segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Charles Dickens: Um Conto de Natal 04

Um Conto de Natal


Charles Dickens

04



SEGUNDA ESTROFE 
O primeiro dos três espíritos 


Quando Scrooge despertou, a escuridão era tão profunda que, de seu leito, mal podia distinguir a janela transparente e as escuras paredes do quarto. No momento em que se esforçava para romper a intensa treva que envolvia seus olhos, ouviu bater numa igreja das vizinhanças os quatro quartos. 

Scrooge aguçou os ouvidos para escutar as horas que iam bater. 

Com grande surpresa, o pesado carrilhão deu as seis... as sete... as oito... e assim, ritmadamente, até as doze. 

Meia-noite! 

Eram mais de duas horas quando Scrooge se atirara sobre o leito. Não era possível! O relógio devia estar louco. Alguma coisa devia ter-lhe embaraçado o maquinismo! Meia-noite! 

Scrooge premiu a mola do seu relógio de repetição para verificar a exatidão daquele relógio idiota. A minúscula engrenagem bateu rapidamente as doze vibrações e parou. 

– Vejamos, – disse Scrooge. – É impossível que eu tenha dormido o dia inteiro e uma parte da noite. Acaso terá acontecido alguma coisa ao sol e seja agora meio-dia em vez de meia-noite? 

Bastante alarmado com esta ideia, ergueu-se do leito e dirigiu-se para a janela, a tatear, como um cego. A primeira coisa que fez foi passar a manga do roupão pela vidraça, que a neblina embaçava, e mesmo assim quase nada conseguiu distinguir fora. 

A coisa única que pôde verificar é que o nevoeiro continuava espesso, como dantes, e que o frio era demasiado intenso; notou, ainda, que já não se ouviam as idas e vindas das pessoas atarefadas, o que certamente se ouviria, se já estivesse clareando o dia. 

Este fato foi para ele um grande alívio, pois o que seria dele com as suas letras a pagar a três dias da data ao sr. Ebenezer Scrooge ou à sua ordem, se ele não dispusesse de dias para contar o tempo? 

Scrooge tornou a deitar-se, o pensamento vagando sobre o que poderia ter acontecido, mas por mais que quebrasse a cabeça para a decifração de tão complicado enigma, nada conseguiu desvendar. 

Quanto mais ruminava o caso, mais perplexo ficava, e quanto mais se esforçava por não pensar no caso, mais o caso assoberbava o seu pensamento. 

A lembrança do espectro de Marley causava-lhe um profundo tormento. Cada vez que chegava a convencer-se de que, afinal de contas, todo o ocorrido não fora mais que um sonho mau, crac! lá estava seu espírito novamente às voltas com o problema, no próprio ponto de partida, formulando novamente a mesma pergunta: “Era ou não era um sonho?” 

Scrooge permaneceu nesta agonia até o momento em que o carrilhão bateu os três quartos. Foi então que se lembrou, subitamente, de que o espectro lhe havia prenunciado a visita de um espírito quando batesse uma hora da manhã. Nestas condições, resolveu ficar acordado até chegar a uma hora da manhã. Diga-se de passagem que esse foi o melhor caminho a seguir, especialmente levando-se em conta que mais fácil lhe fora chegar até o mundo da lua do que tornar a adormecer. 

Este quarto de hora foi tão interminável, que lhe pareceu, mais de uma vez, ter dormido e deixado passar a hora. 

Finalmente, o carrilhão fez-se ouvir aos seus inquietos ouvidos: 

– Ding, dong! 

– Um quarto... – contou Scrooge, escutando atentamente. 

– Ding, dong! 

– Meia hora. 

– Ding, dong! 

– Três quartos. 

– Ding, dong! 

– A hora! – exclamou Scrooge triunfante. – A hora, e nada! 

Mas é que Scrooge falava antes de ouvir o bater da uma hora da manhã no pesado badalar do carrilhão. E o badalar da uma hora da manhã fez-se ouvir, lúgubre, fúnebre, surdo e melancólico. Imediatamente, uma vivíssima claridade invadiu o aposento de Scrooge, ao mesmo tempo que as cortinas do seu leito foram puxadas por uma mão invisível. 

Porém, não eram as cortinas dos pés nem as da cabeceira do leito de Scrooge, mas as que estavam diante de seus olhos, aquelas para as quais seus olhares estavam voltados. Então Scrooge, sentando-se bruscamente, achou-se frente a frente com o sobrenatural visitante que havia afastado as cortinas do leito. 

Era uma estranha aparição. 

A primeira vista, ter-se-ia a impressão de ver-se uma criança, mas, a um exame mais minucioso, verificava-se que seria antes um velho, um ancião visto através de uma atmosfera sobrenatural, que lhe dava uma aparência longínqua e o reduzia às proporções de uma criança. Seus cabelos, brancos como os de um homem de idade, caíam-lhe pelos ombros; seu rosto, entretanto, não apresentava a menor ruga, e sua tez era de uma deliciosa frescura. Os braços, longos e musculosos, bem como suas mãos robustas, denunciavam extrema força. As pernas e os pés, finamente modelados, estavam nus como os membros superiores. 

O ancião vestia uma túnica de puríssima alvura, apertada à cintura por uma faixa luminosa, que brilhava com refulgente esplendor; à mão, trazia um ramo de azevinho e, em fundo contraste com este símbolo do inverno, sua túnica era toda bordada de flores primaveris. Mas o que apresentava de mais curioso era o facho de luz que se desprendia do ápice de sua cabeça, e graças ao qual todos estes pormenores podiam ser notados. Este fenômeno explicava a presença do grande apagador em forma de chapéu que trazia embaixo do braço, e com o qual devia cobrir-se em seus momentos de tristeza. 

Entretanto, observando-a com mais atenção, Scrooge notou que a aparição apresentava uma particularidade ainda mais extraordinária. Do mesmo modo que sua cintura resplandecia ora num ponto, ora noutro, e que um ponto ainda há pouco luminoso agora estava escuro, todo o seu corpo mudava constantemente de aspecto, mostrando-se ora com um só braço, ora com uma só perna, ou então com vinte pernas, mas sem cabeça, ou então uma cabeça sem corpo. Das várias partes que desapareciam, nem um único contorno ficava visível naquela extrema escuridão em que se envolviam. E no meio de todas estas estranhas metamorfoses, a aparição retomava, de súbito, sua primeira forma, nítida e perfeita como antes. 

– Sois vós o espírito, cuja visita me foi anunciada? – perguntou Scrooge. 

– Sim. 

Aquela voz era doce e agradável, mas singularmente fraca, como se, em vez de estar tão próxima, viesse de muito longe. 

– Então, quem sois vós? – perguntou Scrooge. 

– Sou o fantasma dos Natais passados. 

– Passados desde quando? – interrogou Scrooge, observando o seu talhe delgado. 

– Somente os do teu passado. 

Scrooge sentia um ardente desejo de vê-lo coberto com o chapéu que trazia à mão; se alguém lhe perguntasse qual a razão disto, jamais teria sabido responder. 

– Como? – exclamou o fantasma. – Queres tão depressa extinguir, com as tuas mãos profanas, a fulgurante luz que resplandece em mim? Não te basta seres daqueles cujas paixões me teceram este chapéu e que me forçam tantas e tantas vezes a enterrá-lo até aos olhos? 

Scrooge declarou respeitosamente não ter tido a menor intenção de ofender o espírito e afirmou não lembrar-se jamais de o ter forçado, em toda a sua vida, a “usar” aquele chapéu. Em seguida, atreveu-se a perguntar-lhe o que o trazia ali. 

– Tua felicidade, – respondeu a aparição. 

Scrooge declarou-se profundamente agradecido, mas não deixou de pensar que uma noite de repouso teria concorrido mais eficazmente para este resultado. 

O espírito pareceu ler seu pensamento, pois no mesmo instante falou: 

– Tua salvação, se preferes. Ouve-me! 

Assim falando, estendeu a mão para Scrooge e tomou-o levemente pelo braço. 

– Levanta-te, e vem comigo. 


**** 


Teria sido inútil a Scrooge responder que nem o tempo, nem aquele momento eram propícios para um passeio a pé; que sua cama estava tão quentinha e que o termômetro estava muitos graus abaixo de zero; que, além disso, estava vestido apenas com o roupão, com o boné de noite e de chinelos, e que, para rematar, estava muito gripado. 


A pressão exercida pela mão do espírito, porém, tão doce como se fora a de uma mulher, era de todo irresistível. Assim, pois, Scrooge levantou-se, mas vendo que o espírito se dirigia para a janela, tocou-lhe a túnica e falou com voz súplice: 

– Oh, senhor! Sou apenas um mortal e posso cair! 

– Deixa-me apenas segurar-te por aqui, – disse o espírito pondo a mão sobre o coração de Scrooge, e serás capaz de enfrentar muitos outros perigos. 

Ditas estas palavras, ambos passaram através da parede e acharam-se logo numa estrada orlada de campos. A cidade havia-se evanescido, não restando dela um único traço; do mesmo modo, haviam desaparecido a noite e o nevoeiro, fazendo agora um tempo hibernal claro e frio, com a terra coberta pela neve. 

– Bondade divina! – exclamou Scrooge juntando as mãos. Foi aqui que fui criado! Aqui foi que passei a minha infância! 

O espírito envolveu-o num olhar benévolo. Embora tivesse posto a mão apenas um instante sobre o coração do velho, este julgou sentir ainda o calor daquele contato. Flutuavam no ambiente mil perfumes amigos, cada um dos quais evocava uma multidão de pensamentos, de esperanças, de alegrias e pesares passados, de muitos anos atrás . 

– Tens os lábios trêmulos, – observou o fantasma –, e o que estou vendo em tuas faces? 

Scrooge, com voz rouquenha, o que estava fora dos seus hábitos, respondeu que era uma verruga, e declarou que estava disposto a seguir o espírito para onde quer que fosse. ! 

– Reconheces o caminho? – perguntou o espírito. 

– Oh, se o reconheço! – respondeu Scrooge com emoção; – poderia andar por ele de olhos fechados! 

– É estranho que o tenhas esquecido durante tantos anos, – observou o espírito. – Vamos adiante. 

Ambos prosseguiram, e Scrooge ia reconhecendo à cada casa, cada árvore, cada poste. Logo a seguir, apareceu um pequeno povoado, com sua igrejinha, sua ponte e o rio sinuoso. Avistaram, então, na entrada, vários rapazes montados em hirsutos pôneis, e que se comunicavam alegremente com outros jovens montados em carriolas camponesas. 

Toda esta juventude transbordava de vida e de entusiasmo, e suas vozes enchiam o campo de uma música tão alegre que o ar cristalino parecia todo entrar em vibração. 

– São apenas sombras do passado, – disse o espírito; – elas não podem perceber a nossa presença. 

À medida que os alegres cavaleiros se aproximavam, Scrooge reconhecia-os e chamava-os pelo nome. 

Por que lhe causava tanta satisfação a presença daqueles amigos? Por que lhe batia tão descompassadamente o coração e se lhe iluminavam os olhos ao vê-los passar? Por que se sentia tão cheio de alegria ao ouvir estes rapazes trocarem mútuas felicitações e votos de feliz Natal, quando se despediam nas encruzilhadas para regressarem a suas casas? Que significava para Scrooge um “Feliz Natal”? Que vá para o diabo o "Feliz Natal"! Que proveito havia ele tirado do Natal? 

– A escola não está de todo deserta, – disse o espírito; – um menino solitário, abandonado pelos seus, ainda ali está. 

Scrooge declarou que bem o sabia, e reprimiu um soluço. 

Deixando a estrada principal, entraram por uma vereda, que Scrooge bem conhecia. Ao cabo de poucos instantes, chegaram a uma grande construção de tijolos vermelhos, encimada por um pequeno campanário. A casa devia ter sido importante, mas teria passado por diversos reveses, pois suas vastas dependências pareciam abandonadas, com suas paredes úmidas e emboloradas, os pisos fendidos e as portas abaladas. As aves domésticas cacarejavam à solta no pasto, e o mato havia invadido as cocheiras. 

Dentro, nem o mais ligeiro vestígio do seu antigo esplendor. Penetrando no silencioso vestíbulo, Scrooge e o espírito entreviram, pelas portas abertas, frias e escuras dependências parcamente mobiliadas. Casavam-se o cheiro de mofo, que flutuava no ar, e a nudez geral do ambiente, à ideia de que ali deviam levantar-se ainda com o escuro e talvez não pudessem alimentar-se quanto desejariam.


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