quinta-feira, 21 de novembro de 2024

A Hora da Estrela - Nada contou a Glória

Clarice Lispector

A Hora da Estrela


continuando...

     Nada contou a Glória porque de um modo geral mentia: tinha vergonha da verdade. A mentira era tão mais decente. Achava que boa educação é saber mentir. Mentia também para si mesma em devaneio volátil na sua inveja da colega. Glória, por exemplo, era inventiva: Macabéa viu-a se despedir de Olímpico beijando a ponta dos próprios dedos e jogando o beijo no ar como se solta passarinho, o que Macabéa nunca pensaria em fazer.
     (Esta história são apenas fatos não trabalhados de matéria-prima e que me atingem direto antes de eu pensar. Sei muita coisa que não posso dizer. Aliás pensar o quê?) Glória, talvez por remorso, disse-lhe:

– Olímpico é meu mas na certa você arranja outro namorado: Eu digo que ele é meu porque foi o que a minha cartomante me disse e eu não quero desobedecer porque ela é médium e nunca erra. Por que você não paga uma consulta e pede pra ela te pôr as cartas?
– É muito caro?


     Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro. O pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua. Eu queria chafurdar no lodo, minha necessidade de baixeza eu mal controlo, a necessidade da orgia e do pior gozo absoluto. O pecado me atrai, o que é proibido me fascina. Quero ser porco e galinha e depois matá-los e beber-lhes o sangue. Penso no sexo de Macabéa, miúdo mas inesperadamente coberto de grossos e abundantes pelos negros — seu sexo era a única marca veemente de sua existência.
     Ela nada pedia mas seu sexo exigia, como um nascido girassol num túmulo. Quanto a mim, estou cansado. Talvez da companhia de Macabéa, Glória, Olímpico. O médico me enjoou com sua cerveja. Tenho que interromper esta história por uns três dias.


     Nestes últimos três dias, sozinho, sem personagens, despersonalizo-me e tiro-me de mim como quem tira uma roupa. Despersonalizo-me a ponto de adormecer.
     E agora emerjo e sinto falta de Macabéa. Continuemos:

– É muito caro?
– Eu lhe empresto. Inclusive madama Carlota também quebra feitiço que tenham feito contra a gente. Ela quebrou o meu à meia-noite em ponto de uma sexta-feira treze de agosto, lá para lá de S. Miguel, num terreiro de macumba. Sangraram em cima de mim um porco preto, sete galinhas brancas e me rasgaram a roupa que já estava toda ensanguentada. Você tem coragem?
– Não sei se posso ver sangue. 

     Talvez porque sangue é a coisa secreta de cada um, a tragédia vivificante. Mas Macabéa só sabia que não podia ver sangue, o resto fui eu que pensei. Estou me interessando terrivelmente por fatos: fatos são pedras duras. Não há como fugir. Fatos são palavras ditas pelo mundo. 
     Bem.
     Diante da súbita ajuda, Macabéa, que nunca se lembrava de pedir, pediu licença ao chefe inventando dor de dente e aceitou o dinheiro emprestado que nem sabia quando ia devolver. Essa audácia lhe deu um inesperado ânimo para audácia maior (explosão): como o dinheiro era emprestado, ela raciocinou tortamente que não era dela e então podia gastá-lo. Assim pela primeira vez na vida tomou um táxi e foi para Olaria. Desconfio que ousou tanto por desespero, embora não soubesse que estava desesperada, é que estava gasta até a última lona, a boca a se colar no chão. 
     Não foi difícil achar o endereço da madama Carlota e essa facilidade lhe pareceu bom sinal. O apartamento térreo ficava na esquina de um beco e entre as pedras do chão crescia capim — ela o notou porque sempre notava o que era pequeno e insignificante. Pensou vagamente enquanto tocava a campainha da porta: capim é tão fácil e simples. Tinha pensamentos gratuitos e soltos porque embora à toa possuía muita liberdade interior. 
     A própria madama Carlota atendeu-a, olhou-a com naturalidade e disse:

– O meu guia já tinha me avisado que você vinha me ver, minha queridinha. Como é mesmo o seu nome? Ah, é? É muito lindo. Entre, meu benzinho. Tenho uma cliente na salinha dos fundos, você espera aqui. Aceita um cafezinho, minha florzinha?

     Macabéa sentou-se um pouco assustada porque faltavam-lhe antecedentes de tanto carinho. E bebeu com cuidado pela própria frágil vida, o café frio e quase sem açúcar. Enquanto isso olhava com admiração e respeito a sala onde estava. Lá tudo era de luxo. Matéria plástica amarela nas poltronas e sofás. E até flores de plástico. Plástico era o máximo. Estava boquiaberta. 
     Afinal saiu dos fundos da casa uma moça com olhos muito vermelhos e madama Carlota mandou Macabéa entrar. (Como é chato lidar com fatos, o cotidiano me aniquila, estou com preguiça de escrever esta história que é um desabafo apenas. Vejo que escrevo aquém e além de mim. Não me responsabilizo pelo que agora escrevo).
     Continuemos, pois, embora com esforço: madama Carlota era enxundiosa, pintava a boquinha rechonchuda com vermelho vivo e punha nas faces oleosas duas rodelas de ruge brilhoso. Parecia um bonecão de louça meio quebrado. (Vejo que não dá para aprofundar esta história. Descrever me cansa.) 

– Não tenha medo de mim, sua coisinha engraçadinha. Porque quem está ao meu lado, está no mesmo instante ao lado de Jesus.

     E apontou o quadro colorido onde havia exposto em vermelho e dourado o coração de Cristo.

– Eu sou fã de Jesus. Sou doidinha por Ele. Ele sempre me ajudou. Olha, quando eu era mais moça tinha bastante categoria para levar vida fácil de mulher. E era fácil mesmo, graças a Deus. Depois, quando eu já não valia muito no mercado, Jesus sem mais nem menos arranjou um jeito de eu fazer sociedade com uma coleguinha e abrimos uma casa de mulheres. Aí eu ganhei dinheiro e pude comprar este apartamentozinho térreo. Larguei a casa de mulheres porque era difícil tomar conta de tantas moças que só faziam era querer me roubar. Você está interessada no que eu digo? 
– Muito. 
– Pois faz bem porque eu não minto. Seja também fã de Jesus porque o Salvador salva mesmo. Olhe, a polícia não deixa pôr cartas, acha que estou explorando os outros, mas, como eu lhe disse, nem a polícia consegue desbancar Jesus. Você notou que Ele até me conseguiu dinheiro para ter mobília de grã-fino? 
– Sim senhora.
– Ah, então você também acha, não é? Pelo que vejo você: é inteligente, ainda bem, porque a inteligência me salvou. 

     Madama Carlota enquanto falava tirava de uma caixa aberta um bombom atrás do outro e ia enchendo a boca pequena. Não ofereceu nenhum a Macabéa. Esta, que, como eu disse, tinha tendência a notar coisas pequenas, percebeu que dentro de cada bombom mordido havia um líquido grosso. Não cobiçou o bombom pois aprendera que as coisas são dos outros.

– Eu era pobre, comia mal, não tinha roupas boas. Então caí na vida. E gostei porque sou uma pessoa muito carinhosa, tinha carinho por todos os homens. Além do mais, na zona era divertido porque havia muita conversa entre as coleguinhas. Nos éramos muito unidas e só de vez em quando eu me atracava com uma. Mas isso também era bom, porque eu era muito forte e gostava de bater, de puxar cabelos e morder. Por falar em morder, você não pode imaginar que dentes lindos eu tinha; todos branquinhos e brilhantes. Mas se estragaram tanto que hoje uso dentadura postiça. Você acha que se nota que são postiços?
– Não senhora.
– Olhe, eu era muito asseada e não pegava doença ruim. Só uma vez me caiu uma sífilis mas a penicilina me curou. Eu era mais tolerante do que as outras porque sou bondosa e afinal estava dando o que era meu. Eu tinha um homem de quem eu gostava de verdade e que eu sustentava porque ele era fino e não queria se gastar em trabalho nenhum. Ele era o meu luxo e eu até apanhava dele. Quando ele me dava uma surra eu via que ele gostava de mim, eu gostava de apanhar. Com ele era amor, com os outros eu trabalhava. Depois que ele desapareceu, eu, para não sofrer, me divertia amando mulher. O carinho de mulher é muito bom mesmo, eu até lhe aconselho porque você é delicada demais para suportar a brutalidade dos homens e se você conseguir uma mulher vai ver como é gostoso, entre mulheres o carinho é muito mais fino. Você tem chance de ter uma mulher?
– Não senhora. 
– É que também você nem se enfeita. Quem não se enfeita, por si mesma se enjeita. Ai que saudades da zona! Eu peguei o melhor tempo do Mangue que era frequentado por verdadeiros cavalheiros. Além do preço fixo, eu muitas vezes ganhava gorjeta. Ouvi dizer que o Mangue está acabando, que a zona agora só tem uma meia dúzia de casas. Em meu tempo havia umas duzentas. Eu ficava em pé encostada na porta vestindo só calcinha e sutiã de renda transparente. Depois, quando eu já estava ficando muito gorda e perdendo os dentes, é que me tornei caftina. Você sabe o que quer dizer caftina? Eu uso essa palavra porque nunca tive medo de palavras. Tem gente que se assusta com o nome das coisas. Vocezinha tem medo de palavras, benzinho?
– Tenho, sim senhora.
– Então vou me cuidar para não escapulir nenhum palavrão, fique sossegada. Ouvi dizer que o Mangue tem um cheiro insuportável. No meu tempo a gente punha incenso queimando para dar um ar limpo na casa. Até tinha cheiro de igreja. E tudo era muito respeitoso e com muita religião. Quando eu era mulher-dama já ia juntando meu dinheirinho, dando porcentagem à chefa, é claro. De vez em quando havia tiros mas nada comigo. Minha florzinha, estou te aborrecendo com minha história? Ah, não? Você tem paciência de esperar pelas cartas? 
– Tenho, sim senhora.  
 
continua pág 79...
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura." 
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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