sábado, 19 de novembro de 2016

histórias de avoinha: um inferno cheio de remorsos

mulheres descalças


um inferno cheio de remorsos
Ensaio 92B – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar


seu sèzar não pareceu entusiasmado com o oferecimento da dona adelaide, parecia com pressa, se soubesse que logo iria se tornar um homem velho, cheio de dores absurdas, jamais imaginadas, um inferno cheio de remorsos. se soubesse que iria desmaiar como um pássaro vermelho deitado de costas em lençois suados, um amante desajeitado e envergonhado. se soubesse que ninguém é pra sempre... se soubesse... teria mais urgência dos beijos mais molhados e enfiados. mas como reconhecer que as histórias chegam e partem com pressa quando se é tão jovem e forte, e bonito, e pra sempre

É um ótimo livro. Você pode levar.

os livros têm as pegadas e as cicatrizes do escritor, o seu sèzar tinha as pegadas no chão como um guri aprontando alguma travessura. vai chegar o dia que não haverá mais travessuras nem qualquer lembrança das suas travessuras. não haverá nem deus, mais nada. apenas o silêncio. depois, nem o nada vai existir

Não. Eu levo outro dia.

aproveita esse dia, seu sèzar. olha os seios da moça, seu sèzar. agora, isso mesmo seu sèzar, olha pelo decote generoso da moça, viu seu sèzar, os dois pontinhos? agora mesmo, alguém está beijando os seios de alguém. a vida já é tão encardida pra fazermos de conta que o tempo está a nosso favor. o seu sèzar precisa de uma madrugada louca e satisfeita. não? tem medo do quê, seu sèzar? que ela diga não? mas ela pode dizer sim, né? na verdade, o seu sèzar está com medo do sim da moça. o seu sèzar tem mais medo da moça repetir que sim, Quero, vamos fazer. bobice, seu sèzar, o amor não é uma campanha de guerra nem um jogo de tiro ao alvo, não dá pra ficar sentado esperando estragar tudo, mas o seu sèzar faz esse tipo displicente. não consegue arriscar o suficiente pra jogar o último jogo da sua temporada

Pena, você deveria ler... está me parecendo afobado.

relaxa seu sèzar é só um livro, a moça não sugeriu pra dormirem na mesma cama; pelo que entendi, vocês continuam dormindo em camas separadas, ela não vai pedir, ela não quer pedir, mas se ela pedir seu sèzar, tome um banho e corte as unhas dos pés. seja educado, beba o chá e não faça nenhuma palhaçada de tomar um porre, não se comporte como um canalha, seja um homem gentil, educado e carinhoso, esqueça isso de carregar um martelo entre as pernas

Você acha?

Acho. 


ela poderia ter se calado, mas não conseguiu, E... um pouquinho atrapalhado.

ele tossiu. não tosse, seu sèzar, parece um velho acabado. convida a moça pra sair, seja gentil, não é tarde pra ela, a vida continua vida, saia daqui com dona adelaide, me deixe escutar a novela. não vou desligar o rádio

É verdade, estou ansioso.

Mas, por quê? Calma... não se afobe.

isso, escute a moça. nada importa mais que a juventude descabelada e soldados desarmados. todos estamos morrendo, então se decida, não tenha medo, não dói, você pode aprender a assobiar e falar muitas línguas no amor. o seu quartinho dos fundos vai poder abrir a poção mágica da solidariedade e da indignação com a injustiça e os mistérios da vida – são tantos quanto as injustiças – irão se revelar. vida é só vida, o tempo da vida é a vida e só temos essa vida, o resto são apostas

Vou tentar...

isso tente, seu sèzar. tenha uma noite tranquila

... tenho uma encomenda que preciso entregar para minha amiga.

virgem maria, o seu sèzar parece um carteiro entregando cartas de lembranças que carrega num saco de lona, mas que dormiu no meio da rua com as cartas na mão, não lembra o que precisa fazer. não demora seu sèzar pra fazer essa entrega ou vai se tornar um carteiro velho correndo do medo dos meus latidos

Para mim?

Sim...

dona adelaide adora presentes. eu adoro presentes. não conheço ninguém com vontade de me dar presentes, pelo menos, um presente. acho que não tenho vocação pra ganhar presentes, isso é um traquejo que se aprende desde jovem

ali está o seu sèzar com um pacote amassado de sovaco nas mãos. os olhos sorrindo. a boca se abrindo solene mostrando sua alma de merengue derretendo. dona adelaide quase bocejando. a vida é uma encadeação de dias bons e ruins, e claro, sorri pra mim mesma, minhas novelas no rádio

o seu sèzar continuava com o pacote amarrotado de sovaco nas mãos suadas. os olhos lustrosos, o despertador pronto pra tocar, a novela pronta pra recomeçar

... é para você. A mocinha mais linda desta Villa de mulheres lindas...

apertou o pacote amarrotado no peito e dançou, improvisou passos

... estou perdido em você, na sua amizade...

e os seios da mocinha, seu sèzar? assim, o moço se parece com um carteiro, um funcionário público qualquer sem nenhum dia de lembrança, sem nada de extraordinário pra recordar, sem nada de dinheiro pra contar


... estou gostando de você mais que de mim mesmo.

cuidado com as palavras chuchu... depois que elas voam... às vezes, é bom ficar com a boca fechada, gostando ou não...


Adorei!

calma, dona adelaide. ainda é preciso abrir o pacote. o moço encolheu os ombros como uma aeromoça antes de entrar com seu avião num furacão, sem ter onde ir, a bunda agarrada na poltrona, as mãos rezando por um milagre, rezando pra seus braços virarem asas, os lábios pedindo pra todos rezarem por ela, Rezemos! Rezem, bem alto! Vamos pedir por uma bolha de sabão e que nos leve bem alto, bem alto, e depois nos deixe pousar suavemente no céu! Merda, poderia ter escolhido ser professora ou bombeira! Por que fui escolher ser aeromoça?

ele parou seus passos desequilibrados e desajeitados

Não sou do tipo que cultiva muitos amigos.

ela olhou pra mim, eu estava parada feito uma vela iluminando a vida na cozinha, parecia querer me dizer, Não é uma gracinha?

continuei ali, parada e muda, sem mover um músculo, ouvindo ela elogiar seu sèzar. o único amigo que ela tem, ou que vem visitar dona adelaide e não pede dinheiro emprestado

Vamos tomar chimarrão?

Hum... não sei...

Milagres, quando ouvi meu nome dei um passo à frente

Sim, dona Adelaide.

respondi sem nenhum pressentimento ou sensação de esperança no mundo, estava preparada pra outra pequena tarefa – seja ela a tarefa que for – do mesmo quotidiano interminável, pequeno e insignificante em uma vida insuficiente que se finge que eu escolhi pra mim

Por favor, faça um chimarrão.

pra dona adelaide não é preciso ser rica, apenas ter quem faça o seu chimarrão, lave a louça, troque os lençóis manchados, saiba varrer o chão, tirar o pó das coisas imóveis, esvazie as lixeiras: da cozinha, com os restos de comida; do banheiro, com seus papeis marcados e amarrotados

e ter o que beber

ou comer, vez que outra

Sim, senhora.

A água fervendo...

olhei pro moço

Por que, seu Sèzar? Com água tão quente pode queimar a língua e o céu da boca.

será que ele vai querer um quarto pra dormir? só temos o quarto da dona adelaide

Bobagem, Milagres, ele me devolveu o olhar, chimarrão morno virá chá de comadre, olhei de canto pro moço, tanta valentia pro chimarrão, tanta covardia com presentes e com perguntas da moça

Por favor, Milagres, insistiu dona adelaide

a minha novela, o rádio da dona adelaide, onde o mal é castigado ou se arrepende de tudo, com voltas e reviravoltas, declarações açucaradas e o final feliz. a vida nas novelas é tão melhor, sem final feliz não é uma boa novela. uma trama de segunda à sexta, com seus três homens maus

Tudo bem, dona Adelaide.

comecei minha marcha até a cozinha, o que interessa aos jovens é o antes do depois, pouco importa o tal depois do agora. e quanto menos esse tal instante do presente mais se precisará agir, e menos, cada vez menos, será preciso pensar com bom senso e sabedoria, será o tempo da manha, da esperteza, da insensatez, da indiferença e da burrice da manada, sobretudo

ele voltava a insistir

Abre, Adelaide.

ela apertava o presente do sovaco, delicadamente, sem fúria ou dominação, segurava com a satisfação de quem gosta de receber mimos

Abre... abre...

não, ela não quer a agilidade velozmente desengonçada. ela dança sem solavancos. desliza, pouco a pouco, as mãos no pacote

Rasga... rasga...

ela e o pacote do sovaco flutuam. ela quer poesia. ele não sabe o que quer. acho que não é pra tanto essa demora, esse remanchar com o embrulho do sovaco, mas enfim, é tão bom receber uma oferenda, mesmo um pequeno pacote de café cheiroso de novo, tudo deveria nos fazer pensar nas urgências da vida

já ganhei rolo de durex, garrafa de vinho pra sagú, presente sacana também vale, vassoura, pano de louça, essas coisas que se compra, mas esquecemos de comprar

uma parte de mim saiu pro fogão agradecendo a oportunidade de sair, a outra metade continua parada olhando pro pacote nas mãos da dona adelaide. uma moça tão bonita. é tão chique cuidar das sujeiras da sua boniteza. não sei como posso explicar, mas é uma sujeira diferente. uma sujice perfumada

outra mania que tenho, não tenho muitas manias, mas gosto de cantar quando estou na cozinha. no resto do apartamento da dona adelaide fico com os olhos abaixados, mas na cozinha eu sou rainha. tenho vontade de dançar. gosto da cozinha, sem exageros
 


Seja bem-vindo, oh meu irmão
Venha com Deus e com toda proteção
a casa é sua, presença é boa
Filhos de fé, Oxalá que lhe abençoa

outra parte de mim responde que o chimarrão pode esperar. parece que aquele presente também é meu. não sei se estou invisível ou não existo, assim, repartida, não sou da família, muito menos do chimarrão, só um pano de chão

paro de respirar enquanto caminho pra longe de mim. sinto que cada dia que fica pra trás me deixa um pouquinho mais longe da vida que fingi escolher. longe do casarão, longe das meninas. onde vocês estão meninas? será que é pecado ser pobre? ser mulher? ser negra? será que é muita burrice esperar um milagre sem rezar? sinto que sou uma mulher de lugar nenhum

hoje, será outra daquelas noites que fico sem dormir, desajeitada e estranha na cama vazia. quase gritei, Abre logo esse pacote, moça!
ainda bem que não gritei, foi só um quase grito. faz tanto tempo que não grito. ando muito cansada, contando os dias pro meu sumiço, Já vou, já vou, respondo pra minha parte que canta na cozinha, estou esperando a moça abrir o pacote. Pode ser que sejam cartas de amor. Já vou me rejuntar na cozinha. Vai preparando o chimarrão, e não deixa a água ferver. a outra parte de mim não responde nem reclama. vive acostumada assim, a cozinha limpa e brilhando

dona adelaide olha pro seu sèzar. eu também. um jeito é curiosidade, outro é admiração. ele ri. parece todo inchado, ele está fortão. brinca com a própria vontade de contar adiantado o que tem no pacote amassado de sovaco. um desperdício de tempo não é um desperdício de tempo se você acha que tem tempo. mas quem tem tempo pra desperdiçar? alegre desassossego

eu sou metade testemunha

a metade que canta quer esquecer pra seguir vivendo. a metade que vigia, por cautela, desconfia do que acha que sabe. não abro a boca. faço o sinal da cruz. é o sinal que acompanha quem vai morrer e espera sua recompensa, é muita coisa da vontade envolvida

Pode rasgar...

o chimarrão que não chega, a água que não ferve, Não deixa ferver a água

ela rasga o pacote com delicadeza, parece se desculpar, era quase impossível que não estivesse com pressa e curiosa. está brincando de guardar a inocência, como se depois do leite derramado só restasse a solidão do sono. ele quer apressar, acabar-se logo, Rasga, ele repete, Pode rasgar, ele permite. ela provoca e se demora. a encantação pode parecer cruel. uma pugilista negando dar o último soco do nocaute. saltita. bate. recua. bate. sorri. bate. o outro ordena. depois pede pelo nocaute, Acaba logo com isso, por favor, ela adiava o golpe da lona, o rouco do deleite. caprichava, se embriagava, o beijo da lona chegando. o grito rouco, o corpo teso antes de amolecer pesado e inerte sobre a lona, babando, o leite derramando, os olhos vidrados, mamando o mormaço daquele ar empoeirado da lona

O que é isso?

É para você...

Para mim?



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