sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

O Brasil nação - v1: § 18 – A Assembleia de 1826 - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 2
a reação da nacionalidade




§ 18 – A Assembleia de 1826




Toda obra política de efeitos longos e característicos é o resultado e a expressão de um sentimento ativo, estimulante e exigente, na alma da nação. Sem isso, não há valor de estadista ou de dinasta que dê resultados apreciáveis. O gênio de Aníbal podia bastar-lhe para fazer toda uma guerra triunfante, mesmo sem assistência do seu povo em recursos de homens e de dinheiro; mas não lhe deu com que ressuscitasse Cartago, já abandonada de todo sentimento de intransigência nacional. E o fracasso do grande Barca foi ali mesmo, em contestação com o Romano, que pôde chegar ao domínio de todo o mundo mediterrâneo sem ter tido, para isso, nem um grande general, nem um estadista de gênio. A Roma dos secundários Cincinatus, Scipiões e Metellus, bastou para fazer os destinos excepcionais do povo romano. A primeira e gloriosa afirmação do Brasil, contra o holandês, foi bem um desses casos: a alma de uma nacionalidade, irradiando nos efeitos prolongados e definitivos de uma grande obra. Nem se pode marcar quem começou a reação pernambucana: com o primeiro homem da terra, senhor de engenho, ou singelo mameluco; o primeiro que, voluntário, se apresentou a Mathias de Albuquerque e lhe deu estímulo para erguer barreiras no Arraial. André Vidal era quase um criançola quando se engajou soldado no Bom Jesus, e a pátria nascente teve energias de resistência para esperar que ele, em dezenove anos de campanha, se elevasse ao mestre de campo Vidal de Negreiros. O seu nome é o fecho da grande obra; mas, em verdade, a Insurreição não é exclusivamente sua, porque não poderia ser expressão de um só ânimo, senão a condensação de muitas vontades, irredutíveis, na focalização de um mesmo fim. Um vivo aspirar de nacionalidade nascente nutria a essas vontades, e os humildes heróis de Tabocas e Guararapes puderam bastar para bater a nação mais poderosa do mundo de então. 

Outra vez, encontramos, para uma vitória do Brasil, a expressão da alma da Nação, nas consciências dos lutadores; na campanha que levou ao 7 de Abril, o brio essencial era do povo brasileiro no seu conjunto. Desde o primeiro momento da luta, desde 1826, notadamente, cada um dos combatentes sentia-se como que insuflado, inteiramente possuído, por um estímulo irresistível. Muitos deles eram, apenas, contaminados pelo ânimo de luta, arrastados no entusiasmo do grande número. Assim se explica que, passado o orgasmo do primeiro momento, muitos, sobretudo entre os políticos de profissão, houvessem desarmado, e alguns chegassem a trair o programa de onde vieram. Já o notamos: não fora a Assembleia quem criara a formidável oposição que deu com o primeiro Império por terra; o ânimo de oposição precedeu a instalação da Assembleia dos deputados, e era de toda a nação brasileira. E já foi esse mesmo ânimo que orientou as eleições – para que fossem eleitos todos os antigos deputados das cortes e da Constituinte, já conhecidos como nacionalistas, democratas e liberais. Contudo, apesar da presença deles, a Assembleia de 1926 começou a sua vida timidamente, hesitante, como sem propósito determinado. Dir-se-ia que aqueles brasileiros, em face de uma situação que já era decomposição, voltaram-se para o grande e vivificante ambiente da nacionalidade: sorveram-no fartamente e tomaram-se do mesmo espírito em que a nacionalidade se exaltava, e foram, então, legítimos representantes dela. Um ano depois da eleição, já existia uma assembleia empenhada na causa do Brasil, em contraste com o trono. Alteiam-se as vozes, ali; manifesta-se a política da maioria da Assembleia; isso, por sua vez, repercutiu sobre o público, e a oposição cresceu de valor: “Os debates da Câmara temporária de 1827 tinham poderosamente excitado os ânimos... Não houve mais no Império quem dali por diante se conservasse neutro ou indiferente na luta partidária...” São palavras do Sr. Pereira da Silva, que adiante dá a razão do entusiasmo, e a súmula dos debates: “Nem uma voz se ouviu (em 1826-30), em favor do governo... Muitos deputados anunciaram opiniões oposicionistas; nem um apareceu em defesa do governo posto que severamente censurado”. É o momento em que até José Clemente tem voz para ataque... Chega o fim da sessão:


... a Assembleia deixou gravadas no ânimo do povo, impressões, profundas e duradouras... O Senado alienara as simpatias pela sua subserviência ao poder... A casa temporária, pelo contrário, adquiria considerável influência no país; seus debates afeiçoaram-lhe proselitos e excitaram o entusiasmo... pela pureza das intenções, acrisolado patriotismo, boa-fé e ativíssimo zelo.
 

Não é de admirar, por conseguinte, que, mesmo por fora da Assembleia, subisse a maré da oposição. Ensaiava-se a campanha no crepitar dos espíritos, ardentes em nacionalismo patriótico, contra Pedro I e seus marqueses. De um dia para outro, no Brasil, que até 1826 não conhecera imprensa livre, multiplicam-se os jornais de oposição; sobe de tom a crítica, e cresce o valor da imprensa sobre a opinião: “Muitos desses jornais (oposição) eram exagerados... Contudo, o espírito em que eram escritos agradava ao povo, e a sua influência em todo o Império era prodigiosa” (Armitage). Nessa maré, subiram os homens que foram os deputados apóstolos, de 1826-30. Responderam às ânsias da nacionalidade injuriada; vibraram e agiram em uníssono com a alma da nação. E isto não lhes diminui o valor, antes o acentua, porque o característico da legítima política é essa correspondência com as necessidades gerais, no estímulo dos sentimentos dominantes do grupo nacional. O muito valor daqueles homens vem, justamente, daí: inspiraram-se nos sentimentos nacionais, condensando nas suas consciências as aspirações da comunidade. Não houvesse, depois, a maioria deles, abandonado o caminho por onde subiram, abandonando, com isto o programa de democracia e brasileirismo; não houvessem, alguns dos mais representativos e fortes, por inépcia, ou por ambição imediata, traído o ideal em que se engrandeceram, e o Brasil, no surto de energia e de virtude de 1831, teria reconstituído os seus destinos, como o determinavam as suas tradições de 1640-817. 

De modo geral, a oposição ativa, do primeiro reinado, foi de grandes brasileiros. Descontem-se, mesmo, as hesitações e incertezas, as puerilidades, os comprometimentos e as rápidas descaídas, até traições reconhecidas: o que resta, no depurar de serviços, ainda é valor excepcional. Depois da Insurreição Pernambucana e a conquista dos sertões, a obra da Assembleia de 1826 é a de maior significação nacional. Foi o que remiu em parte a nacionalidade, dos embustes e traições de 1822. Eleita sob um governo despótico e corrupto, a primeira assembleia democrática do Brasil exprimiu a justa reação de um povo que quer ser livre; nenhuma covardia em face do trono, nenhum contato com a corrupção. 

Os mesmos que seriam pelo bragantismo mantinham-se recatados. Essa é uma página da nossa história, tão patente no seu valor, que não pode ser desfigurada nem turvada pela pulhice e má fé dos historiadores a serviço da dinastia. Todos eles dão parágrafos e parágrafos a enumerar e louvar os serviços da Assembleia de 1826: foi toda a organização do país para a liberdade. Foram, em sinceridade, os únicos e reais esforços em prol da justiça e da felicidade comum, ao longo de todo o primeiro reinado, especialmente importante neste sentido – por ser a iniciação da política nacional. E tudo que se fez de bem para o país, vinha como se fora arrancado à má vontade do Governo: “Daí resultou, nota Armitage, um governo olhado com aversão... uma extrema irritabilidade no espírito público”. 

É preciso não esquecer que, apesar de todo o abuso de poder em 1823, quando foi conhecida a Constituição de 1824, muitas municipalidades a repeliram, porque lhes repugnou o senado vitalício, assim como a onipotência irresponsável do Poder Moderador – chave de toda a organização do Império. O estado dos espíritos era o de gentes excitadas por quatro anos de afrontas e despotismo, exaltados com a perspectiva de um regime de livre soberania nacional. E a Assembleia correspondeu à expectativa. É longa a lista do seu ativo: regulou direitos, preveniu e curou abusos, instituiu serviços; aboliu quanto emprego inútil havia, desde o tempo de D. João VI; criou a justiça popular – dos juízes de paz; descentralizou quanto possível a justiça e a administração; criou a escrituração da Caixa da Amortização – para que o Tesouro tivesse indicações precisas nos serviços dos empréstimos; organizou, em regime democrático, a vida das municipalidades (Feijó); garantiu a liberdade de imprensa; deu justos limites ao direito de propriedade, segundo os interesses gerais da comunidade; regulou praticamente os conselhos provinciais; decretou a responsabilidade dos ministros de Estado, e dos demais funcionários; proibiu o engajamento de estrangeiros no exército nacional. Melo Moraes, verificando arquivos e anais, firma-se na convicção: “Nas primeiras legislaturas cuidava-se muito seriamente das coisas nacionais, e o que temos de bom foi feito por elas...”.99  Já sem prestígio, incapaz até para isto, o governo imperial nem mais tentava obstar a


99 O Brasil Social e Político.


votação dessas medidas que, em afronta ao seu disfarçado absolutismo, a Assembleia lhe impunha. Uma das mais frisantes, então, foi a lei que organizou a vida municipal, e a que criou os juízes de paz. No ânimo de combatividade daqueles dias, municipalidade e juízes de paz, eleitos na afirmação dos seus direitos, foram vigorosas barreiras às arbitrariedades dos presidentes de províncias, despóticos e mandões. Finalmente, o governo de Pedro I nem pelo veto se opunha aos projetos da Assembleia. E quando o Senado tentou resistir, foi o próprio imperador quem mais depressa cedeu. O governo reconhecia que a nação brasileira estava com os seus deputados, homens que, em tudo, timbravam por mostrar-se representantes de um povo livre. Assim como propunham a responsabilização dos ministros infratores da constituição, criticavam a política financeira, com a coragem de reduzir o orçamento da despesa a 2/3 do que fora pedido. Tiveram, ainda, a coragem de discutir a dotação do soberano, mostrando, sem rodeios, que ela era, relativamente, a mais elevada, dentre os soberanos constitucionais. E agiam seguros do apoio do país, porque eram criaturas com o prestígio – de quem cortara no próprio subsídio.



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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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O Brasil nação - v1:   § 19 – Incompatibilidade – entre o Império e a nação - Manoel Bomfim



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