terça-feira, 1 de novembro de 2016

O Brasil nação - v1: § 5 – Os motivos da dissolução... - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 1 
os frutos do 7 de setembro




§ 5 – Os motivos da dissolução...24




Dado que D. Pedro I não era um mentecapto, como se explica o ataque direto, impiedoso, contra os brios da nação brasileira, dissolvendo-lhe a primeira assembleia, voz necessária da sua proclamada soberania? Foi tão grave a injúria que, finalmente, incompatibilizou-o, ao príncipe, com o Brasil. No entanto, no viver da Constituinte nada houve que parecesse ameaça ao trono, nada que pudesse, sequer, despertar suscetibilidades, mesmo num soberano de direito divino, quanto mais em quem se elevara – pela unânime aclamação dos povos. Vindos de todas as correntes políticas – desde Silva Lisboa, até Martiniano de Alencar e Custodio Dias, os deputados timbraram sempre em mostrarem-se adesos da monarquia, com a dinastia adotada, e intransigentes propugnadores da ordem. Quando as tropas já marchavam para cercar a Assembleia, em face do último ofício do governo, e onde este dizia que os oficiais tinham exigido a eliminação de certos deputados; quando já se votava a mudança da Assembleia para fora do alcance das tropas sediciosas; mesmo então, se um Carneiro da Cunha, tradicionalmente liberal e irredutível na defesa dos seus direitos, protesta veementemente contra o atentado, as suas próprias palavras são, no entanto, demonstrações de moderação: 

          Muito doloroso me é que o governo de Sua Majestade respondesse de semelhante forma, tomando por pretexto dos movimentos das tropas as publicações de dois periódicos!


24 Medite-se no conceito de Varnhagem: “Depois da dissolução, era o imperador o árbitro único dos destinos do Brasil...” (História da Independência, 320.)



Como é possível...? Não se tem lido no Diário do Governo tantas doutrinas perturbadoras... incendiárias e que menoscabavam o corpo legislativo e a dignidade desta Assembleia; mas o governo não se embaraçou com isto, e... respondeu que, como havia liberdade de imprensa, era livre a cada um expor a sua opinião... Falemos por uma vez claro: este não é o motivo dos acontecimentos de que somos testemunhas; outros existem seguramente, e eles aparecerão. O que é de todos sabido, é que temos conservado com o poder executivo toda a prudência necessária, dado exemplos de moderação, que talvez não se encontrem em outras assembleias, e mostrado por sobejas provas a nossa adesão à pessoa do Imperante... Não era de esperar que do sábio governo de Sua Majestade saísse uma tal resposta...

Carneiro da Cunha ainda volta à tribuna, e mais nitidamente formula as suas dúvidas, sem sair do tom de sobranceiro comedimento:

          Que quer dizer chamarem-se a um lugar todas as tropas, e serem chamadas por aquele que mereceu o voto unânime da nação para seu chefe? Isto indica alguma pretensão e põe em desconfiança os cidadãos pacíficos... é falta de prudência atacar assim a Assembleia na pessoa dos seus deputados, quando ela tem marcado sempre as suas deliberações com o cunho da moderação...!

Isto já foi à última hora, do próprio dia 12 de novembro. A pretensão máxima, da Assembleia taxada de incendiária, e isto quando viu de perto a ameaça, foi de que se retirassem as tropas ameaçadoras para dez léguas longe, afim de que pudessem continuar os trabalhos legislativos. 


Como se explica, pois, o brutal ataque? No momento apontaram-se como motivos: satisfações ao rancor dos lusitanos, afrontados pela política nativista dos Andradas, despeitos da imperial comborça contra os mesmos Andradas, pruridos de autoritarismo de um príncipe malcriado... Anos depois, toda a documentação à vista, Homem de Melo formula a extravagante teoria: “A Constituinte foi sacrificada ao sedicionismo das tropas... Tropa, em grande parte composta de portugueses, assumiu arrogantemente uma atitude hostil à Constituinte... É a esse crime militar...” Antes, o historiador havia consignado a definitiva verdade: “Em vez de emaranhar-se na discussão de teorias abstratas, ou de arrogar-se uma ditadura suprema como poder constituinte, a Assembleia, dando exemplo do mais admirável bom senso e madureza política, concentrou seus esforços no empenho de dar ao país uma nova organização política e administrativa...”. E foi por isso que o embusteiro a aniquilou, se bem que, para isso, tivesse de amotinar a tropa, convertendo-a em odiento instrumento da sua miserável política. Basta a circunstância de ter sido ele próprio quem dirigiu as manobras dos batalhões contra a Assembleia, e de que não apareceram os nomes dos oficiais reclamantes... para que se verifique, desde logo, a exclusiva responsabilidade imperial, por motivos exclusivamente seus. Depois de açulados os Lapas, para que a soldadesca acedesse em sustentá-lo contra a Constituinte, Pedro I afirmou que os deputados se dispunham a uma reação contra o trono e o exército, e por isso, como ofendido e ameaçado, ele se atirou a doestos contra a Assembleia nacional, injuriando-a como perjura e anárquica... Não se passaram 24 horas, e os sinceros, dentre os soldados, descobriram que haviam sido vítimas de um embuste. Foi tal o efeito dessa descoberta que, embora senhor absoluto da situação, Pedro teve necessidade de retificar as suas primeiras afirmativas, numa nova proclamação, a que se seguiu outra, onde ele literalmente se desdisse das injúrias primeiras. 

Não. O motivo da dissolução da Constituinte não poderia ser um simples motim de tropas, mas a absoluta divergência – entre os interesses brasileiros, que a inspiravam, e os interesses lusitano-bragantinos, corporificados no imperador. O verdadeiro motivo, imediato, encontra-se na própria obra, sã, da Assembleia de 1823. Toda aquela crise foi uma grande torpeza, agravada na essencial estupidez dos que a conduziram. Por isso mesmo, ficou patente o corpo de delito do crime: a Constituinte estava a fazer uma obra política não condizente com os planos de reunião e despotismo de Pedro I, e este eliminou-a, antes que ficasse acabada e conhecida a constituição. Nem é preciso qualquer esforço de exegese para chegar a essa conclusão. Homem de Melo, que, por haver bem estudado o caso, é um decidido e entusiasta defensor da obra dos homens de 1823, deixou, na obra que lhes consagrou, a exaustiva e completa demonstração. Só lhe faltou enunciar a fórmula conclusiva. Nem era necessário. Em longas páginas, ele pôs, lado a lado, os itens das duas constituições – o projeto organizado pela Assembleia nacional em grande parte já aprovado, e a carta atamancada pelos dez serviçais do príncipe. E aí se vê, sem hesitação possível, que a constituição outorgada em 1824, ao Brasil, reproduz formalmente o projeto da Constituinte, com, apenas, estas três diferenças sensíveis: a) foi eliminada a disposição 25   que proibia explicitamente ao imperador – aceitar a coroa de Portugal, para acumulá-la com a do Brasil; b) foi eliminada, também, a disposição que fazia da Cisplatina, apenas, um estado federado ao


25 Art. 157 da constituição da Assembleia: “Se o herdeiro do Império suceder em coroa estrangeira, ou herdeiro de coroa estrangeira suceder no Império do Brasil, não poderá acumular ambas as coroas, mas terá opção, e optando a estrangeira se entenderá que renuncia à do Império.” Tal explícita proibição foi eliminada na constituição imposta em 1824.


Brasil, inteligente fórmula ideada por José Bonifácio, e que teria, talvez, resolvido dignamente o caso do Sul; 26   c) ampliou-se desmesuradamente o poder do trono e do senado vitalício, ao mesmo tempo que se podavam atribuições importantes da Assembleia dos deputados. Para completar a obra, elevou-se o poder do imperante, sob a forma de poder moderador, sobre os outros poderes, e cercearam-se, destarte, liberdades essenciais num regime representativo e democrático. Para completa demonstração bastará pôr em confronto quatro ou cinco disposições da constituição discutida na Assembleia e da que foi outorgada em 1824. 27

26 Art. 2º da constituição da Assembleia: “Compreende (o Império) as províncias do Pará... e, por federação, o Estado Cisplatino.” Escamoteada esta disposição, ficou, o citado artigo 2º, em forma que assimilou, de modo categórico, a Cisplatina às províncias históricas do Brasil.   

27 A constituição da Assembleia dizia: “Os poderes políticos são três: o legislativo, o executivo e o judiciário... estes poderes são delegações da Nação, e sem essa delegação qualquer exercício de poderes é usurpação”. Esta restrição foi podada na constituição de 1824. “Nunca haverá discussão de leis em segredo...”, dizia outro artigo da constituição da Assembleia, e que foi eliminado também (art. 47). “Nenhuma autoridade pode impedir a reunião da assembleia”, outro artigo eliminado e que não aparece na constituição de 1824 (art. 54). O artigo 55 da constituição da Assembleia dizia singelamente: “O imperador pode adiar a assembleia”, disposição que foi ampliada no monstruoso artigo 101 da constituição de 1824, nos seguintes termos: “O imperador exerce o poder moderador, prorrogando ou adiando a assembleia geral, e dissolvendo a câmara dos deputados nos casos...” E daí saiu toda a mentira e falseamento da política do Império... Dizia o § 1º, do artigo 80, da constituição da Assembleia: “É privativa da câmara dos deputados a iniciativa dos projetos sobre impostos, os quais não podem ser emendados pelo senado, mas somente aprovados ou rejeitados...”, restrição eliminada na constituição outorgada. § 3º do art. 91: “É privativa da câmara dos deputados – Fiscalizar a arrecadação e emprego das rendas públicas...”, disposição eliminada. Arts. 114 e 115 da constituição da Assembleia: “O imperador é obrigado a dar ou negar a sanção em cada decreto de lei, expressamente dentro de um mês... E se não o fizer dentro do prazo, nem por isso deixarão os decretos da assembleia geral de ser obrigatórios...”, disposições que foram substituídas, nos seguintes termos (arts. 66 e 67 da constituição outorgada): “O imperador dará ou negará sanção em cada decreto, dentro de um mês... se o não fizer dentro do prazo, terá o mesmo efeito, como se expressamente negasse


No interesse da política imperial bragantina, multiplicaram-se e consagraram-se elogios à Constituição de 1824, como monumento de sabedoria e liberdade política. E a monstruosa mentira ainda hoje se repete, de par com a justificação e o aplauso franco ou tácito, do próprio crime contra a soberania brasileira. Varnhagem, na sua impavidez contra a verdade, começa afirmando: “... havia poucas simpatias pela constituinte” (283). Rio Branco, o barão, não tem o desembaraço de Varnhagem, mas não é menos esforçado: dá, a uma carta de Baependi, sentido que ela não tem, e, não contente, ampara-se ao prestígio de Feijó, fazendo força de argumento com uma banal diatribe do bom do padre para com os Andradas, seus inimigos. Feijó aplaude a política de Pedro I


sanção...” Assim, a disposição da constituição da Assembleia foi formalmente contrariada... Art. 121: “... as alterações que de futuro se fizerem na constituição, são independentes de sanção...”, suprimido na constituição de 1824. Mesmo artigo, § 3º: “São independentes de sanção os atos resultantes do exame sobre o emprego da força armada pelo poder executivo...”, e que foi substituído na seguinte forma: “Ao poder executivo compete privativamente empregar a força armada como bem lhe parecer...” (art. 148 da constituição de 1824). Art. 130 da constituição da Assembleia: “Não podem ser eleitores (§ 2º) – os criados da casa Imperial... (§ 5º) – os brasileiros nascidos em Portugal se não tiverem 12 anos de domicílio no Brasil...” Tudo isto foi suprimido na constituição de 1824. Art. 153 da constituição da Assembleia: “O atual imperador... reinará para sempre enquanto estiver no Brasil...”, substituído pelo seguinte: “O atual imperador... imperará sempre no Brasil.” (art. 116 da Constituição de 1824). Art. 179 da constituição da Assembleia: “Não podem ser ministros de Estado... os brasileiros nascidos em Portugal e que não tiverem doze anos de domicílio no Brasil e não forem casados com brasileiras...” Suprimido. E assim foram suprimidos os artigos 191, 196, 197, 202, 205, 206, 207, 208, assim como o final do 209 que asseguravam garantias formais aos Brasileiros. Ao mesmo tempo, a constituição da Assembleia criava milícias com oficiais eletivos, e distribuía o emprego das forças armadas (arts. 227 a 246), de sorte a evitar a sua pressão sobre a política da Nação. Tudo isto foi suprimido, como o foram as disposições que mandavam haver “escolas primárias em todos os termos e ginásios em todas as comarcas, e estabelecimentos para catequese dos índios, emancipação lenta dos negros e sua educação religiosa e industrial”.



contra esses adversários; mas diz categoricamente: “... Quanto melhor seria que o ex-imperador não tocasse na constituinte!...” Enquanto isso, Bernardo de Vasconcelos, que será o organizador e a alma da política conservadora contra Feijó: no manifesto de 1827, chama a dissolução de “funestíssimo acontecimento, com que exultaram os nossos inimigos...” Nesse intervalo – de Feijó a Paranhos, Monsenhor Pinto de Campos infamou a Constituinte, para contracanto da sua apologia do imperador expulso em 1831. Por tudo isto, nos seus dias áureos, Saldanha Marinho acentuou: “Até hoje, os absolutistas condenam a constituinte.” 28 

De fato, tudo que se tem repetido em detrimento dos constituintes de 1823, é, não só mentira, mas crime expresso contra o Brasil. Aí estão os textos de cujo confronto resulta a verdade irrecusável: da constituição adotada pela Assembleia, nenhuma disposição foi modificada, substituída ou suprimida – no sentido de mais liberdade, ou de maior bem para a Nação. Sob o unto de liberalismos vazios e desconexos, a Constituição de 1824 foi a forma própria para iludir a situação política do momento, mantendo, em essência, toda a aparelhagem do regime anterior, e com a qual o Bragança continuava a ser, praticamente, o senhor do Brasil. A constituição da Assembleia reconhecera o mal da antiga distribuição política e administrativa do país, distribuição em que se congregavam os interesses da metrópole – no subordinar a antiga colônia; reconhecera-o, e, taxativamente mandava fazer novas divisões e subdivisões: ao mesmo tempo assentava a vida política na autonomia das comarcas. Assim, teríamos evitado que, hoje, o país estivesse enfeudado nos dois grandes estados, que o desfrutam, como Lisboa desfruta o Brasil do século XVIII. Em vez disto, a Constituição de 24 conservou a distribuição como nos dias coloniais, apenas admitindo, pro-fórmula, a subdivisão das províncias. 


28 A Política do Rei, pág. 100.


O vazio dos liberalismos grudados à Constituição de 1824 patenteia-se na vida do segundo Império, fachada de liberdade, para uma política de incapacidade, asfixia e corrupção.



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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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Leia também:

O Brasil nação - v1: § 4 – Ataque à soberania nacional - Manoel Bomfim

O Brasil nação - v1: § 6 – Desvenda-se o plano... - Manoel Bomfim



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