A Hora da Estrela
continuando...
Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a
rua, o Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é agora é já,
chegou a minha vez!
E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a
— e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um
cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho.
Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver, antes que o carro
fugisse, que já começavam a ser cumpridas as predições de madama
Carlota, pois o carro era de alto luxo. Sua queda não era nada,
pensou ela, apenas um empurrão. Batera com a cabeça na quina da
calçada e ficara caída, a cara mansamente voltada para a sarjeta. E
da cabeça um fio de sangue inesperadamente vermelho e rico. O que
queria dizer que apesar de tudo ela pertencia a uma resistente raça
anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito.
(Eu ainda poderia voltar atrás em retorno aos minutos
passados e recomeçar com alegria no ponto em que Macabéa estava
de pé na calçada — mas não depende de mim dizer que o homem
alourado e estrangeiro a olhasse. É que fui longe demais e já não
posso mais retroceder. Ainda bem que pelo menos não falei e nem
falarei em morte e sim apenas um atropelamento.)
Ficou inerme no canto da rua, talvez descansando das emoções,
e viu entre as pedras do esgoto o ralo capim de um verde da mais
tenra esperança humana. Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de
minha vida: nasci.
(A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A verdade
é irreconhecível. Portanto não existe? Não, para os homens não
existe.)
Voltando ao capim. Para tal exígua criatura chamada Macabéa
a grande natureza se dava apenas em forma de capim de sarjeta — se
lhe fosse dado o mar grosso ou picos altos de montanhas, sua alma,
ainda mais virgem que o corpo, se alucinaria e explodir-se-lhe-ia o
organismo, braços pra cá, intestino para lá, cabeça rolando redonda e
oca a seus pés — como se desmonta um manequim de cera.
Prestou de repente um pouco de atenção para si mesma. O que
estava acontecendo era um surdo terremoto? Tinha-se aberto em
fendas a terra de Alagoas. Fixava, só por fixar, o capim. Capim na
grande Cidade do Rio de Janeiro. À toa. Quem sabe se Macabéa já
teria alguma vez sentido que também ela era à-toa na cidade
inconquistável. O Destino havia escolhido para ela um beco no escuro
e uma sarjeta. Ela sofria? Acho que sim. Como uma galinha de
pescoço mal cortado que corre espavorida pingando sangue. Só que a
galinha foge — como se foge da dor — em cacarejos apavorados. E
Macabéa lutava muda.
Vou fazer o possível para que ela não morra. Mas que vontade
de adormecê-la e de eu mesmo ir para a cama dormir.
Então começou levemente a garoar. Olímpico tinha razão: ela só
sabia mesmo era chover. Os finos fios de água gelada aos poucos
empapavam-lhe a roupa e isso não era confortável.
Pergunto: toda história que já se escreveu no mundo é história
de aflições?
Algumas pessoas brotaram no beco não se sabe de onde e
haviam se agrupado em torno de Macabéa sem nada fazer assim
como antes pessoas nada haviam feito por ela, só que agora pelo
menos a espiavam, o que lhe dava uma existência.
(Mas quem sou eu para censurar os culpados? O pior é que
preciso perdoá-los. É necessário chegar a tal nada que
indiferentemente se ame ou não se ame o criminoso que nos mata.
Mas não estou seguro de mim mesmo: preciso perguntar, embora não
saiba a quem, se devo mesmo amar aquele que me trucida e
perguntar quem de vós me trucida. E minha vida, mais forte do que
eu, responde que quer porque quer vingança e responde que devo
lutar como quem se afoga, mesmo que eu morra depois. Se assim é,
que assim seja).
Macabéa por acaso vai morrer? Como posso saber? E nem as
pessoas ali presentes sabiam. Embora por via das dúvidas algum
vizinho tivesse pousado junto do corpo uma vela acesa. O luxo da rica
flama parecia cantar glória.
(Escrevo sobre o mínimo parco enfeitando-o com púrpura, jóias
e esplendor. É assim que se escreve? Não, não é acumulando e sim
desnudando. Mas tenho medo da nudez, pois ela é a palavra final.)
Enquanto isso, Macabéa no chão parecia se tornar cada vez mais uma Macabéa, como se chegasse a si mesma.
Enquanto isso, Macabéa no chão parecia se tornar cada vez mais uma Macabéa, como se chegasse a si mesma.
Este é um melodrama? O que sei é que melodrama era o ápice
de sua vida, todas as vidas são uma arte e a dela tendia para o
grande choro insopitável como chuva e raios.
Apareceu portanto um homem magro de paletó puído tocando
violino na esquina. Devo explicar que este homem eu o vi uma vez ao
anoitecer quando eu era menino em Recife e o som espichado e agudo
sublinhava com uma linha dourada o mistério da rua escura. Junto
do homem esquálido havia uma latinha de zinco onde barulhavam
secas as moedas dos que o ouviam com gratidão por ele lhes planger
a vida. Só agora entendo e só agora brotou-se-me o sentido secreto: o
violino é um aviso. Sei que quando eu morrer vou ouvir o violino do
homem e pedirei música, música, música.
continua pág 85...
"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
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Leia também:
A Hora da Estrela - Saiu da casa da cartomante
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