sábado, 30 de novembro de 2024

A Hora da Estrela - Saiu da casa da cartomante

Clarice Lispector

A Hora da Estrela


continuando...

     Saiu da casa da cartomante aos tropeços e parou no beco escurecido pelo crepúsculo — crepúsculo que é hora de ninguém. Mas ela de olhos ofuscados como se o último final da tarde fosse mancha de sangue e ouro quase negro. Tanta riqueza de atmosfera a recebeu e o primeiro esgar da noite que, sim, sim, era funda e faustosa. Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras — desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero. Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho. Assim como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida. Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar. Mas não chorou: seus olhos faiscavam como o sol que morria.
     Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é agora é já, chegou a minha vez!
     E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a — e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho.
     Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver, antes que o carro fugisse, que já começavam a ser cumpridas as predições de madama Carlota, pois o carro era de alto luxo. Sua queda não era nada, pensou ela, apenas um empurrão. Batera com a cabeça na quina da calçada e ficara caída, a cara mansamente voltada para a sarjeta. E da cabeça um fio de sangue inesperadamente vermelho e rico. O que queria dizer que apesar de tudo ela pertencia a uma resistente raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito.

(Eu ainda poderia voltar atrás em retorno aos minutos passados e recomeçar com alegria no ponto em que Macabéa estava de pé na calçada — mas não depende de mim dizer que o homem alourado e estrangeiro a olhasse. É que fui longe demais e já não posso mais retroceder. Ainda bem que pelo menos não falei e nem falarei em morte e sim apenas um atropelamento.)

     Ficou inerme no canto da rua, talvez descansando das emoções, e viu entre as pedras do esgoto o ralo capim de um verde da mais tenra esperança humana. Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha vida: nasci. 

(A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A verdade é irreconhecível. Portanto não existe? Não, para os homens não existe.)

     Voltando ao capim. Para tal exígua criatura chamada Macabéa a grande natureza se dava apenas em forma de capim de sarjeta — se lhe fosse dado o mar grosso ou picos altos de montanhas, sua alma, ainda mais virgem que o corpo, se alucinaria e explodir-se-lhe-ia o organismo, braços pra cá, intestino para lá, cabeça rolando redonda e oca a seus pés — como se desmonta um manequim de cera. 
     Prestou de repente um pouco de atenção para si mesma. O que estava acontecendo era um surdo terremoto? Tinha-se aberto em fendas a terra de Alagoas. Fixava, só por fixar, o capim. Capim na grande Cidade do Rio de Janeiro. À toa. Quem sabe se Macabéa já teria alguma vez sentido que também ela era à-toa na cidade inconquistável. O Destino havia escolhido para ela um beco no escuro e uma sarjeta. Ela sofria? Acho que sim. Como uma galinha de pescoço mal cortado que corre espavorida pingando sangue. Só que a galinha foge — como se foge da dor — em cacarejos apavorados. E Macabéa lutava muda. 
     Vou fazer o possível para que ela não morra. Mas que vontade de adormecê-la e de eu mesmo ir para a cama dormir.
      Então começou levemente a garoar. Olímpico tinha razão: ela só sabia mesmo era chover. Os finos fios de água gelada aos poucos empapavam-lhe a roupa e isso não era confortável.
     Pergunto: toda história que já se escreveu no mundo é história de aflições? 
     Algumas pessoas brotaram no beco não se sabe de onde e haviam se agrupado em torno de Macabéa sem nada fazer assim como antes pessoas nada haviam feito por ela, só que agora pelo menos a espiavam, o que lhe dava uma existência. 

(Mas quem sou eu para censurar os culpados? O pior é que preciso perdoá-los. É necessário chegar a tal nada que indiferentemente se ame ou não se ame o criminoso que nos mata. Mas não estou seguro de mim mesmo: preciso perguntar, embora não saiba a quem, se devo mesmo amar aquele que me trucida e perguntar quem de vós me trucida. E minha vida, mais forte do que eu, responde que quer porque quer vingança e responde que devo lutar como quem se afoga, mesmo que eu morra depois. Se assim é, que assim seja). 

     Macabéa por acaso vai morrer? Como posso saber? E nem as pessoas ali presentes sabiam. Embora por via das dúvidas algum vizinho tivesse pousado junto do corpo uma vela acesa. O luxo da rica flama parecia cantar glória.

(Escrevo sobre o mínimo parco enfeitando-o com púrpura, jóias e esplendor. É assim que se escreve? Não, não é acumulando e sim desnudando. Mas tenho medo da nudez, pois ela é a palavra final.)   

     Enquanto isso, Macabéa no chão parecia se tornar cada vez mais uma Macabéa, como se chegasse a si mesma.
     Este é um melodrama? O que sei é que melodrama era o ápice de sua vida, todas as vidas são uma arte e a dela tendia para o grande choro insopitável como chuva e raios.
     Apareceu portanto um homem magro de paletó puído tocando violino na esquina. Devo explicar que este homem eu o vi uma vez ao anoitecer quando eu era menino em Recife e o som espichado e agudo sublinhava com uma linha dourada o mistério da rua escura. Junto do homem esquálido havia uma latinha de zinco onde barulhavam secas as moedas dos que o ouviam com gratidão por ele lhes planger a vida. Só agora entendo e só agora brotou-se-me o sentido secreto: o violino é um aviso. Sei que quando eu morrer vou ouvir o violino do homem e pedirei música, música, música.

continua pág 85...
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura." 
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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