A Hora da Estrela
continuando...
(Esta história são apenas fatos não trabalhados de matéria-prima e que me atingem direto antes de eu pensar. Sei muita coisa
que não posso dizer. Aliás pensar o quê?) Glória, talvez por remorso,
disse-lhe:
– Olímpico é meu mas na certa você arranja outro namorado:
Eu digo que ele é meu porque foi o que a minha cartomante me disse
e eu não quero desobedecer porque ela é médium e nunca erra. Por
que você não paga uma consulta e pede pra ela te pôr as cartas?
– É muito caro?
Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz
companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no
mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro. O
pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua. Eu queria
chafurdar no lodo, minha necessidade de baixeza eu mal controlo, a
necessidade da orgia e do pior gozo absoluto. O pecado me atrai, o
que é proibido me fascina. Quero ser porco e galinha e depois matá-los e beber-lhes o sangue. Penso no sexo de Macabéa, miúdo mas
inesperadamente coberto de grossos e abundantes pelos negros —
seu sexo era a única marca veemente de sua existência.
Ela nada pedia mas seu sexo exigia, como um nascido girassol
num túmulo. Quanto a mim, estou cansado. Talvez da companhia de
Macabéa, Glória, Olímpico. O médico me enjoou com sua cerveja.
Tenho que interromper esta história por uns três dias.
Nestes últimos três dias, sozinho, sem personagens,
despersonalizo-me e tiro-me de mim como quem tira uma roupa.
Despersonalizo-me a ponto de adormecer.
E agora emerjo e sinto falta de Macabéa. Continuemos:
– É muito caro?
– Eu lhe empresto. Inclusive madama Carlota também quebra
feitiço que tenham feito contra a gente. Ela quebrou o meu à meia-noite em ponto de uma sexta-feira treze de agosto, lá para lá de S.
Miguel, num terreiro de macumba. Sangraram em cima de mim um
porco preto, sete galinhas brancas e me rasgaram a roupa que já
estava toda ensanguentada. Você tem coragem?
– Não sei se posso ver sangue.
Talvez porque sangue é a coisa secreta de cada um, a tragédia
vivificante. Mas Macabéa só sabia que não podia ver sangue, o resto
fui eu que pensei. Estou me interessando terrivelmente por fatos:
fatos são pedras duras. Não há como fugir. Fatos são palavras ditas
pelo mundo.
Bem.
Diante da súbita ajuda, Macabéa, que nunca se lembrava de
pedir, pediu licença ao chefe inventando dor de dente e aceitou o
dinheiro emprestado que nem sabia quando ia devolver. Essa
audácia lhe deu um inesperado ânimo para audácia maior
(explosão): como o dinheiro era emprestado, ela raciocinou
tortamente que não era dela e então podia gastá-lo. Assim pela
primeira vez na vida tomou um táxi e foi para Olaria. Desconfio que
ousou tanto por desespero, embora não soubesse que estava
desesperada, é que estava gasta até a última lona, a boca a se colar
no chão.
Não foi difícil achar o endereço da madama Carlota e essa
facilidade lhe pareceu bom sinal. O apartamento térreo ficava na
esquina de um beco e entre as pedras do chão crescia capim — ela o
notou porque sempre notava o que era pequeno e insignificante.
Pensou vagamente enquanto tocava a campainha da porta: capim é
tão fácil e simples. Tinha pensamentos gratuitos e soltos porque
embora à toa possuía muita liberdade interior.
A própria madama Carlota atendeu-a, olhou-a com
naturalidade e disse:
– O meu guia já tinha me avisado que você vinha me ver,
minha queridinha. Como é mesmo o seu nome? Ah, é? É muito lindo.
Entre, meu benzinho. Tenho uma cliente na salinha dos fundos, você
espera aqui. Aceita um cafezinho, minha florzinha?
Macabéa sentou-se um pouco assustada porque faltavam-lhe
antecedentes de tanto carinho. E bebeu com cuidado pela própria
frágil vida, o café frio e quase sem açúcar. Enquanto isso olhava com
admiração e respeito a sala onde estava. Lá tudo era de luxo. Matéria
plástica amarela nas poltronas e sofás. E até flores de plástico.
Plástico era o máximo. Estava boquiaberta.
Afinal saiu dos fundos da casa uma moça com olhos muito
vermelhos e madama Carlota mandou Macabéa entrar. (Como é
chato lidar com fatos, o cotidiano me aniquila, estou com preguiça de
escrever esta história que é um desabafo apenas. Vejo que escrevo
aquém e além de mim. Não me responsabilizo pelo que agora
escrevo).
Continuemos, pois, embora com esforço: madama Carlota era
enxundiosa, pintava a boquinha rechonchuda com vermelho vivo e
punha nas faces oleosas duas rodelas de ruge brilhoso. Parecia um
bonecão de louça meio quebrado. (Vejo que não dá para aprofundar
esta história. Descrever me cansa.)
– Não tenha medo de mim, sua coisinha engraçadinha. Porque
quem está ao meu lado, está no mesmo instante ao lado de Jesus.
E apontou o quadro colorido onde havia exposto em vermelho e
dourado o coração de Cristo.
– Eu sou fã de Jesus. Sou doidinha por Ele. Ele sempre me
ajudou. Olha, quando eu era mais moça tinha bastante categoria
para levar vida fácil de mulher. E era fácil mesmo, graças a Deus.
Depois, quando eu já não valia muito no mercado, Jesus sem mais
nem menos arranjou um jeito de eu fazer sociedade com uma
coleguinha e abrimos uma casa de mulheres. Aí eu ganhei dinheiro e
pude comprar este apartamentozinho térreo. Larguei a casa de
mulheres porque era difícil tomar conta de tantas moças que só
faziam era querer
me roubar. Você está interessada no que eu digo?
– Muito.
– Pois faz bem porque eu não minto. Seja também fã de Jesus
porque o Salvador salva mesmo. Olhe, a polícia não deixa pôr cartas,
acha que estou explorando os outros, mas, como eu lhe disse, nem a
polícia consegue desbancar Jesus. Você notou que Ele até me
conseguiu dinheiro para ter mobília de grã-fino?
– Sim senhora.
– Ah, então você também acha, não é? Pelo que vejo você: é
inteligente, ainda bem, porque a inteligência me salvou.
Madama Carlota enquanto falava tirava de uma caixa aberta
um bombom atrás do outro e ia enchendo a boca pequena. Não
ofereceu nenhum a Macabéa. Esta, que, como eu disse, tinha
tendência a notar coisas pequenas, percebeu que dentro de cada
bombom mordido havia um líquido grosso. Não cobiçou o bombom
pois aprendera que as coisas são dos outros.
– Eu era pobre, comia mal, não tinha roupas boas. Então caí
na vida. E gostei porque sou uma pessoa muito carinhosa, tinha
carinho por todos os homens. Além do mais, na zona era divertido
porque havia muita conversa entre as coleguinhas. Nos éramos
muito unidas e só de vez em quando eu me atracava com uma. Mas
isso também era bom, porque eu era muito forte e gostava de bater,
de puxar cabelos e morder. Por falar em morder, você não pode
imaginar que dentes lindos eu tinha; todos branquinhos e brilhantes.
Mas se estragaram tanto que hoje uso dentadura postiça. Você acha
que se nota que são postiços?
– Não senhora.
– Olhe, eu era muito asseada e não pegava doença ruim. Só
uma vez me caiu uma sífilis mas a penicilina me curou. Eu era mais
tolerante do que as outras porque sou bondosa e afinal estava dando
o que era meu. Eu tinha um homem de quem eu gostava de verdade
e que eu sustentava porque ele era fino e não queria se gastar em
trabalho nenhum. Ele era o meu luxo e eu até apanhava dele.
Quando ele me dava uma surra eu via que ele gostava de mim, eu
gostava de apanhar. Com ele era amor, com os outros eu trabalhava.
Depois que ele desapareceu, eu, para não sofrer, me divertia amando
mulher. O carinho de mulher é muito bom mesmo, eu até lhe
aconselho porque você é delicada demais para suportar a brutalidade
dos homens e se você conseguir uma mulher vai ver como é gostoso,
entre mulheres o carinho é muito mais fino. Você tem chance de ter
uma mulher?
– Não senhora.
– É que também você nem se enfeita. Quem não se enfeita, por
si mesma se enjeita. Ai que saudades da zona! Eu peguei o melhor
tempo do Mangue que era frequentado por verdadeiros cavalheiros.
Além do preço fixo, eu muitas vezes ganhava gorjeta. Ouvi dizer que
o Mangue está acabando, que a zona agora só tem uma meia dúzia
de casas. Em meu tempo havia umas duzentas. Eu ficava em pé
encostada na porta vestindo só calcinha e sutiã de renda
transparente. Depois, quando eu já estava ficando muito gorda e
perdendo os dentes, é que me tornei caftina. Você sabe o que quer
dizer caftina? Eu uso essa palavra porque nunca tive medo de
palavras. Tem gente que se assusta com o nome das coisas.
Vocezinha tem medo de palavras, benzinho?
– Tenho, sim senhora.
– Então vou me cuidar para não escapulir nenhum palavrão,
fique sossegada. Ouvi dizer que o Mangue tem um cheiro
insuportável. No meu tempo a gente punha incenso queimando para
dar um ar limpo na casa. Até tinha cheiro de igreja. E tudo era muito
respeitoso e com muita religião. Quando eu era mulher-dama já ia
juntando meu dinheirinho, dando porcentagem à chefa, é claro. De
vez em quando havia tiros mas nada comigo. Minha florzinha, estou
te aborrecendo com minha história? Ah, não? Você tem paciência de
esperar pelas cartas?
– Tenho, sim senhora.
continua pág 79...
"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
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A Hora da Estrela - Nada contou a Glória
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