domingo, 29 de maio de 2011

Os olhos cegam sem alma


Galinha caipira

baitasar

Os olhos cegam sem alma. O beco é chão alagadiço e fedorento, terra socada por botinas chinelos pés descalços. Para escoltarem seus sonhos, precisam ciscar catar comer grão por grão. É beco às escuras. Lugar de gente desconfortada e bichos de criação. Frágeis pontes de lugar nenhum para coisa alguma. Águas podres. Ali, na casa 18, acesso Um, beco da Servidão, na vila Boa Esperança, foi erguida a casa da Maria Memória e do Ogum.

Depois da primeira visita à família, Manualdo, o jovem pretendente a parente, sentiu cobiça pelas galinhas, criadas feito gente da mesma procedência, no porão da casa. Olhava aquelas aves que jamais voavam e as imaginava na panela, em pedaços, a carne desfiada, misturada no arroz. Risoto. Delícia. Ovos da galinha, cozidos descasados picados, soltos aos punhados sobre os próprios farrapos. Nunca disse da sua vontade. É um homem paciente. Quem espera é porque tem esperança ou está imobilizado pelo óbvio, por enquanto, não pode ser diferente... por enquanto. Longe é o limite de cada um.

Agora, na sua nova situação de parente, casado com a filha da Memória, já pensa em influir no destino das caipiras. Passam o dia cacarejando, Cocococó, e escarafunchando no subterrâneo do porão, Desperdício, O que foi, meu amor, Nada, minha pretinha, não desperdiça a atenção da barriga, Tô um bagulho, né, Tu é linda, minha pretinha.

Na casa da Memória, as tarefas de cuidar das bichas de pena são dos gêmeos. Rotina de prazer dos meninos. Mas é o mais novo que se instala no chão, embaixo do assoalho da casa, catando pulgões entre as penosas e com o olho no macho do terreiro, galo atrevido e esporão encrespado. O mais antigo dos gêmeos gosta de ficar nos embaraços da rua estreita curta sem saída, chutando a bola de panos estropiados, seu passatempo de preferência com a gurizada do beco. Cada piá se impõe um nome de guerra, ele se diz Pelé, mas tem o Gérson Rivelino Tostão Jairzinho, jogam e narram suas jogadas, seus golos. Não precisam de árbitros, os juízes do futebol, eles são imparciais, falta é falta, gol é gol. Pronto, Vamos jogar!

Assim, o mais novo se afeiçoa a cada dia um pouco mais com as penosas,  longe dos guris, na companhia das aves que não voam, mas saltam. Parece mais fácil falar e escutar galinhas. Não jogam futebol. Não sabem chutar a bola. E depois, ninguém quer no time um guri e seu pé torto. Sem rumo certo de chute. Tanto chuta lá para frente, como lá para trás. O pé entortou dentro da barriga da mãe. Ele demorou uns tempos a mais que o mais antigo para encontrar o caminho da saída. Dizem que na espera, um dos pés ficou retorcido para trás. Quando anda deixa pista para frente e à ré.

Desse jeito, foi natural a afeição do guri com a Garrincha, uma caipira com pernas torcidas em arco. A galinha caipira retorcida é o motivo dos maiores cuidados do menino sucupira. Trocam segredos proteção intimidade.

Como não existe bem que nunca acabe, na semana seguinte às núpcias da irmã com o Manualdo, chegaram os pregos para a casa do jovem casal. As galinhas foram trocadas por pregos. Os irmãos se renderam às necessidades da Maria Cariciosa. Consentiram nas trocas, as galinhas por pregos. Pregos novos segurando tábuas podres. A irmã dos gêmeos já estava em tempo de desova e precisava de casa. Quem casa quer casa.

Mas com uma exceção, Qual, meus filhos, A Garrincha não vai, Tudo bem, Legal. E assim, o machão do terreiro, o galo do harém, viu a sua corte minguar. Sobrou a defeituosa. As surpresas da vida, num dia, fartura de penas para se servir; no outro, a tristeza da carestia. Um dia de muito, outro de nada. Jamais perdoaria os meninos. Foi traído. Levaram suas meninas e lhe deixaram a torta desajeitada defeituosa. Uma atrapalhada retorcida. A vida perdeu a graça. Parou de cantar. Emudeceu. Acordava quando o sol ia alto, vagueando sem destino, desocupado das coisas da vontade.

Sorte de uns, azar de outros.

Galinhas de menos e a carijó caipira parou de viver só, ciscando e comendo restos à moda antiga. Foi incumbida de novas tarefas. Nem foi difícil convencer o inconformado para pular em cima da torta. A opinião da Cariciosa acertou em cheio, Esse tempo é de luto... passa, não tem galo ou homem que viva sem subir em cima de coisa viva, torta ou não, é questão de pouco tempo, Minha filha, que palavrório é esse, Televisão, minha sogra... televisão.

Manualdo perdeu o arroz com galinha, mas ganhou os pregos para segurar os tapumes do barraco. As surpresas da vida...

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