domingo, 24 de novembro de 2024

A Hora da Estrela - Então madama Carlota

Clarice Lispector

A Hora da Estrela


continuando...

     Então madama Carlota contou-lhe que lá no Mangue, no seu cubículo, havia enfeites lindos nas paredes.

– Você sabe, meu amor, que cheiro de homem é bom? Faz bem à saúde. Você já sentiu cheiro de homem? 
– Não senhora.

     Finalmente, depois de lamber os dedos, madama Carlota mandou-a cortar as cartas com a mão esquerda, ouviu minha adoradinha? 
     Macabéa separou um monte com a mão trêmula: pela primeira vez ia ter um destino. Madama Carlota (explosão) era um ponto alto na sua existência. Era o vórtice de sua vida e esta se afunilara toda para desembocar na grande dama cujo ruge brilhante dava-lhe à pele arregalou os olhos.

– Mas, Macabeazinha, que vida horrível a sua! Que meu amigo Jesus tenha dó de você, filhinha! Mas que horror!

     Macabéa empalideceu: nunca lhe ocorrera que sua vida fora tão ruim.
     Madama acertou tudo sobre o seu passado, até lhe disse que ela mal conhecera pai e mãe e que fora criada por uma parente muito madrasta má. Macabéa espantou-se com a revelação: até agora sempre julgara que o que a tia lhe fizera era educá-la para que ela se tornasse uma moça mais fina. Madama acrescentou: 

– Quanto ao presente, queridinha, está horrível também. Você vai perder o emprego e já perdeu o namorado, coitada de vocezinha. Se não puder, não me pague a consulta, sou madama de recursos. 

     Macabéa, pouco habituada a receber de graça, recusou a dádiva mas com o coração todo grato.
     E eis que (explosão) de repente aconteceu: o rosto da madama se acendeu todo iluminado:

– Macabéa! Tenho grandes notícias para lhe dar! Preste atenção, minha flor, porque é de maior importância o que vou lhe dizer. É coisa muito séria e muito alegre: sua vida vai mudar completamente! E digo mais: vai mudar a partir do momento em que você sair da minha casa! Você vai se sentir outra. Fique sabendo, minha florzinha, que até o seu namorado vai voltar e propor casamento, ele está arrependido! E seu chefe vai lhe avisar que pensou melhor e não vai mais lhe despedir.

     Macabéa nunca tinha tido coragem de ter esperança. 
     Mas agora ouvia a madama como se ouvisse uma trombeta vinda dos céus — enquanto suportava uma trombeta vinda dos céus — Enquanto suportava uma forte taquicardia. Madama tinha razão: Jesus enfim prestava atenção nela. Seus olhos estavam arregalados por uma súbita voracidade pelo futuro (explosão). E eu também estou com esperança enfim.

– E tem mais! Um dinheiro grande vai lhe entrar pela porta adentro em horas da noite trazido por um homem estrangeiro. Você conhece algum estrangeiro? 
– Não senhora — disse Macabéa já desanimando.
– Pois vai conhecer. Ele é alourado e tem olhos azuis ou verde ou castanhos ou pretos. E se não fosse porque você gosta de seu ex-namorado, esse gringo ia namorar você. Não! Não! Não! Agora estou vendo outra coisa (explosão) e apesar de não ver muito claro estou também ouvindo a voz de meu guia: esse estrangeiro parece se chamar Hans, e é ele quem vai se casar com você! Ele tem muito dinheiro, todos os gringos são ricos. Se não me engano, e nunca me engano, ele vai lhe dar muito amor e você, minha enjeitadinha, vai se vestir com veludo e cetim e até casaco de pele vai ganhar! 

     Macabéa começou (explosão) a tremilicar toda por causa do lado penoso que há na excessiva felicidade. Só lhe ocorreu dizer:

– Mas casaco de pele não precisa no calor do Rio... 
– Pois vai ter só para se enfeitar. Faz tempo não boto cartas tão boas. E sou sempre sincera: por exemplo, acabei de ter a franqueza de dizer para aquela moça que saiu daqui que ela ia ser atropelada, ela até chorou muito, viu os olhos avermelhados dela? E agora vou lhe dar um feitiço que você deve guardar dentro deste sutiã que quase não tem seio, coitada, bem em contato com a pele. Você não tem busto mas vai engordar e vai ganhar corpo. Enquanto você não engordar, ponha dentro do sutiã chumaços de algodão para fingir que tem. Olha, minha queridinha, esse feitiço também sou obrigada por Jesus a lhe cobrar porque todo o dinheiro que eu recebo das cartas eu dou para um asilo de crianças, Mas se não puder, não pague, só venha e pagar quando tudo acontecer.
– Não, eu lhe pago, a senhora acertou tudo, a senhora é...

     Estava meio bêbada, não sabia o que pensava, parecia que lhe tinham dado um forte cascudo na cabeça de ralos cabelos, sentia-se tão desorientada como se lhe tivesse acontecido uma infidelidade.
     Sobretudo estava conhecendo pela primeira vez o que os outros chamavam de paixão: estava apaixonada por Hans.

– E que é que eu faço para ter mais cabelo? – ousou perguntar porque já se sentia outra.
– Você está querendo demais. Mas está bem: lave a cabeça com sabão Aristolino, não use sabão amarelo em pedra. Esse conselho eu não cobro.

     Até isso? (explosão) bateu-lhe o coração, até mais cabelo? Esquecera Olímpico e só pensava no gringo: era sorte demais pegar homem de olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos, não havia como errar, era vasto o campo das possibilidades.

– E agora — disse a madama — você vá embora para encontrar seu maravilhoso destino. E mesmo porque tem outra freguesa esperando, demorei demais com você, meu anjinho, mas valeu a pena!

     Num súbito ímpeto (explosão) de vivo impulso Macabéa, entre feroz e desajeitada, deu um estalado beijo no rosto da madama. E sentiu de novo que sua vida já estava melhorando ali mesmo: pois era bom beijar. Quando ela era pequena, como não tinha a quem beijar, beijava a parede. Ao acariciar ela se acariciava si própria.
     Madama Carlota havia acertado tudo. Macabéa estava espantada. Só então vira que sua vida era uma miséria. Teve vontade de chorar ao ver o seu lado oposto, ela que, como disse, até então se julgava feliz.  
continua pág 79...
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura." 
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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