meu amor, que cheiro de homem é bom? Faz bem
à saúde. Você já sentiu cheiro de homem?
– Não senhora.
Finalmente, depois de lamber os dedos, madama Carlota
mandou-a cortar as cartas com a mão esquerda, ouviu minha
adoradinha?
Macabéa separou um monte com a mão trêmula: pela primeira
vez ia ter um destino. Madama Carlota (explosão) era um ponto alto
na sua existência. Era o vórtice de sua vida e esta se afunilara toda
para desembocar na grande dama cujo ruge brilhante dava-lhe à pele
arregalou os olhos.
– Mas, Macabeazinha, que vida horrível a sua! Que meu amigo
Jesus tenha dó de você, filhinha! Mas que horror!
Macabéa empalideceu: nunca lhe ocorrera que sua vida fora
tão ruim.
Madama acertou tudo sobre o seu passado, até lhe disse que
ela mal conhecera pai e mãe e que fora criada por uma parente
muito madrasta má. Macabéa espantou-se com a revelação: até
agora sempre julgara que o que a tia lhe fizera era educá-la para que
ela se tornasse uma moça mais fina. Madama acrescentou:
– Quanto ao presente, queridinha, está horrível também. Você
vai perder o emprego e já perdeu o namorado, coitada de vocezinha.
Se não puder, não me pague a consulta, sou madama de recursos.
Macabéa, pouco habituada a receber de graça, recusou a dádiva mas
com o coração todo grato.
E eis que (explosão) de repente aconteceu: o rosto da
madama se acendeu todo iluminado:
– Macabéa! Tenho grandes notícias para lhe dar! Preste
atenção, minha flor, porque é de maior importância o que vou lhe
dizer. É coisa muito séria e muito alegre: sua vida vai mudar
completamente! E digo mais: vai mudar a partir do momento em que
você sair da minha casa! Você vai se sentir outra. Fique sabendo,
minha florzinha, que até o seu namorado vai voltar e propor
casamento, ele está arrependido! E seu chefe vai lhe avisar que
pensou melhor e não vai mais lhe despedir.
Macabéa nunca tinha tido coragem de ter esperança.
Mas agora ouvia a madama como se ouvisse uma trombeta
vinda dos céus — enquanto suportava uma trombeta vinda dos céus
— Enquanto suportava uma forte taquicardia. Madama tinha razão:
Jesus enfim prestava atenção nela. Seus olhos estavam arregalados
por uma súbita voracidade pelo futuro (explosão). E eu também
estou com esperança enfim.
– E tem mais! Um dinheiro grande vai lhe entrar pela porta
adentro em horas da noite trazido por um homem estrangeiro. Você
conhece algum estrangeiro?
– Não senhora — disse Macabéa já desanimando.
– Pois vai conhecer. Ele é alourado e tem olhos azuis ou verde
ou castanhos ou pretos. E se não fosse porque você gosta de seu ex-namorado, esse gringo ia namorar você. Não! Não! Não! Agora estou
vendo outra coisa (explosão) e apesar de não ver muito claro estou
também ouvindo a voz de meu guia: esse estrangeiro parece se
chamar Hans, e é ele quem vai se casar com você! Ele tem muito
dinheiro, todos os gringos são ricos. Se não me engano, e nunca me
engano, ele vai lhe dar muito amor e você, minha enjeitadinha, vai se
vestir com veludo e cetim e até casaco de pele vai ganhar!
Macabéa começou (explosão) a tremilicar toda por causa do
lado penoso que há na excessiva felicidade. Só lhe ocorreu dizer:
– Mas casaco de pele não precisa no calor do Rio...
– Pois vai ter só para se enfeitar. Faz tempo não boto cartas tão
boas. E sou sempre sincera: por exemplo, acabei de ter a franqueza
de dizer para aquela moça que saiu daqui que ela ia ser atropelada,
ela até chorou muito, viu os olhos avermelhados dela? E agora vou
lhe dar um feitiço que você deve guardar dentro deste sutiã que
quase não tem seio, coitada, bem em contato com a pele. Você não
tem busto mas vai engordar e vai ganhar corpo. Enquanto você não
engordar, ponha dentro do sutiã chumaços de algodão para fingir
que tem. Olha, minha queridinha, esse feitiço também sou obrigada
por Jesus a lhe cobrar porque todo o dinheiro que eu recebo das
cartas eu dou para um asilo de crianças, Mas se não puder, não
pague, só venha e pagar quando tudo acontecer.
– Não, eu lhe pago, a senhora acertou tudo, a senhora é...
Estava meio bêbada, não sabia o que pensava, parecia que lhe
tinham dado um forte cascudo na cabeça de ralos cabelos, sentia-se
tão desorientada como se lhe tivesse acontecido uma infidelidade.
Sobretudo estava conhecendo pela primeira vez o que os outros
chamavam de paixão: estava apaixonada por Hans.
– E que é que eu faço para ter mais cabelo? – ousou perguntar
porque já se sentia outra.
– Você está querendo demais. Mas está bem: lave a cabeça com
sabão Aristolino, não use sabão amarelo em pedra. Esse conselho eu
não cobro.
Até isso? (explosão) bateu-lhe o coração, até mais cabelo?
Esquecera Olímpico e só pensava no gringo: era sorte demais pegar
homem de olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos, não havia
como errar, era vasto o campo das possibilidades.
– E agora — disse a madama — você vá embora para encontrar
seu maravilhoso destino. E mesmo porque tem outra freguesa
esperando, demorei demais com você, meu anjinho, mas valeu a
pena!
Num súbito ímpeto (explosão) de vivo impulso Macabéa, entre
feroz e desajeitada, deu um estalado beijo no rosto da madama. E
sentiu de novo que sua vida já estava melhorando ali mesmo: pois
era bom beijar. Quando ela era pequena, como não tinha a quem
beijar, beijava a parede. Ao acariciar ela se acariciava si própria.
Madama Carlota havia acertado tudo. Macabéa estava
espantada. Só então vira que sua vida era uma miséria. Teve vontade
de chorar ao ver o seu lado oposto, ela que, como disse, até então se
julgava feliz.
continua pág 79...
"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
__________________
"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
________________
Leia também:
A Hora da Estrela - Então madama Carlota
Nenhum comentário:
Postar um comentário